Do pó, ao pó...

Quando escrevi meu primeiro livro “Hippie – As cores da revolução”, nunca poderia imaginar que aquela evolução de pensamento seria tão facilmente deturpada com o advento dos anos, no livro eu faço um relato romântico de tempos onde vivenciávamos a iminente derrocada do regime militar. Naqueles tempos de “Hair” o uso de drogas era apenas um acessório à rebeldia que nos caracterizava, assim como as túnicas coloridas, o jeans enxovalhado e o violão. A violência era atributo da truculência do governo ou das guerras civis que assolavam o mundo. Os caudilhos ilegítimos, tiranos e usurpadores que teimavam em tornarem-se perenes faziam com que sentíssemos, mesmo que longínquos, os reflexos de seus métodos atrozes.

A inocência de um baseado, dividido com uma trupe de amigos leais preocupados com temas tão atuais. Preservar o meio, os animais, a boa música e a liberdade de expressão, aceitar o outro como igual, desnudos de preconceitos, querer bem por querer, posso dizer que eram códigos de conduta. Imaginei que isso era evolução.

Quanto idealismo inútil, quanta juventude desperdiçada com questões tão irrelevantes para os padrões atuais. As pessoas não se falam mais, não reagem a problemas coletivos, não amam sem recompensas pessoais, não voluntariam se não houver o chicote do temor a Deus, não querem o bem por querer.

Quando a cocaína invadiu a vida cotidiana pra valer, os tempos de incensos e cores já se iam, os “malucos” já ensaiavam sua retirada da frente de “batalho”, gradativamente o “sistema” os consumia, atirando-os no poço infindo do capitalismo, os que se apegaram renitentes em manter a chama, retiraram-se para comunidades alternativas ou da própria vida ao acompanharem a “evolução” devoradora das drogas sintéticas.

Às vezes me ponho a divagar, voltando 30 anos, visualizando-me entre jovens talentosos, cabelos às costas, brincos de penacho, boinas e liberdade, sinto o cheiro das bolsas encardidas feitas de perna de calça, disfarçados com ramos de patchouli, a pujança do abraço leal, os acordes do velho Pink Floyd que nos servia de trilha, a dança com os lobos do poder em plena praça, sem grifes, sem padrões, sem correntes. Não tínhamos casas para morar, mas o mundo a nos abrigar. Não me lembro de violência física, de gangues, de luta por territórios, de soberba e atitudes degradantes ou preconceituosas, só tive uma arma em minhas mãos por alguns minutos quando um militar a deixou cair num coletivo. Puxa, não imaginava fosse tão pesada.

Com a idade chegando, acabei por dar importância demais a gestos e palavras e me incomodar com a descaminho de algumas expressões. Vejamos o que nos diz o vernáculo sobre evolução: desenvolvimento, enriquecimento, melhora, progresso. Coitado do Aurélio, tão defasado. Os saquinhos plásticos são a evolução das embalagens, o acrílico do tecido, os carros das carruagens, as escopetas do tacape, o tecno-brega da música, o fanatismo da religião, o miojo da comida da mamãe... A praticidade está nos extinguindo. Numa escala vertiginosa o oxi é a evolução do crak, que já evoluiu da pasta, do pó, dos barbitúricos convencionais. É a evolução da droga química que alimenta uma indústria maior do que pode conceber a mente mais criativa, com ramificações em todos os setores da sociedade e não estou falando apenas de consumo, assim também evoluíram os fornecedores, os transportadores e os legisladores. Os recursos legais são a evolução da lei. Toda essa mexida no cotidiano tem haver com a velocidade das informações, e-mails e seus derivados que evoluíram dos pombos correios. Não temos como fugir a isso, se ficarmos estacionários seremos atropelados pela força da “melhor” tecnologia, aquela que traz mudanças devastadoras no comportamento, a preços cada dia mais módicos na contramão dos valores morais.

Agora eu entendo aquele jargão médico: “O paciente evoluiu a óbito”.