Afeto e consumo

AFETO E CONSUMO

Antônio Mesquita Galvão

È lamentável ver que existem pais e mães, que não sabem como exprimir seu afeto. Não sabem ou não conseguem. Quando morei em João Pessoa, escrevi um artigo intitulado “Quatrocentos cilindradas de emoção”, que foi premiado como a melhor crônica jornalística do ano (1983). Depois publiquei a mesma matéria em revistas e portais de âmbito nacional.

A crônica, uma situação real, a qual presenciei de perto, narra uma tragédia ocorrida com um jovem, um garoto de seus dezoito anos que ganhou dos pais uma moto, quatrocentas cilindradas de emoção (assim anunciava o fabricante), e dias depois acabou morrendo, vítima de um terrível acidente, em uma avenida da cidade.

Recordo que na matéria jornalística fiz referência direta ao insólito do fato: “A moto fora presente dos pais, no Natal. Afinal, diziam eles, o ano foi difícil para todos, e realmente não houve possibilidades de um encontro maior da família, por isso a moto serviria para alegrar o rapaz e minimizar os efeitos da ausência dos pais; ele cheio de trabalhos, viagens, compromissos, algumas saídas a passeio (só o casal), clube de serviço, e outros compromissos; a mãe, rodas sociais, chás beneficentes, cruzada disso, liga daquilo, trabalhos de igreja, etc.”.

É triste que alguns pais, quando não podem (ou não sabem) dar carinho, dão coisas materiais aos seus filhos, como se isso bastasse, como se o presente, mesmo caro tivesse o condão mágico de reparar a afetividade que não deram, a atenção que não dispensaram, a presença que sonegaram. Essa prática, além de não reparar a solidão dos filhos, ajuda a formar pessoas vazias, desestruturadas, viciadas em consumo.

Alguns pais, incompetentes para o afeto, tentam resolver a coisa pelo lado materialista. Afinal, é só o que eles sabem fazer! A vida é um mercado para eles. As omissões se reparam com coisas. Se não tem amor, dá-se dinheiro, presentes... Mas, que fazer? perguntam os pais: há compromissos a atender, campanhas a encetar, viagens, negócios a tocar, e há também o lazer, ninguém é de ferro... Como não se pode dar presença, dá-se presentes caros.

Numa semana vi o garoto na moto, na outra vi-o novamente. Nem tão alegre, nem tão livre... Estava deitado na pedra fria do necrotério, morto, todo quebrado... Sofreu um acidente de trânsito. Folhei o processo, li depoimentos de testemunhas, vi fotos dramáticas. Curiosamente, entre os culpados não vi arrolados os nomes dos pais do rapaz, que, para contrabalançar anos de abandono, verdadeira desidratação afetiva, deram-lhe no Natal uma vistosa moto vermelha. Quatrocentas cilindradas de emoção. Emoção e morte.

O autor é Filósofo, Escritor e Doutor em Teologia Moral