Doutor Salsichão

DOUTOR SALSICHÃO

Num dia desses eu me lembrei dos meus filhos, quando tinham dez-doze anos, brincando com um cachorro, na colônia de férias da Caixa, na “Pedra Redonda”, Porto Alegre. Era um cão preto, gordo, afável e de raça indefinida, chamado “doutor salsichão”. De imediato minha cabeça respigou outra lembrança do passado, coisa de mais de cinco décadas atrás.

Meu pai tinha um conhecido – e o velho Galvão sabia estabelecer uma clara linha divisória entre amigos e conhecidos – que fazia parte de um grupo de pessoas que às sextas feiras se encontrava num boteco no centro da Capital gaúcha (O Liliput) para tomar um chope e degustar uns petiscos. O grupo era formado por funcionários públicos e profissionais liberais, que saboreavam o happy hour antes de irem para casa.

Ali, segundo soube, havia um cidadão que destoava do grupo e era visto pelos demais membros como uma “mala”. Ele não trabalhava (ganhava uma mesada da mulher, para suas cachaças e para o vício do cigarro) e não tinha formação alguma. Mesmo assim – e isso irritava os parceiros – ele metia o bedelho e dava pitacos em todos os assuntos, querendo parecer um especialista desde cocô de elefante até a elaboração do concreto armado, passando pelas ciências sociais até a reprodução das formigas, causando desconforto entre a turma, que passou a chamá-lo primeiro de “sabe tudo” e depois de “sabichão”. Ele não abria mão de ter razão em tudo...

Ele não gostava muito desses epítetos, e por isso passaram a chamá-lo, em surdina, de “doutor Salsichão” aludindo a um indigesto prato servido na mesa do boteco. Mesmo o acicate da crítica dos parceiros não inibia o falso intelectual de dar seus “pareceres” e cansar a turma com sua sapiência. Não sei como terminou a história, ambientada lá por 1960.

Nas ciências do conhecimento, já ensinava o mestre Engelberto Hartmann († 1996), há as pessoas cultas e os indivíduos doutos. Os cultos são os que adquirem conhecimentos através dos estudos regulares, escolas, faculdades, livros, cursos, etc. Os doutos são os autodidatas, os que na ânsia de se apresentarem como sábios buscam formar-se nas mais espúrias fontes disponíveis, desde o Almanaque do Capivarol até os programas de respostas da televisão. A esses, Nicolau de Cusa († 1464) se referiu como “a douta ignorância”.

Atualmente, a essas fontes, como afirma Tarso Genro, se chamam “pós-modernidade fraudulenta”, onde o que caracteriza o conhecimento é procurar na Internet e em alguns canais duvidosos da tevê cabo ao invés de adquirir cultura pelas vias tradicionais, para compreender os fenômenos sociais e culturais da atualidade.

Hoje, igual aquele “doutor Salsichão” do passado, alguns se socorrem do “Google” para buscar subsídios e apresentar textos que parecem ser obras de intelectuais eruditos de renome.