O beijo

De forma alguma eu vou engolir calada o tema desta semana, mas que será debatido continuadamente por outras semanas, o beijo homoafetivo visto na novela Amor à vida. Eu não só não vou engolir como vou também beijar. Quando um beijo acontece, é instintivo abrir a boca e fechar os olhos. Então me diga você como saber qual o sexo da boca. Boca é boca e língua é língua.Dizer que engulo o beijo demonstrado, nas cenas da novela, com a mais alta qualidade dramática sem dificuldade, é ser mentirosa, hipócrita.

Tudo o que vi durante a minha infância e adolescência e me foi inculcado na mente e na alma é bastante diferente dessa atitude de aceitação fácil e maravilhada. Entretanto, me predisponho a aprender e ver verdadeiramente de forma natural dois homens ou duas mulheres se beijando na boca.

Desde menina sabia dos costumes dos russos de se beijarem. Mas a Rússia, de tão longe que nos parecia naquela época sem tecnologia avançada, quietinhos em uma capital nordestina e de ares provincianos, era como se aquele país fosse uma invenção. Invenção ou não, o beijo russo foi se mostrando em outras formas e ritos, não mais como um traço cultural, mas como uma demonstração comum de amor e de desejo.

O que por toda parte do planeta já existia no silêncio, agora quer espaço e o espaço está sendo ofertado, mas a gente percebe o quanto ainda a sociedade moralista teimará em cercear a liberdade da beijação, o quanto a lei lutará pela causa que considera nobre, a da preservação da moral e dos bons costumes.

A expressão moral e bons costumes me faz percorrer um frio na espinha da alma, pois quase todos que conheço e que propalam essas coisas são justamente o contrário do que pregam. Outra expressão que me enoja é “moral ilibada”, arghh... Imoral mesmo é o preconceito, a violência, a homofobia, a xenofobia e a falsidade metida em vestidos de rainha.

Parafraseando Shakespeare, digo que há mais beijos homoafetivos entre o céu e a terra do que a nossa vã moralidade possa imaginar. E “por debaixo dos panos pra ninguém saber”. Por debaixo dos panos, honestos praticam a desonestidade, íntegros praticam a corrupção e, supostamente heterossexuais, agem diferente do que demonstram socialmente.

Gosto do argumento daqueles que frisam tantas outras coisas que passam por naturais, aceitáveis, legais e corretas, mas que são contra aqueles que seriam os verdadeiros bons costumes e moral: o amor, a solidariedade, a compreensão, o perdão.

É difícil, sim, para mim e para tantos outros, o exercício de dobrar a alma e compreender que duas pessoas queiram, sintam vontade e prazer em beijar, abraçar, acariciar, independentemente de serem do mesmo sexo. Claro que é difícil, mas, que precisamos compreender, sim também.

Aprender a compreender não quer dizer que estamos ficando mal acostumados e nem imorais, mas que estamos nos tornando tolerantes, compreensivos e reconhecedores da nossa condição humana. Aprender é como mostrou a cena final da novela, quando César, soberano e orgulhoso, demonstrou, pela primeira vez, amor ao filho. E que esse filho, numa demonstração ainda mais soberana, soube aceitar e retribuir.