Liberdade e autonomia

LIBERDADE E AUTONOMIA

Aquele que crê em Deus pode dispor livremente de todas as

coisas. (Bernhard Haering)

Em termos do uso da liberdade, como característica do ser humano, o consagrado escritor russo F. M. Dostoievsky († 1881) levanta (in Os irmãos Karamázovi) uma interessante questão: “Se Deus não existe, então tudo está permitido!”. Nesse conjunto de premissas, pensava ele, como outros religiosos de seu tempo, que só a crença no Absoluto pode ser a garantia da ação moral. Os avanços das modernas ciências do pensamento demonstram o contrário. A lei natural., conforme já vimos, dota o homem de um conhecimento do bem, inscrito em seu coração, que o capacita livremente a uma conduta socialmente ética, como os índios, por exemplo.

Além disto, revela um modelo incoerente de condução da liberdade, uma vez que, segundo ele, as pessoas não cometem mais atos ilícitos por causa da existência de Deus. É como que uma Teologia do medo, em que se assume atitudes éticas, não por convicção ou fundamentos morais, mas pelo temor de uma sanção divina. O uso consciente, bom ou equivocado, da liberdade, proporciona ao ser humano graça ou queda. Na medida em que o indivíduo peca, sua liberdade se está afirmando egoisticamente, e recusando a amizade de Deus. Ele se recusa a aceitar a liberdade como dom de Deus para ser usado qual resposta a Deus. Assim, o próprio dom de Deus, da verdadeira liberdade, é mal usado, mediante uma espécie de ruptura radical.

A liberdade dessa compulsão à ruptura, que introduz significativa contradição no mais íntimo do ser, é possível por causa da morte de Cristo. Seu generoso sangue, derramado na cruz, comprou, para nós, a libertação. Enquanto Adão desejou usar a liberdade em seu próprio favor (ser igual a Deus), Jesus honrou sua liberdade como dom do Pai, esvaziando-se, aniquilando-se e entregando-se por amor à humanidade. Há nessa livre-escolha (cf. Fl 2, 5-11) da entrega o fundamento moral que é paradigma do cristianismo. Nesse particular, a liberdade é o leitmotiv da ética cristã, pois por ela, através da fé, sabemos que Deus nos cumulou de dons, a partir da criação, em liberdade para tomarmos quaisquer decisões. Pela criação, o poder libertador do Verbo de Deus vem ao encontro da humanidade pelo mistério da Graça.

Na liberdade nós respondemos a esse dom, pela fé. A liberdade, como um dom do Espírito (cf. 2Cor 3, 17) permite ao homem discernir os critérios éticos da Palavra de Deus e colocá-los em prática. Nesse particular, a Igreja, como depositária dos preceitos morais e das verdades reveladas, torna-se sinal da liberdade que brota do evangelho. Na contramão de Dostoievsky aparece Santo Agostinho, que diz ama (verdadeiramente) e faze o que o amor quer.

Sem reconhecer os méritos da liberdade cristã, F. W. Nietzsche († 1900) tentou provar que os valores tradicionais, como moralidade, mansidão, liberdade e serviço, preconizados pelo cristianismo, tinham perdido poder na vida das pessoas, o que chamou de niilismo passivo, expressando esse pensamento com a sentença: “Deus está morto!”, quando atacou aquilo que chamou de “moral de escravos”, criada, segundo ele, por pessoas fracas e ressentidas, que estimulavam comportamentos como a submissão e o conformismo.

Com isso, Nietzsche lutou pelo imperativo ético de se criar valores novos. Sua discussão sobre essa possibilidade evoluiu até configurar o retrato de übermensch (o “super-homem”), um ser forte, antítese da fraqueza do crucificado, guiado pela “vontade do poder”.

A visão filosófica de Nietzsche pode ser resumida na idéia do “eterno retorno” dos estóicos e sua concepção antropológica na tese do “super-homem”, como uma decorrência da negação de Deus. A ênfase do escritor alemão apon-tava, ao contrário do que crêem os cristãos, para uma ausência de Deus, criando, com essa vacuidade, um estado de angústia a quem se sente desamparado. Sua vida foi carente de amor. Não tinha fé e não conseguiu amar. Sua revolta, quem sabe, foi por não conhecer o amor de Deus e de não se sentir amado por ele.

Com efeito, uma vez que “o amor vem de Deus” (cf. 1Jo 4, 7), amar verdadeiramente, sem a mínima coloração egoísta, subentende amar bem, amar de verdade, pois amar como Deus ama e como Jesus amou não admite meias-verdades nem atitudes dúbias. O amor (o agápe) só quer o bem do outro, e por isso não pratica o mal (cf. 3, 10). Quem ama (a Deus e ao outro, como Deus ama) só busca o que é bom, reto, justo, moral. Quem procura agradar a quem ama nunca sai da linha traçada.

A liberdade, destarte, resulta num amar sem medo. O amor, de fato, livre e consciente, bane qualquer forma de temor (cf. 1Jo 4, 18). Há os que amam por medo de castigo, numa autêntica síndrome de Estocolmo, em que o seqüestrado afirma amar o seqüestrador para fugir do sofrimento. A liberdade de quem ama, de quem é fiel, afastando o medo, indica a forma mais adequada de conduzirmos nossa atitude humana. Nela, liberdade, encontra-se o modelo de fidelidade a Deus, pois em sua prática estão as qualidades especificamente cristãs à luz das dimensões e perspectivas dinâmicas encontradas no Novo Testamento.

A primeira liberdade consiste em estar isento de crimes, como o homicídio, o adultério, o furto, a fornicação, a fraude, o sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém principia a não ter esses crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça para a liberdade, mas isso é apenas o início da liberdade, não ainda a liberdade perfeita.

A conduta moral fica prejudicada quando usamos mal nossa liberdade. Por exemplo, não é moralmente lícito querer escolher em que frente de trabalho se vai servir a Deus. É agir como o profeta Jonas, que mandado por Deus a um lugar, apanhou um navio e foi para outro, bem diferente. Nas comunidades, amiúde, se observa pessoas escolhendo hora, local e tarefas, sob mil pretextos. E se assim não for, ou não fazem o trabalho solicitado ou cumprem-no de má vontade.

Quem age assim demonstra não ter liberdade de espírito, e por causa desse comportamento, torna-se escravos da vontade, dos caprichos, do amor-próprio, da auto-estima, e esta é uma atividade moralmente inválida, pelo menos sob o fulcro da Teologia Moral, pois quem assim procede, não tem merecimento naquilo que faz. Para estes, o jugo de Cristo se torna mais pesado.

A Igreja abriu para os teólogos e biblistas uma era de liberdade na pesquisa e na busca de fidelidade ao evangelho de Cristo, facultando, a partir da Encíclica Divino Afflante Spiritu (Pio XII, 1943) uma ponderável carga de autonomia à interpretação das Sagradas Escrituras, o que até então não era permitido. Conforme afirma B. Haering, um mestre da Teologia Moral,

A palavra criadora de Deus é um chamado, porque nós devemos

ser imagens de nosso criador, não somente a fim de podermos

livremente adaptar e configurar a terra, mas acima de tudo, para

ficarmos com ele em liberdade. Deus nos chama para si e,

assim, oferece-nos repouso e paz. O grande tema do sábado,

por exemplo, introduz, repetidas vezes, a visão da adoração e

da liberdade. O homem só pode ser livre, como um adorador que

encontra sua paz e sua morada em Deus. Contrastando com as

religiões pagãs, a história da libertação é uma palavra

libertadora. Aquele que crê em Yahweh não conhece tabus; pode

dispor livremente de todas as coisas. No entanto, há um limite

absoluto: a dignidade, diante de Deus, de cada um e de todas

as pessoas (in: Livres e Fiéis em Cristo).

Na filosofia pagã de Aristóteles, a divindade surge como um primeiro motor-imóvel do homem. A Bíblia reflete de outra forma, mais na linha revelacional, banindo aquela idéia de causalidade, para apresentar Deus como uma força eminentemente criadora, criação essa que dimana de sua palavra. O que Deus diz, acontece. A relação entre verdade e liberdade pode ser vivida e avaliada, unicamente se os dois termos se manifestarem afins e operativos. O retraimento operativo da verdade (verdades particulares, sectárias, privadas, dadas a fundamentalismos e integrismos) cerceia a liberdade e torna inviável o diálogo.

Não é possível uma aproximação da verdade sem liberdade ou respeito à pluralidade. Uma tentativa nesse sentido sempre levará a meias-verdades, coisa imperfeita e como tal, insuficiente. Um caminho assim, negado a muitos pela imposição de decretos, sem a possibilidade da crítica ou de discussão, impede, muitas vezes, que se chegue àquela “verdade que liberta” (cf. Jo 8, 31s).

Nesse espírito, dentro do ético, surge a necessidade da autonomia, isto é uma liberdade moral, de se pensar/agir como quiser. Autonomia vem de dois verbetes gregos, autós + nomos, onde o primeiro inflete no sentido de “coisa própria” e o segundo, de “lei”. Nessa seqüência, vemos a autonomia como uma “lei própria”, em um desejo de libertação, às vezes do excesso de leis; em outras, de leis em desconformidade com a justiça, a misericórdia e a ética.

Como a liberdade, a autonomia é neutra a valor. Terá o valor que a ela dermos, em relação à nossa condução social. Em alguns casos, a autonomia é salutar; em outros, prenúncio de anarquia: “O anseio por uma autonomia viu nas normas éticas e morais uma violação à dignidade humana e à sua liberdade” (J. P. SARTRE, As Moscas, Paris, 1970).

O grito de rebeldia de Orestes ecoa em muitas consciências, que se sentem sufocadas pela possível perda de sua liberdade. O medo do homem de ser escravo sob princípios que o alienem de sua liberdade, fez surgir a ética da situação, como um protesto ante a excessiva submissão à norma formal. Disso brota a angústia de quem se sente oprimido, e decide - ele próprio - criar suas normas. Da autonomia, via-de-regra, pode surgir a anomia, ou seja uma ausência de critérios, onde os fatos passam a ser julgados pelo casuísmo que brota de cada circunstância.

Cria-se o medo de viver, e, no dizer de M. Heidegger († 1976) “a angústia pelo fato de não saber como se vive no mundo” (in Sein und Zeit, 1926). Escrevendo aos cristãos da Igreja de Corinto, São Paulo adverte para que não confundam liberdade com liberalidade, equivoco este, capaz de confundir e causar erro nos menos esclarecidos:

Cuidem, porém, que a liberdade de vocês não se torne ocasião

de queda para os fracos (2Cor 8,9).

Ora, se sabemos que só o homem livre é capaz de realizar o bem e que a liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem, por que há tantas reticências quanto ao uso da autonomia. É certo que Deus quis deixar o homem entregue às suas próprias decisões (cf. Eclo 15, 14) para que o busque e chegue à perfeição, por que então impedi-lo de pensar livremente?

A moral se chama autônoma ou heterônoma conforme o sujeito reconhece ou não uma autoridade externa e superior a ele mesmo como autor das regras de comportamento. Há que não se confundir a moral autônoma, discutível porém ética, com o falso teleológico, em que “os fins justificam os meios” conduz a atitudes não-morais.

Tomando um caso fictício, podemos analisar um silogismo com a inserção de uma premissa sofista: a) O destino do ser humano é ser feliz; b) ora, trocar de cônjuge (por uma pessoa mais jovem) faz a pessoa feliz; c) logo, é lícito trocar de cônjuge para ser feliz!

Tal visão, utilitarista e pragmática do outro não é um exercício de moral autônoma, mas de falsa moral, onde se avalia a moralidade apenas em vista de fins próximos e não do fim último. Nesse caso, o que se chama de moral autônoma é a falsa utilização de juízos éticos ligados, em particular a uma inadequada (ou distorcida) compreensão do objeto da ação moral que é o bem.

A vontade, neste caso, fica comprometida pelas escolhas que foram realizadas. Nesse bojo, se vê alguns se inspirando em conceitos de consciência autônoma, que gera a atitude moral elástica, do tipo (já visto) “cada um vai responder conforme sua cabeça”, mesmo que essa cabeça tenha autorizado atos fora do padrão moral revestido de um mínimo ético, ou contrários à lei eterna.

Não são poucos os que, em nome de uma descabida autonomia, agem conforme o zeitgeist em questões morais, como aborto, casar com divorciados, eutanásia, homossexualismo, etc. Outros, agindo contra o bem moral, buscam aliviar suas consciências, afirmando-se pecadores, frágeis, vulneráveis aos assaltos do mal, creditando seus desvios a esses fatores, sem manifestar nenhum esforço de evitar o mal praticado.

Não é aceitável fazer da fraqueza o critério da verdade do bem,

de modo a sentir-se justificado por si só, sem necessidade de

recorrer à misericórdia de Deus (VS 104).

Tais atos, frutos de novas teorias morais, como conseqüencialismo, laxismo ou proporcionalismo, não são fiéis à doutrina do evangelho, tampouco à moral, mesmo autônoma, uma vez que tentam justificar como moralmente boas, escolhas deliberadas de comportamentos contrários à lei natural e divina.

No terreno da autonomia moral é fundamental o discernimento, a fim de que haja uma diferenciação entre a especulação no terreno da moral (a busca de formas novas de enunciar a norma) e a anomia ou anarquia onde cada um age como quer, sem fidelidade a nenhum princípio ou regra de autoridade.

O autor é Filósofo e Doutor em Teologia Moral. Escritor, com mais de cem obras publicadas no Brasil e Exterior, entre elas “Teologia Moral trocada em miúdos”, Editora O Recado, 2013..