Os paradoxos da familia

OS PARADOXOS DA FAMÍLIA

Por paradoxo se entende, no sentido existencial, presente em autores como Pascal (†1662) ou Kierkegaard (†1855), um argumento chocante e inusitado por refletir o absurdo em que está imersa a existência humana. Paradoxo, na filosofia antiga é pensamento, proposição ou argumento contraditório que costuma orientar a cultura humana, ou desafia a opinião consabida, a crença ordinária e compartilhada pela maioria.

Os paradoxos humanos que cercam as nossas famílias são, entre tantos, o bem e o mal, o amor e a indiferença, a fé e a descrença, a esperança e o desespero, o devotamento e a infidelidade, enfim, aquilo que se convencionou chamar de luzes e sombras. A família vive imersa na ambiguidade das coisas materiais e das obras do espírito. Como “pequena Igreja”, a família cristã, à semelhança da “grande Igreja”, é chamada a ser sinal de unidade para o mundo e a exercer, deste modo, seu papel profético, testemunhando o Reino e a paz de Cristo.

Assim, o lar da família, seja uma choupana, uma casa modesta ou um luxuoso apartamento, torna-se Igreja Doméstica na medida em que seus membros se amam e transformam esse amor em um sacramento-sinal, para o mundo. A expressão lar deriva, no latim, de lare que quer dizer fogão, lugar de calor, daí lareira. O lar da família é o lugar onde o calor dos corações que se amam serve de lareira para todos.

Nesse aspecto, as características da família são a união, a unidade e a harmonia. “Todo reino dividido vai à ruína” (Mc 3). As divisões, mesmo pequenas, começam a minar a estabilidade da família. Os desacertos dos problemas pessoais infletem diretamente no âmbito familiar. Não dá para viver na duplicidade, expressas pela fé em Cristo e pautada pelo desregramento moral. As desordens individuais se estendem à família.

Muitas vezes o casal se promete amor e fidelidade recíprocos, os pais de receber com amor os filhos, e estes de honrar seus pais, e nada disto é atingido. O ser humano não constitui apenas uma individualidade; ele é necessariamente família. Deste modo, deve, pois, zelar por ela, mantê-la na unidade. Cristo quer que todos sejam um, deseja que as famílias sejam unidas como a sua.

Uma família onde Cristo seja o modelo de entrega, é capaz de afirmar, com sua unidade, que infidelidades, separações, divórcio e as desordens daí decorrentes, têm nos verdadeiros lares um terreno árido onde dificilmente se expandirão, porque sua construção é sólida e, se de um lado há a limitação e a fragilidade humana, de outro, compondo o vértice superior do triângulo, está aquele terceiro coração, Cristo, que ensina aos casais, aos filhos e às famílias, o caminho para se tornarem modelo e testemunho, como a Sagrada Família de Nazaré

No campo dos paradoxos, das incoerências humanas, a família encontra, como alertam alguns especialistas, certos desafios capazes de comprometer sua estabilidade: a) o desafio das más companhias; b) o desafio da divisão; c) o desafio da acomodação. A moral cristã insiste nas lições contra tantas incongruências, que rejeitam a verdade, a defesa da vida e a sinceridade. Essas falhas destroem o convívio e comprometem a fraternidade, ignorando que a essência das relações humanas é a fraternidade, o amor e o perdão. Essas relações devem ser preservadas contra a falsidade, a mentira, as máscaras, a fofoca e a calúnia.

Na família, como vimos, nem tudo são luzes. Há também sombras; bastantes sombras. A situação histórica em que vive a família, neste terceiro milênio, apresenta-se, não raro, como um conjunto de luzes e sombras, bem e mal, incoerência e compromisso. “Não raramente, ao homem e à mulher de hoje, em sincera e profunda procura de uma resposta aos graves e diários problemas de sua vida matrimonial e familiar, são oferecidas visões e propostas mesmo sedutoras, mas que comprometem em medida diversa a verdade e a dignidade da pessoa humana. É uma oferta freqüentemente sustentada pela potente e capilar organização dos meios de comunicação social, que põem sutilmente em perigo a liberdade e a capacidade de julgar com objetividade” (FC 4).

A angústia do mundo moderno, a nova moral pregada pela mídia e a falta de vigilância de algumas pessoas, tem levado alguns cônjuges a esquecer seus deveres de amor e respeito um pelo outro, rompendo, por diversos modos e feitos, a aliança matrimonial. Todas essas situações configuram uma ruptura com o plano amoroso de Deus, um descumprimento aos compromissos matrimoniais quando, não raro, um mau comportamento, cujas conseqüências e maus exemplos, trágicos e imprevisíveis, podem acarretar a ruína social e moral, das pessoas e da família.

Esse mau comportamento, em geral de fundo egoísta, ou fruto de um desajuste psicológico, pode conduzir a pessoa aos vícios, como bebida, drogas, jogo, para o adultério, para a duplicidade de vida, geradores de alienação, indiferença e divórcio. A pessoa altruísta, que pensa mais no outro do que em si, é como uma ponte. Qual a missão da ponte? Unir!

O indivíduo egoísta é como uma barreira, que só serve para bloquear e tornar obscuras as coisas. Tem gente que não sabe se livrar do egoísmo. Como ensina Leo Buscáglia, “Saia do eu e entre no nós. É o modo mais belo de se ver e ajudar os outros a se verem. O verdadeiro poder deriva disso. Assim, o homem, ao invés de barreira, deve converter-se em ponte. Primeiro ponte para si mesmo, e depois ponte para os outros” (in: Vivendo, amando e aprendendo, Ed. Record, 1982).

A aliança matrimonial é o símbolo humano da grande aliança que Deus fez com os homens. Eterna e infalível. Que bom se fossem assim todos os casamentos... Hoje, por conta do egoísmo e da falta de compromisso, dizendo-se livres e modernos, homens e mulheres não usam mais aquela aliança de ouro, símbolo da riqueza do contrato indissolúvel que assumiram em nome do amor. Falando às famílias, o Novo Testamento nos brinda com magníficos textos:

Aquele que não honra a dignidade matrimonial, suas orações

ficam sem resposta (cf. 1Pd 3, 7c).

Maridos, amem suas mulheres como Cristo amou a Igreja e se

entregou por ela.(cf. Ef 5, 25)...

Ajam com sabedoria na vida conjugal, tributando às esposas a

honra devida (1Pd 3, 7a).

Mulheres, que os enfeites de vocês não sejam vestidos, brincos

e penteados, mas uma alma doce e calma, como agrada a Deus

(1Pd 3, 6).

A vida de uma família hoje não é fácil. Não é fácil por causa de tantos paradoxos e circunstâncias que relativizam valores reais e tentam provar a eficácia de novas teorias, propostas modernas e, sobretudo, uma nova forma, mais existencialista de viver, comandada por uma nova moral. O casamento, e nele as pessoas que compõem a família, não consegue se manter imune a tantas pressões, agressões e estímulos negativos e, assim deletérios.

A pressa do mundo moderno, as tendências permissivas de uma moral de situação, o consumismo, a competição social, o egoísmo, gerador da falta de solidariedade entre as pessoas, tudo isso prejudica o relacionamento na família, dificulta o entendimento, bloqueia o diálogo e inviabiliza as tentativas de convivência.

Utilitarista e pragmática, nossa sociedade julga ter conceitos e teorias para tudo e, como afirma Saint Exupéry “... tenta comprar tudo pronto em lojas”, mas, como não vendem amigos (famílias, maridos, esposas, filhos) em lojas, gera pessoas frustradas e solitárias. Uma família se estrutura a partir da consolidação de uma vivência afetiva capaz de dar segurança a todos os seus membros. E isso, perdoem-me os técnicos em sociedade e em comportamento, as ciências não têm condições de dar integralmente.

Estruturados no amor de Deus, que se torna a rocha sobre a qual deve assentar o projeto de construção familiar, homem e mulher têm condições de organizar sua vida a partir dos valores mais elevados, como doação, fidelidade, solidariedade, respeito, carinho e perdão.

Quando se verifica a destruição de um lar, há que se afirmar, com tristeza, que ele não foi erguido sobre a rocha do amor que vem de Deus, mas irresponsavelmente fundado sobre o terreno falso do egoísmo, da individualidade, da busca do prazer pelo prazer e do materialismo consumista. Construída assim, sobre lençóis de areia, a ruína dessa casa é previsível e dramática.

De outro lado, vemos, por fim, que a família que é capaz de lançar luzes sobre as trevas, superar suas crises e contornar suas limitações, é capaz de vencer todas as ambigüidades e paradoxos e assim obter aquela vitória que faz parte do plano de Deus para o grupo familiar.

O autor é Filósofo e Doutor em Teologia Moral. Escritpr com mais de 100 livros pubçlicados, entre "A casa sobre a rocha", Ed. Vozes, 2000.