Sobre os protestos nas ruas

Todas as manhãs, o trabalhador urbano brasileiro levanta cedo e pega um transporte coletivo abarrotado, mais próprio para animais que para gente. As pessoas permanecem em pé, coladas umas às outras, tentando se manter incólumes para chegar ao serviço de maneira apresentável; qualquer mancha eventualmente adquirida durante o trajeto, seja devida a sujeira visível, ou sentida pelo olfato, será, provavelmente, notada, apontada, escrachada; o trabalhador está sempre à borda da humilhação, deve permanecer atento para andar na linha.

Os criadores costumam atiçar seus animais constantemente; mostrar, diariamente, aos bichos, quem manda. O esquecimento dessa prática, o desleixo do dono, faz com que os animais retornem a um estado selvagem, percam a docilidade.

Talvez seja essa a “ética”, a diretriz utilizada pelos poderosos para manter a população sob o jugo. Talvez creiam que as pessoas, assim como os animais de tração, ou de montaria, devam ser espicaçados sistematicamente, ou se rebelarão, perderão a docilidade. Talvez, por isso, todos os dias pela manhã, o trabalhador é aviltado sendo obrigado a se submeter a um transporte abarrotado, lento, desconfortável e perigoso. Seu chefe não deixará de notar seu atraso ― e porque não saiu mais cedo se sabe que o ônibus sempre atrasa? Assim a culpa, a tensão constante, mantêm os trabalhadores na linha, cabisbaixos, calados, como bois destinados ao abate.

As normas de segurança exigem que as pessoas se desloquem atadas a cintos que as prendem a seus assentos. Os trabalhadores viajam de pé, apinhados como animais, não precisam de cadeiras, que diria de cintos de segurança. Essas normas não vigem nem para os trabalhadores nem para os animais.

Por espicaçar o rebanho diariamente, os donos das companhias de transportes, esses feitores contemporâneos, amealham fortunas extraordinárias. Em conluio com os políticos que administram as cidades, cobram tarifas exorbitantes pelo serviço desleixado, ignóbil, humilhante. O trabalhador se vê obrigado, diariamente, a se comprimir em uma multidão de explorados no interior de um veículo, e a pagar por isso uma parcela considerável de seu próprio salário. Pode-se ter absoluta certeza da exorbitância do preço da passagem ao se perceber que, caso fosse liberado o transporte público, muitos se prontificariam a executar o serviço até em carros de passeio, carregando apenas 4, ou 5 pessoas, em contraste com as 200 eventuais em um ônibus.

Caso os políticos não embolsassem parcela considerável do valor da passagem paga pelo trabalhador, permitiriam uma flexibilização dos transportes públicos, acabariam com o monopólio das linhas de ônibus, mas ele levam muito dinheiro sujo para manter as coisas como estão, e o preço exorbitante das passagens.

Os motoristas e cobradores também sabem o quanto o transporte aviltante é lucrativo, razão pela qual, frequentemente, tentam abocanhar alguma migalha desse imenso bolo.

Os que protestam querem, simplesmente, ser tratados como gente, não como animais; querem ter à disposição um transporte com que cheguem ao serviço dignamente.

Os protestos nas cidades brasileiras podem ser resumidos em uma única palavra: DIGNIDADE.