No princípio está o amor

NO PRINCÍPIO ESTÁ O AMOR

Deus, a cada etapa da criação do mundo, contemplava sua obra e exclamava: “Está muito bom!” (cf. Gn 1, 10). Estava muito boa a criação da terra, a fixação dos astros no espaço, descrevendo contínuas e intermináveis trajetórias, a separação da terra e das águas, os animais, as plantas, praias e florestas. Após criar o homem, à sua imagem e semelhança, Deus viu, pela primeira vez, que algo não estava bom e precisava ser modificado: “Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma companheira” (Gn 2, 18). Ora, sabemos que o Antigo Testamento é composto de muitas perícopes, como retalhos escritos em muitos séculos, por diversos autores e que esse monólogo, imaginado pelo escritor sagrado, é uma ficção literária, mas que por trás revela a preocupação de Deus com o bem-estar e a felicidade do ser humano.

Deste modo, de toda a criação irretocavelmente perfeita, a solidão (mesmo temporária) do homem, era a única imperfeição a consignar. O único senão da criação era o homem sem uma companheira, sem a presença marcante da mulher ao seu lado. Criada a mulher, Deus abençoou o novo casal, dizendo: “Cresçam e se multipliquem, encham a terra e exerçam sobre ela seu domínio” (Gn 1, 28).

Sobre a criação da mulher, a partir de uma costela de Adão, é visto tratar-se de uma alegoria literária, para dizer que a mulher saiu de junto do homem. A imagem da costela presta-se para algumas reflexões. Deus não tirou a mulher dos pés do homem, pois daria uma noção de inferioridade; nem tirou da cabeça por que estabeleceria uma relação de superioridade; não a tirou dos órgãos sexuais, pois a reduziria a um mero instrumento de reprodução e prazer; não a tirou das mãos, para não significar serviço, nem da frente ou das costas, para não subentender um ir à frente ou atrás; não! Deus tirou a mulher de uma costela. Essa figura do escritor sagrado é extremamente feliz e reveladora na medida em que dá a entender uma posição ao lado, nem mais nem menos, nem acima nem abaixo, nem à frente nem atrás, mas ao lado, perto do coração...

Na pressa das leituras superficiais, a gente costuma, muitas vezes, passar por cima de muita riqueza de conteúdo. É a triste correria de nosso tempo, que nos leva a buscar textos padronizados, já mastigados, interpretados, apenas com cruzinhas a marcar, que desprezam, em muitos casos, nossa capacidade de pensar, de refletir, de intuir. Nessa pressa, quase sempre perdemos o sentido de um texto, deixamos de apreender a mensagem subjetiva, algo que julgamos acidental, mas que, quase sempre é essência. As determinações dadas pelo Senhor, desde o princípio, são quatro, a saber: crescer, multiplicar, encher a terra e dominá-la.

Crescer não significa aumentar de estatura ou de peso, mas buscar, no decorrer da vida, evoluir em graça diante dos olhos de Deus. Há um momento em que o crescimento físico estanca, o aumento da sabedoria e dos valores culturais diminui, e só a graça de Deus, a amizade com ele, é que se torna constante, crescente e irradiante. Nesse particular o crescer, ordenado por Deus é colocar em nossas vidas todos aqueles valores morais intuídos pelo coração na relação amorosa com Deus. O amor é um vivo exemplo de valor que precisa ser crescente, pois só a dinâmica da prática cotidiana tem forças para torná-lo estável e vivificado. Amor que não cresce, que é incapaz de transbordar, não é amor, é qualquer outro senti-mento, quem sabe uma ilusão, talvez uma tentativa...

O que não cresce, estaciona, tende a diminuir, a desaparecer. O ser humano, maduro, capaz de dar seqüência a uma relação adulta, é aquele que procura, a cada dia que passa, tirar dos sinais do mundo, lições e ensinamentos, capazes de elevá-lo na graça-amizade de Deus e no convívio com seus semelhantes. Um casal cresce quando assume, com vigor, todos os compromissos daquele juramento que pronunciou no dia de seu casamento. O amor, o respeito, a fidelidade, o interesse e o carinho entre duas pessoas, são fatores propulsores de um crescimento metódico, harmonioso, progressivo e racional. Nenhuma relação em que constem tais ingredientes, em porções generosas, está fadada ao desaparecimento, à involução, ao esfriamento. As crises decorrentes da fraqueza humana, não são raras de acontecer, mas podem ser contornadas e superadas, pois onde há amor, existe tolerância, e a tolerância gera a boa vontade e o perdão, que se tornam porta aberta para um recomeçar.

Não é só na bonança e na fartura que se cresce. Também os problemas, as crises, a falta de recursos, e até a morte, se assimilados com o coração, nos fazem crescer, pois nos colocam frente-a-frente com as realidades da vida, com a dor de nosso semelhante. Nas horas de crise, só o amor consola e cura as feridas. Num casamento, ambos crescem quando aprendem a ver no outro o destinatário de seu amor e de seu desejo de servir. É imperioso ver, com os olhos da fé, no cônjuge, uma ponte que o Pai, em sua infinita bondade e sabedoria, colocou em nossas vidas, como instrumento de crescimento e salvação recíprocos. Desde o princípio Deus tirou mulher e homem do inferno da solidão para realizá-los no paraíso do aconchego, onde a Santíssima Trindade aparece como modelo para o convívio familiar, respeitoso das diferenças e justo. Deus em seu inefável mistério não é solidão, mas família.

Depois de crescer, o Criador deu ordem para multiplicar. Aprendemos, através da aritmética, que a multiplicação se verifica através da soma. Só poderá fazer uma multiplicação quem souber somar. Numa relação amorosa entre homem e mulher, no âmbito sacramental de um matrimônio, a soma não se limita ao simples 2+2, mas mais profundamente no “você mais eu”, cujo resultado será, invariavelmente, nós. Multiplicar-se é levar adiante a vida através do amor. A procriação resulta de um processo físico mais ou menos lógico. Nesse contexto, os animais e os vegetais se reproduzem e multiplicam suas espécies, em cumprimento aos eternos ciclos da natureza. Com o ser humano a coisa é diferente. Apenas o homem e a mulher colocam o amor, a inteligência, os objetivos de vida e também a razão, em sua união mais íntima, buscando a satisfação recíproca, bem como gerar filhos por amor e para o amor.

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No princípio o Senhor mandou, também, encher a terra. Encher a terra é povoá-la, mas mais que isto, é torná-la, de forma racional e consciente, cheia de amor, transbordante de vida, plena de afeto, como quis o Criador. Encher a terra é completá-la com mananciais de carinho e doação, preparando para vida plena, pessoas com envergadura emocional. É, na vivência do mistério da unidade familiar, atingir a tão sonhada felicidade. Gerar filhos é uma ordem de Deus. Gerar seres abandonados à própria sorte é um pecado e um crime. Colocar no mundo pessoas para a massificação, ou em condições de extrema indigência afetiva e material é, no mínimo um desrespeito à criação. Pais irresponsáveis geram filhos desestruturados. No matrimônio, a família encontra a força para realizar sua função de encher a terra, como Deus, desde o princípio, quis.

O autêntico amor conjugal assumido no amor divino é dirigido e enriquecido pela força redentora de Cristo, e pela ação salvadora da Igreja, para que, assim, os esposos caminhem eficazmente para Deus e sejam ajudados e fortalecidos na sua missão sublime de pai e mãe. Nesse particular, o amor de Deus não cansa de inspirar as famílias na missão de encher a terra, como um extravasamento do amor, refazendo continuamente a aliança, na busca daquela paz que só ele pode dar. Já foi dito que o futuro da humanidade passa pela família, mesmo assim, a família é, nos dias de hoje, uma das instituições mais atacadas, sofrendo as piores campanhas visando uma desestabilização. A família cristã é chamada a oferecer a todos, seu testemunho de uma dedicação generosa e efetiva pelos problemas sociais, mediante a opção pelos pobres, cuidando especialmente dos famintos, dos indigentes, dos anciãos, dos doentes, dos drogados e dos sem-família

Se considerarmos que em Deus não há passado, só presente, a expressão bíblica no princípio quer dizer desde sempre, ou seja, Deus ama o ser humano desde toda a eternidade, e preparou para ele, no sinal sagrado do amor, um projeto de felicidade e realização. No princípio é uma expressão bíblica, referente à eternidade que não tem começo... É um tempo sem antecedentes. A constatação, desde o princípio, que não é bom que o homem esteja só, não é, na verdade uma conclusão meramente humana, mas está contida na Palavra de Deus. A vida matrimonial, na riqueza de seu estado próprio, proporciona ao casal uma realização pessoal que os habilita a ser para, a estar a serviço, no lar, nas profissões, na sociedade, no mundo. Essa realização, é bom que se repita, deve ser conjunta; jamais isolada. Ninguém cresce ou se realiza sozinho, mas através de interação e integração com o outro. Eu realizado? Não é tão importante! O fundamental é: nós, como casal, realizados. A realização isolada é instrumentalização, uso egoísta do outro, negação do amor. Desse modo, uma realização assim é ilegítima.

A família é escola de virtudes humanas na medida em que vive o amor, desenvolve os dons espirituais e acolhe a Palavra de Deus. Todos nós estamos certos que só com o acolhimento das verdades do Evangelho a família encontra sua realização plena. A esperança que os noivos colocam no matrimônio fundamenta-se sobre o amor, e esse, sabemos, vem de Deus, pois Deus é amor. Deus-Pai Criador achou que não era bom o ser humano estar sozinho, por isso inventou o matrimônio capaz de unir em seu amor, um homem e uma mulher. Estar só é estar desamparado, desprovido de perspectivas futuras. Estar junto é fazer-se presença mesmo na eventual ausência; é dar amor, dedicação, fidelidade aos compromissos assumidos; é ser maduro para caminhar em unidade, física, afetiva e espiritual. O masculino se completa no feminino e este naquele. A companhia do outro serve para nos realizar e nos tornar felizes. Também é bom que o casal não esteja só. Com ele, em seu meio, revitalizando seu amor, deve estar sempre aquele que é amor, vida, luz: Deus.

O autor é, junto com a esposa Carmen, especialista em família, atuando na Pastoral Familiar, em encontros, cursos de noivos, terapias de aconselhamento e seminários para casais. Escritor, com mais de cem obras publicadas, entre elas “Quer casar comigo?” (Ed. Paulinas, 1983), “A família Modelo” (Ed. Loyola, 1986), “A casa sobre a rocha” (Ed. Vozes, 2ª. edição, 1996) e “Vivência e convivência” (O Recado, 2012).