DO FLAGELO HÍDRICO

O problema não é a escassez de água, mas sua má gestão para atender às demandas humanas e dos demais seres vivos.

Leonardo Boff

Sede e fome (afora reações normais) são degenerações que traduzem o quanto de decadência humana atingimos. São construtos desintegrantes dos quais emergem gritos lancinantes: "tenham vergonha na cara". Reflitamos sobre a violência hídrica.

À semelhança do oxigênio, a água é vital e insubstituível. Diferentemente daquele, contamos com apenas 0,7% a nosso dispor; entram nisso, abrenúncio, jogatinas financeiras. O alerta de Leonardo Boff há de ser considerado: “Vigora uma corrida frenética de grandes multinacionais para privatizar a água”. Não sou profeta, mas não hesito em reafirmar, como Ismail Serageldin, que, ainda neste século, serão travados ferozes combates pela água potável. As bestas desse flagelo estão em marcha.

As estatísticas mais otimistas apontam que em 2020 três bilhões de pessoas padecerão de sérias e profundas consequências por não terem poder aquisitivo que lhes permita comprar água. A “hidrocanalhice” solapa a Ética, ri do Ecológico e desdenha cinicamente da dimensão Espiritual. Privatizar a água, submetê-la à lógica das negociações comerciais é embotarmos nossa inteligência e aceitarmos a sem-vergonhice do “a vida é assim mesmo. Fazer o quê?”

A água para o lucro é veneno, é deslavado bem econômico, é estúpida mercadoria. Se as águas renováveis chegam a quarenta e três mil quilômetros cúbicos por ano e o consumo total perto de seis mil quilômetros cúbicos por ano, onde está o problema? Ora, meu Deus, na demoníaca distribuição. Analisemos estes dados constantes no livro “Homem: satã ou anjo bom?”, de Boff: 60% se encontram em apenas nove países, ao passo que outros oitenta países enfrentam escassez. Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente, enquanto para 1,4 bilhão ela é insuficiente, e para dois bilhões não é tratada, o que gera 85% das doenças constatáveis. Presume-se que em 2032 cinco bilhões de pessoas serão afetadas pela crise de água.

Um dos silêncios mais covardes dessa distorção entre “água como fonte de vida e água como recurso hídrico” é aquele que encapota o fato de seis mil crianças morrerem de sede todos os dias. Massifica-se essa estultícia como natural, não é tal prática o triunfo da barbárie? Nada menos que 1,7 milhão delas morrem anualmente por ingerirem água contaminada. Em torno de 12% de nossos pássaros, até 2030, podem desaparecer vitimados pela sede. Some a esse descalabro o fato de, hoje, a cada cinco pessoas no mundo, uma não consegue acessar água potável e saneamento. É ingenuidade, amigo, deduzir, por exemplo, que os conflitos no Oriente Médio dizem respeito só aos complexos fenômenos religiosos, à ocupação por Israel de terras palestinas ou à cobiça do Ocidente pelo petróleo. Na verdade, afirma Jamil Chade, cada vez mais a razão dos conflitos é a água, usada como instrumento de guerra ou tomada como refém.

Quantos Elfemish Chabalet (quem se lembra dele?) terão de morrer a fim de que o machado da consciência crítica parta essas geleiras materialistas e outro paradigma aflore deveras antagônico a esse agir de cunho instrumental-analítico-utilitarista? Até quando caminharemos insensíveis, descuidados, irresponsáveis e tolos? A água, enfim, é “matriz de todas as formas de vida sobre a terra”. Ela, na expressão sábia boffiana, é vida, é geradora de vida, é um dos símbolos mais poderosos da vida eterna. Oxalá saiamos dessa aflição civilizatória inaugurando um novo tempo no qual jamais ouçamos: “tenham vergonha na cara”.