PRISÃO DA ALMA: A BOATE KISS E O BEIJO GAY

Nesta Semana, muito se falou a respeito do evento mais esperado dos últimos tempos: a possibilidade de que um beijo entre homossexuais assumidos viesse a ocorrer em um ambiente televisivo de audiência e penetração sociais de larga escala. E, ao que parece, realmente isso aconteceu … mas, porquê? Onde está a relevância de um evento dessa natureza para uma sociedade politizada e totalmente integrada por uma enorme rede de dispositivos eletrônicos e de redes sociais dos quais pouco, ou quase nada escapa?

Causa uma certa estranheza àqueles que, como eu, não veem nada de anormal entre o amor e a paixão que nasce em uma relação não estereotipada por ditames que somente encontram eco no seio de pequenos grupos preconceituosos ou ainda eivados por uma falsa moralidade que se perde em meio aos milhares de escândalos que diariamente assolam não apenas este país como também todo o planeta.

Como admitir-se que um simples beijo cênico possa tomar as proporções de um evento tão retumbante que seja capaz, por si só, de chacoalhar as estruturas sociais, fazendo-as movimentar-se na direção da ampla e irrestrita aceitação a algo que, até aquele momento, ficava relegado à insignificância e à mesmice dos círculos onde tal prática não apenas é aceitável como também recebida com orgulho?

Há um enorme receio quanto tudo aquilo que revela-se, digamos, incomum, em uma sociedade onde notícias sobre chacinas e atentados, mortes causadas por motoristas bêbados, ações escandalosas de organizações criminosas e desvio de dinheiro público são tão comuns que já não chegam mais a causar o impacto jornalístico almejado pelos meios de comunicação, determinando-se que, um simples beijo, possa revestir-se da magnitude ideal para chocar a sociedade, fazendo-a pensar, … ou melhor, refletir sobre si mesma.

E se houvesse realmente essa reflexão, creio, ela deveria iniciar-se por questões mais simplórias, mas não menos importantes que os noticiosos destacam diariamente e que afligem dezenas, ou centenas de pessoas pelo mundo todo, … ou pelo menos por aqui, em nossa pequena aldeia provinciana e conservadora.

Alguém se lembra do massacre da Escola de Beslam, levado a efeitos por extremistas religiosos? Ou ainda mais recentemente do crime ocorrido com a família Pesseghini, que, segundo o delegado encarregado da investigação, encontra-se solucionado (?); e o que falar do caso do pedreiro Amarildo! E estes são apenas pequenos lembretes em um cenário de guerra urbana sem fronteiras e sem limites, onde corpos ensanguentados e tiroteios em plena selva de pedra foram banalizados pela indiferença e suprimidos pela angústia da insegurança com o dia seguinte.

Parece que nossas almas estão aprisionadas em gaiolas de cristal cuja dureza muito se assemelha à dureza com que criminosos agem à luz do dia, sonegando uma educação de qualidade e um atendimento médico minimamente digno e prestativo, desviando cachoeiras de dinheiro público – obtido a partir da taxação irrefreada acobertada por uma legislação confusa e repetitiva – para os bolsos, cuecas, meias e sabe-se lá onde mais possa ser ocultado descaradamente ante os olhos sem brilho de indivíduos que, enfrentam a labuta diária em um sistema de transporte público digno de chacota para apresentar-se ao trabalho oferecido por um empregador cuja honestidade é constantemente posta a prova pelo ataque massivo de fiscais, intermediários, milicianos e outros mais, cujo único interesse é o próprio bem-estar a qualquer custo.

E se isso lhes parece pouco, estamos olhando apenas a ponta do iceberg com olhos de foca.

Se detivermos nossos olhos embargados sobre o recente incêndio na Boate Kiss – recente, considerando que já se passou mais de um ano – podemos desfiar uma verdadeira colcha de retalhos repletas de negligência, imprudência e imperícia, que ceifou a vida de duzentas e quarenta e duas pessoas e deixou ainda um saldo de cento e dezesseis feridos, além de desalentar as respectivas famílias das vítimas, jovens em sua maioria, que acorreram para aquele lugar de “entretenimento” com o intuito de diversão pura, simples e inocente.

Segundo noticiaram na época, o incêndio foi uma verdadeira cornucópia de erros e omissões onde se destacam os seguintes pontos:

a) um documento precário emitido pelos bombeiros foi usado como Plano de Prevenção e Combate a Incêndio (PPCI), em 26 de junho de 2009;

b) apesar das fragilidades desse documento, o primeiro alvará de incêndio foi concedido pelo Corpo de Bombeiros, em agosto de 2009, com vigência de um ano;

c) a boate começou a funcionar em 31 de julho de 2009, somente com o alvará de incêndio, sem o alvará de localização da prefeitura, só emitido em 2010;

d) de agosto de 2010 a agosto de 2011, a Kiss ficou sem o alvará dos bombeiros, que só foi renovado em 9 de agosto de 2011;

e) na data do incêndio, o alvará estava novamente vencido;

f) a engenheira responsável pelo PPCI disse ter elaborado o plano conforme uma planta-baixa, em 2009, mas não acompanhou a execução das obras;

g) a boate foi notificada para fechar as portas em 1º de agosto de 2009, devido à falta do alvará de localização;

h) em vez de ser fechada, a boate foi somente multada, pelo menos quatro vezes, entre agosto e dezembro de 2009;

i) as multas foram aplicadas sucessivamente sem que o alvará fosse expedido e com a boate continuando a funcionar;

j) o alvará de localização foi finalmente expedido em 14 de abril de 2010, depois de oito meses de funcionamento;

k) a fiscalização da prefeitura fez uma vistoria em 9 de abril de 2012 e descobriu que o alvará de incêndio estava prestes a vencer;

l) nenhuma providência foi tomada.1

A pergunta que fica reverberando nos corações e mentes daqueles que tentam compreender o incompreensível é como vidas podem ser jogadas em um antro travestido de lugar de divertimento por um empresário com o mínimo consciência e responsabilidade?

Ora, nos parece claro que a principal lição do capitalismo moderno reside na obstinada busca por lucros crescentes com certa margem de segurança. E quando dizemos “segurança” nos referimos à segurança de obter-se o máximo de resultado com o mínimo de esforço utilizado, economizando recursos e ampliando o ganho em escala. Não se perde de vista o conceito de que “não existe almoço grátis”, pois tudo prescinde de uma retribuição.

Todavia, quando a retribuição ultrapassa os limites do razoável, esse ganho em escala sofre os efeitos nefastos da redução de custos a qualquer custo, otimizando os recursos que estão disponíveis. E é essa a razão pela qual, faz-se lotar um ambiente com capacidade para, digamos, duzentos e cinquenta pessoas com mil! Ou ainda, preferir um “projeto” tocado por alguém com alguma habilidade em substituição ao profissional qualificado e capacitado para exercer aquele mister.

Ocorre que é preferível ver-se tudo isso racionalizado por uma celeuma televisiva onde dois atores jovens, bonitos e sensuais, trocam um beijo em escala nacional, arrancando suspiros, devaneios, críticas e repulsa dos mais variados substratos sociais.

Prende-se a alma do telespectador com cenas tórridas em um programa de show/realidade, com corpos sarados e tatuados, exibindo-se despudoradamente em pleno horário nobre, com um apresentador cuja pobreza de espírito somente se iguala a de outro que adora fazer piadas de mau gosto, achando-se melhor que a maioria.

Choca-se a sociedade com aquilo que ela deseja de forma oculta, omitindo-se outros fatos cuja relevância é, no mínimo, risível em termos de audiência televisiva e noticiosa. Quem é capaz de acreditar que o cenário do presídio de Pedrinhas, no Maranhão, tenha eclodido subitamente, do dia para a noite, justificando o discurso da governadora de que a criminalidade aumentou porque a população ficou mais rica (!).

Legisla-se interesses próprios em detrimento dos interesses públicos, que, de acordo com MALCOM X impõe que “Se você não cuidar, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo.”

E com esse pano de fundo, crê-se que a máxima dita por Abraham Lincoln que “pode-se enganar todas as pessoas por algum tempo e algumas pessoas durante todo o tempo. Mas não se pode enganar todo o mundo por todo o tempo” ainda seja capaz de sobreviver ao ataque indiscriminado daqueles que querem que a maioria acredite que os crimes cometidos contra a sociedade são, na verdade, atos de puro patriotismo.

Que patriotismo é esse que esvazia os bancos escolares para lotar ambientes insalubres onde se explora o trabalho escravo, ou ainda onde se oferece uma saúde pública fundada apenas no puro demagogismo de ações cujo resultado, além de pífio não pode ser medido em termos de qualidade efetivamente sentida por todos.

De fato, nossas almas estão aprisionadas em gaiolas brilhantes de consumo desenfreado, de egoísmo narcisista e de diálogos que ocorrem apenas em meio virtual, deixando em segundo plano a coexistência humanitária, a fraternidade e a esperança de dias melhores, onde o homem seja visto pelo que ele é e não pelo que ele vale.

Se quiséssemos, poderíamos dar um tiro de misericórdia nos meios de comunicação que apenas disseminam aquilo que lhes interessa e que lhes proporciona ganho em escala … mas, ao invés disso, preferimos cerrar fileiras de descontentes que reclamam isoladamente, que clamam pelo fim do toque de recolher estabelecido por traficantes e criminosos cuja organização e capacidade de ação amedronta e inibe, mas que, por outro lado, fecham olhos ao menor abandonado, fechando o vidro de seus carros e transformando suas casas em castelos quase inexpugnáveis que acabam por transformar-se em prisões luxuosas alimentadas por uma infraestrutura caótica e sem qualquer planejamento.

Não basta criar-se corredores exclusivos de ônibus sem antes estimular-se o transporte coletivo em detrimento do individual, ao mesmo tempo em que se baseia o crescimento econômico em maiores volumes de vendas de automóveis populares. Há de fazer-se planejamento estruturado, consciente, buscando um resultado que possa ser sentido e não apenas visto.

E para deixar claro que isto não se trata de uma crítica pela crítica, destaco o fato de que o incêndio na boate Kiss não é um evento isolado. Não é ela o cavalo de batalha a ser eviscerado até expor as mazelas de uma sociedade moderna que ainda não sabe escolher o que pretende ser. E também não se trata de uma crítica à sexualidade de qualquer pessoa, posto que acreditamos piamente que se trata de uma escolha de vida a ser respeitada.

Tudo que foi dito aqui, diz respeito ao vazio produzido por nosso próprio aprisionamento interior, que não nos torna pessoas melhores ou piores, mas também não opera para o futuro quando nos lembramos que neste mundo somos apenas visitantes passageiros e que e melhoria e o aprimoramento são dádivas a serem deixadas para as gerações futuras.

Cada vez que dermos mais valor ao que dizem nossos sentidos e nossa libido quando vemos uma cena tórrida e sensual, deixando em segundo plano a contundente realidade que nos cerca, apenas porque essa realidade dói aos olhos da alma, nos tornamos prisioneiros de nós mesmos; prisioneiros em gaiolas de cristal que saboreiam experiências comportamentais de confinamento, beijos gays e pequenos vídeos estapafúrdios no “You Tube” e que, mesmo assim, sentem-se vazios, tristes e depressivos. A alegria e a felicidade são tão passageiras que, na maioria das vezes, sequer é percebida.

Por fim, não podemos deixar de lado a ação extremamente agressiva do grupo que se auto intitula “Black Bloc”2, cujas ações violentíssimas tem deixado nu um governo que não baseia suas atividades em disciplina e organização, pois, ao que parece, o caos lhe caí muito bem, ultrapassando os limites da permissividade, e chegando à beira do anarquismo. As ações revoltosas, organizadas por intermédio de redes sociais, trazem em seu bojo um descontentamento fútil, que apenas atua no sentido do caos pelo caos, enquanto a população vê-se fragilizada e posta na situação de refém.

Um refém que tem, de um lado, a apologia à desordem e, de outro, a inércia de uma atuação governamental muito mais preocupada com a imagem do que com o resultado. Apenas para não esquecer, lembremo-nos da mais célebres das frases do poeta alemão Goethe que afirmava: uma ideia não pode ser combatida pela força das armas; uma ideia somente pode ser combatida com uma ideia melhor”. E ideias não surgem se não houver um mínimo de esforço e um máximo de comprometimento com um mundo cada vez melhor.

Livremo-nos, pois, de nossas prisões de alma para voltarmos a ser quem realmente somos, homens livres, honestos e responsáveis por nossas ações, e não apenas meros marionetes manipulados por mentes sem alma ou almas destituídas de corações.