Transfusão de sangue x Testemunhas de Jeová

Falar de religião é polêmico. Opiniar sobre religião é decretar a própria sentença. Constantemente quem trabalha em defesa da Lei, concordante com o código ético e moral, doutrinando normas e diretrizes, tem conflitos com questões religiosas.

De prontidão, peço desculpas aos meu caros orientadores, amigos e colegas que dedicam um tempo de seu dia para estudarem os temas que lhes trago, porém hoje vou falar em primeira pessoa e sobre uma questão pessoal.

Há dias estou envolvido em uma questão conflituosa relacionado a um caso que me ocorreu em agosto passado. Em síntese, eu estava de plantão no Ministério Público da comarca em que atuava e um dos oficiais trouxera um pedido de transfusão sanguínea imediata a uma criança acidentada. O documento estava assinado pelo médico responsável, além de todos os responsáveis diretos pelo hospital.

Para que tu possas entender melhor, em 99% dos casos, para que haja uma transfusão sanguínea, basta haver consentimento livre e esclarecido dos próprios pais ou responsáveis pelo menor, sem necessitar passar pelo MP. Este caso que me ocorreu, porém, encaixava-se no percentual de 1 que se valia de autorização judicial para que ocorresse.

O motivo disso é devido a crença religiosa dos pais do menor. Testemunhas de Jeová não permitem esse tipo de procedimento médico e, não muito infrequente, há pedidos de autorização desse cunho ao MP. Iminentemente, em posse dos relatórios médicos enviados imediatamente ao Ministério, pude decretar a autorização da transfusão.

Isso porque a criança, de 4 anos de idade, necessitava de 40% de conteúdo sanguíneo imediato, com risco expresso de falecimento em poucas horas, destacado pelo médico responsável.

Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos.

Vale ressaltar que o Judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se a transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médico-científica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art. 146, parágrafo 3º, inc. I, do CP).

O Direito não é como a religião, pois o Direito assegura, porém não ensina e não prega, e quando as pessoas não agem de acordo com suas normas e Leis, a punição é severa. A Lei escrita se faz necessária para manter a justiça, a ordem, o equilíbrio, assegurar a integridade do ser humano, bem como seus direitos e obrigações. Eu sou um promotor de justiça, logo, meu dever e obrigação perante à sociedade e ao meu Estado é promover a ordem e assegurar que haja cumprimento da Lei.

Perante ao juíz responsável, foi alegado pela promotoria que o princípio do "direito à vida" deve prevalecer sobre o princípio da "liberdade de crença". A criança recebeu a transfusão, está viva e dispondo de todos os benefícios assegurados a ela, com excelente qualidade de vida e sem sequela alguma do incidente.

Apesar disso, ainda respondo perante a Justiça sobre o decreto de autorização da transfusão. Acredito que isso não deve se resolver de maneira simples, pois no nosso país ainda se misturam muito CULTURA - RELIGIÃO - ESTADO - JUSTIÇA.

Eu não aceito que, por convicção de qualquer espécie, se induza à morte ou se permita que alguém morra. Acho que isso deveria ser a maior das maiores Leis, independente de religião ou justiça.

Gustavo Scalioni
Enviado por Gustavo Scalioni em 28/02/2012
Código do texto: T3524911
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.