LOUCURA: CONSIDERAÇÕES INTIMISTAS*

Leonardo Lisbôa

“Eu sou um doido que estranha à própria alma”. Fernando Pessoa.

Com licença.

Estou entrando na casa dos psicólogos, psiquiatras e também dos antropólogos, filósofos, sociólogos. Estou invadindo seus campos. Não venho como historiador e nem mesmo como pensador ou poeta. Chego como louco e quero expor minhas reflexões intimistas e por isto uso acima a oração de Pessoa, o Fernando.

Cresci na cidade de Barbacena, conhecida como ‘Cidade das Rosas’ (Onde elas estão? Em quais jardins públicos as encontro? São plantadas somente em época da ‘Festa das Rosas e Flores nas praças públicas para turistas verem? Por que não mantê-las cultivadas durante todo ano? ). Estratégia usada para desconstruir um outro título que a cidade tinha que era “Cidade dos Doidos”? Hoje se trabalha ludicamente este estigma.

Os loucos eram vistos nas ruas em certas ocasiões e ainda nós os vimos por aí.

No passado os víamos vez ou outra capinando alguma rua.

Quando eu era criança e, eles estavam prestando serviços à Prefeitura (terapia para eles e economia para os cofres públicos?), eu me recolhia, com medo, em casa e os observavam da varanda ou pelas frestas das venezianas (naquela época as janelas das casas tinham estas entradas de ar para ventilar os interiores e eram usadas também como observatórios para, discretamente, ver o que se passava no exterior das casas)

Eles, os loucos, chegavam de veículo e trajavam roupas azuis. Todos sabiam quem eram aqueles homens e o que fariam: limpar as vias públicas dos matos que cresciam por onde as enxurradas escoavam para os bueiros. Os moradores os olhavam com reservas ou com medo.

Os víamos também nos chamados hospícios. Ou melhor, ouvíamos gritos de seus pavilhões onde estavam trancados.

Hoje, após a reforma psiquiátrica, os vemos como moradores de algumas casas nos bairros onde instituições estatais as alugam para incluí-los à sociedade e também os vemos com a mesma finalidade em bloco carnavalesco nas quintas-feiras que antecede o carnaval.

Portanto, o conceito de loucura muda conforme a realidade e o tempo (o homem e sua história são filhos do tempo).

Se no passado eram vistos como seres que tinham que ficar trancafiados em pavilhões por causarem receios, medos e serem vistos como “o feio” do ser humano e da sociedade (a não ser naqueles momentos que esta precisava dos serviços ordinários deles – a capina das vias públicas), na contemporaneidade são vistos como pessoas que devem ser incluídos no social.

Percebemos, então, que o conceito de doido, de loucura é um conceito espacial e temporal para definir o comportamento humano. É um conceito histórico. Mas não quero entrar na área do ‘classificável’, conceitual, desta ou daquela ciência. E é por isto que uso a primeira pessoa do singular. Trata-se de uma reflexão intimista , quando eu me coloco também, a exemplo de Fernando Pessoa, como doido.

Pergunto, então: Os loucos hoje são só aqueles que residem em casas mantidas pelas instituições públicas como recurso de inclusão social?

Não.

O louco é aquele que...

Em um mundo pós-guerra, pós-queda da união das Repúblicas Socialistas Soviéticas, pós-onze de setembro de dois mil e um, pós-moderno, onde as pessoas têm que entrar na forma consumista e sorridente, feliz, alegre é difícil de conceituar este ‘estágio’. É difícil enquadrar as pessoas em um estereotipo qualquer.

Em uma época desta (o historiador em mim quer dar vazão ao seu ofício – minha esquizofrenia? – Entretanto, quero extravazar o louco, quero que ele fale por mim) o louco é aquele que...

...É aquele que, estranhando a própria alma, sente-se melancólico e deprimido em uma sociedade que exige e propaga o hedonismo. Resta-lhe o “Prozac” do psiquiatra para sentir a felicidade absoluta, a endorfina e a seratonina das academias de ginástica para se sentir atraente e atraído. A imagem é tudo!

...É aquele que, desclassificado e marginalizado, busca a droga para se sentir “ligadão”.

...É aquele que vai à busca de soníferos, porque o sono natural lhe falta.

...É aquele que busca as práticas esotéricas, porque as outras dimensões transcendentais lhe confortam com esta ou aquela mensagem de melhores energias do que as energias da dimensão e realidade em que está inserido.

...É aquele que afoga suas mágoas e dores na bebida, porque se vai consumir álcool só se for socialmente ou aquela cervejinha para relaxar ou comemorar, ou aquele vinho para...

...É aquele fumante viciado, porque hoje quem fuma é aquele que polui o ar e é culpado pela passividade dos que não fumam. Porque, se antes os filmes apresentavam o ato de fumar como um charme, hoje o cinema apresenta o fumante como personagem transtornada à beira de um surto.

...É aquele que apresenta algum transtorno mental tido por ser alegre ao estremo e triste em outros momentos seguintes (se hoje é o bipolar ou o que tem transtorno de humor, antes era o maníaco depressivo), é o que tem determinadas manias (neuroses e psicoses), é o que ouve vozes e tem visões (hoje, os esquizofrênicos, antes os médiuns, os santos, os profetas ou endemoniados – o gosto pelos rótulos foi e é conforme a época e os grupos sociais).

...É aquele que...

...que está ao meu lado, trabalha comigo, anda no mesmo passeio que eu, mora na mesma rua, eu que escrevo (grafomaníaco?).

Conforme vemos, no século 21, a loucura já está inserida e incluída em nosso dia e em nosso vocabulário com outros verbetes.

Ser louco é quase ser normal. Pior do que ser louco, sem sentimentalismo demais, sensível demais, emotivo demais é ser frio, racionalista demais, calculista. São as mentes perigosas, os sociopatas e os psicopatas.

E antes do século vigente? Antes do mundo pós-moderno? Quem eram os loucos?

Vem à minha memória, eu que fui criança na década de 1960 e adolescente na de 1970, algumas frases feitas como:

“Quem lê demais fica doido”.

“Quem estuda muito tem como resultado a loucura”.

“Quem lê a Bíblia e muda de religião é porque ficou doido”. Ou (já ouvi também):

“Quem não lê a Bíblia e não segue os seus princípios não está salvo (de quê?), e é endemoniado”.

“Entrementes”, quem eram os loucos naquela época?

Naquela época os loucos, além dos que liam ou estudavam muito, liam ou não a Bíblia (santos ou endemoniados), eram...

...Eram os que não “gostavam” de trabalhar. Na sociedade burguesa de séculos passados havia a concepção idealista de que “o trabalho enobrecia”. Logo, quem não queria trabalhar não queria se enobrecer, só podia ser louco.

...Eram os que rasgavam dinheiro e comiam fezes (modo de dizer “não estou nem aí para esta sociedade capitalista”). Há pessoas que levam esta expressão no sentido literal, ao pé-da-letra. Não é assim desta forma simplista.

...Eram os diferentes dos padrões burgueses e judaico-cristãos, como os “sem-empregos”; sem-terras; sem-famílias; vadios; prostitutas; homossexuais; mães-solteiras; esposas abandonadas; artistas sem públicos, palcos ou fãs, sem crença e religião.

...Eram os sem regras...

...Eram os que fugiam à ordem, sem perspectivas de progresso individual ou coletivo.

...Eram os marginalizados.

Ocorre, forçosamente, então o questionamento: a loucura é produzida pela intervenção política – social – cultural? Os comportamentos humanos são reflexos assimilados, rejeitados, questionados da sociedade, de um grupo, de uma época? A loucura é genética? A loucura é um mal da emoção, da razão, dos sentimentos?

O certo é que a loucura é humana.

Pode ser fruto do estresse coletivo ou individual.

Pode ser genética havendo em uma mesma família membros loucos, transtornados e membros “normais”.

Pode ser cultural.

Pode ser assimilada (o homem é fruto do meio em que vive?).

Pode ser dissimulada.

Pode ser aceita.

Não é virótica. Ninguém ficou louco, porque pegou um vírus (a não ser a “raiva” do cachorro).

Pode ser violenta.

No passado a sociedade depositava os seus “não-queridos” em algum lugar para não vê-los, não senti-los, não se constrangerem. A não ser que precisassem de seus serviços ordinários – se vivos prestavam para a capina; se mortos, seus corpos serviam para estudos da anatomia humana nas faculdades de medicina.

Hoje a sociedade paga seus impostos para vê-los felizes inseridos na realidade e exime-se assim, esta sociedade, de suas culpas passadas.

Se o indivíduo for diagnosticado como portador de algum transtorno, que ele pague seu tratamento para não sofrer, ou sofrer menos e não causar transtorno na coletividade. Ou que o Estado lhe ofereça tratamento.

Sinto que estou adentrando a casa das políticas públicas, mas não estou aqui para isto.

Pedi licença aos cientistas das humanidades para entrar em suas casas (áreas) e já estou saindo com minhas saudações loucas.

Sou apenas um doido a mais nesta Barbacena, que se lembrou de fatos de sua meninice e que sempre desconhece com que alma acorda toda manhã. Mas vamos deixar a poesia para outra hora também.

Saudações.

*Trabalhei como pesquisador na FHEMIG nos anos de 2001 e 2002 pela UNIPAC quando tínhamos um projeto “A História da Pedagogia na FHEMIG de Barbacena”.

Leonardo Lisboa, Barbacena, 20/10/2011.

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Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 21/10/2011
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