IMPASSES DO MODERNISMO
 
Abaggnano, em seu Dicionário de Filosofia, informa que o termo "moderno" significa “atual” e designa o período da história que se inicia após o Renascimento, a partir do século XVII, e vincula-se a termos chave como razão, historicismo, ciência, técnica, progresso, emancipação do sujeito, metafísica, niilismo e secularização. Aquilo que o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) identifica como a época da racionalização técnico-científica acompanhado de um desencantamento do mundo. A Escola de Frankfurt identifica no modernismo a manifestação extrema da dialética suicida que caracteriza a civilização burguesa. Heidegger observa no modernismo a época do niilismo e da tecnologia planetária .

Para o cientista político e ensaísta Marshall Berman:

 
Nossa visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis, o material e o espiritual: algumas pessoas se dedicam ao “modernismo”, encarado como uma espécie de puro espírito, que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos; outras se situam na órbita da “modernização”, um complexo de estruturas e processos materiais — políticos, econômicos, sociais — que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana. Esse dualismo, generalizado na cultura contemporânea, dificulta nossa apreensão de um dos fatos mais marcantes da vida moderna: a fusão de suas forças materiais e espirituais, a interdependência entre o indivíduo e o ambiente moderno. (BERMAN, 1989, p. 129).
 
O fato é que o debate sobre a modernidade tem dividido corações e mentes em face da crise que se instaura em torno do projeto de modernidade, sobretudo na crença no progresso da razão e da ciência, e na emancipação dos homens através da universalidade de acesso a direitos e a benesses econômicas. Essa “condição” pós-moderna se contraporia à modernidade e às suas metanarrativas totalizantes, que têm como marco a obra A condição pós-moderna, de Jean-François Lyotard. Assim ele caracteriza as metanarrativas:
 
Aquelas que marcam a modernidade: emancipação progressista da razão e da liberdade, emancipação progressista ou catastrófica do trabalho, enriquecimento da humanidade através do progresso da tecnociência capitalista [...] salvação das criaturas através da conversão das almas à narrativa crística do amor mártir. (LYOTARD, 1993, p. 31).

Essas metanarrativas, como assegura François Lyotard, encerram metateologias, verniz para encobrir discursos totalizantes e dominadores que servem a ideologias nada emancipatórias. Elas legitimam os poderes vigentes, sejam eles políticos, ideológicos ou econômicos e não se dão a partir de um ato originário fundador, mas num futuro, numa ideia a se realizar. Essas ideias têm um valor legitimante pelo seu caráter universal. Assim, a modernidade e seus “ismos” são projetos em que a modernidade se calca. O projeto que Habermas afirma estar inacabado e que deve ser retomado. Para os pós-modernos a modernidade se encerrava em suas próprias contradições e assim o homem enfrentava novamente o desafio de ser lançado ao mundo sem nenhum sistema metafísico que o ampare e dê sentido à sua existência. Se Deus está morto, se a revolução não nos salvou, salvemo-nos a nós mesmos. Por falta de interesse, dizia um slogan pós-moderno, “não existe o amanhã”.

Nessa linha de raciocínio, Gilles Lipovetsky (2004) afirma que a condição social pós-moderna é comandada por este ideal de controle soberano de si e por essa luta sem fim contra o preexistente e o herdado. No entanto, observa que o indivíduo pós-moderno é excessivamente caricaturado, como uma mônada fechada sobre si mesma. Cada um se quer autônomo para construir livremente, à la carte, o seu ambiente pessoal. Vivemos numa época da mobilidade subjetiva. Cada um se serve. Fica o problema para aqueles que não conseguem ter acesso a essa mobilidade, que para o autor é um imperativo das democracias liberais. A mobilidade e a autonomia têm levado cada vez mais os indivíduos para a ansiedade e a depressão. O autor irá afirmar:

 
Narciso não é o individuo triunfante, mas o individuo fragilizado e desestabilizado por ter de carregar-se e de construir-se sozinho, sem os apoios que outrora eram constituídos pelas normas sociais e referencias coletivas introjetadas. A figura dominante do individuo democrático foi, durante algum tempo, a euforia de liberação, agora é cada vez mais dificuldade de viver, a insegurança, o medo ligado não somente ao terrorismo, mas a qualquer coisa: alimentação, relações, idade, trabalho, aposentadoria. (LIPOVETSKY, 2004, p. 21).

Por outro lado, pensadores menos afoitos a modismos como Habermas, Hans Jonas e Paolo Rossi, dentre outros, veem a modernidade como um projeto interrompido, e a “condição pós-moderna” seria apenas uma falácia, que ao criticar os discursos totalizantes, também totalizam os seus, uma vez que sua crítica parte do próprio conceito de modernidade. Ao se propor outro conceito de modernidade, a tendência é distinguir essa nova fase como uma fase posterior à modernidade e sob o véu de uma nova condição, encobre-se também uma teleologia a “La Hegel” e um discurso vazio que se aproxima das vanguardas futuristas europeias do inicio do século; que substitui as saídas reais, a práxis, a fuga para o niilismo; a um aqui e agora como se a condição fosse dançar conforme a música da época. É claro que vivemos numa época diferente, marcada por transformações radicais que têm modificado as nossas vidas e a nossa relação com o outro e com o planeta, e que demanda novas éticas e imperativos morais.

Não queremos aprofundar a discussão sobre modernidade e pós-modernidade, mas ressaltar que para as teorias pós-modernas a comunicação de massa tem um papel global; a noção de uma sociedade pautada por fluxos comunicacionais em que a experiência com a realidade é mediada pelos meios de comunicação e onde a questão do virtual emerge como um tema que tem suscitado amplos debates.

Em sua obra A sociedade transparente, Gianni Vattimo (1992) reflete sobre o caráter das denominadas sociedades “pós- modernas” conceito que Vattimo vê como um modismo, pois,na atualidade, existe uma comunidade de comunicação global, denominada de sociedade dos mass media. Na sua perspectiva, o conceito de pós-modernidade traz consigo uma visão teleológica da história na medida em que pressupõe que a modernidade teve um fim.

A modernidade esteve ligada à ideia de progresso e, com ele, o ideal do ser humano ilustrado e emancipado e de uma ciência que traduzia esse progresso em conhecimentos cumulativos numa marcha rumo à civilização e isto se traduzia no eurocentrismo. Para Vattimo, a crise da modernidade não se dá somente por questões teóricas, mas pela rebelião das culturas tidas como “primitivas” que emergem no cenário mundial, com a descolonização da África e da Ásia e põe em xeque a visão de uma história unitária e eurocêntrica, bem como o surgimento das sociedades da comunicação e informação, que contribuíram para o fim da modernidade.

LATOUR E A CRÍTICA À MODERNIDADE

Bruno Latour (1990), ao abordar a modernidade e tal como foi construída, defende o ponto de vista de que na atualidade não se pode apreender o mundo de forma fragmentada na medida em que os problemas atuais se apresentam de maneira “hibrida”. Torna-se assim necessário estabelecer uma síntese teórica que nos possibilite analisar a realidade de maneira simultaneamente científica, sociológica e por meio da teoria da linguagem. Para Latour, há que se identificar uma “crise da crítica” contemporânea, que acabou por produzir uma crise de propostas e o fim das utopias: nenhuma teoria é hoje capaz de restabelecer a unidade do pensamento que dê conta dos problemas cotidianos e que possa apontar para o futuro.

É nesse mundo de incertezas que a crise da crítica pode ser delineada, pois até então os críticos haviam desenvolvido três repertórios distintos para falarem de nosso mundo: a naturalização, a socialização e a desconstrução, personificadas. Entretanto, se cada uma dessas modalidades de crítica é potente em si mesma, não podem ser combinadas com as outras. Para Latour, o mundo deve ser tratado como um conjunto de “redes” que atravessam esses três paradigmas - “objetivista”, “sociologizante” e “semiótico” - pois, não sendo apenas de natureza objetiva, social ou discursiva, são ao mesmo tempo reais, coletivas e discursivas, tendo em vista que:

 
Os fatos científicos são construídos, mas não podem ser reduzidos ao social porque ele está povoado por objetos mobilizados para construí-lo. O agente desta construção provém de um conjunto de práticas que a noção de desconstrução capta da pior maneira possível.
(LATOUR, 1994, p. 12).
 
Para Latour, a modernidade mostra-se em sua postura critica a incapacidade de conceber uma síntese teórica que possibilite a abertura de horizontes de onde possam surgir novas utopias. É desse modo que ele vai refletir sobre a modernidade ocidental a partir de suas características especificas. Latour considera que a modernidade se edifica em dois conjuntos de práticas: aquelas que criam “híbridos”, misto de natureza e cultura, criando redes que interligam técnica e estratégia científicas e industriais; e as que, além de outro conjunto de práticas de característica crítica ou de “purificação”, fazem surgir duas perspectivas ontológicas diferentes: a dos humanos e a dos não humanos. É esse estado de coisas que permite compreender a dicotomia moderna entre natural e artificial (social).

Latour se utiliza de dois autores clássicos, Thomas Hobbes e Boyle, para demonstrar como cada um, à sua maneira, um cientista de laboratório e o outro, um cientista social se tornaram os fundadores da modernidade. Hobbes inventa o cidadão calculador nu, cujos direitos se limitam a possuir e a ser representado pela construção artificial do soberano, cria também a linguagem do poder que é igual a conhecimento, que está na base de toda real politik moderna . Boyle, por sua vez, criou um discurso político de onde a política deve estar excluída que Hobbes imaginou uma apolítica científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Na opinião de Latour eles inventaram o mundo moderno: um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se para sempre dissociado da representação dos cidadãos através do contato social . Nesse sentido nos informa Latour:

 
Cabe a ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe a política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não humanos produzidos e mobilizados pelas ciência e pela tecnologia. Hobbes e Boyle brigam para definir os dois recursos que até hoje utilizamos sem pensar no assunto, e a intensidade de sua dupla batalha revela claramente a estranheza daquilo que inventaram. (LATOUR, 1994, p. 32-33).
 
Hobbes inventa o homem calculador, Boyle por sua vez, inventa o laboratório, no interior do qual, máquinas artificiais criam fenômenos por inteiro. Ainda que artificiais, caros, difíceis de reproduzir e, apesar do pequeno número de testemunhas confiáveis e treinadas, estes fatos representam a natureza como ela é. Os fatos são produzidos e representados no laboratório, nos textos científicos. Latour argumenta que, da mesma forma que a teoria política alçou o soberano como “representante” dos indivíduos representados, também a epistemologia entronizou a ideia de que os cientistas são os legítimos intérpretes dos fatos naturais:
 
Os porta-vozes políticos irão representar a multidão implicante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes científicos irão de agora em diante representar a multidão muda e material dos objetos. Os primeiros traduzem aqueles que os enviam, que são mudos de nascimento. Os primeiros podem trair, os segundos, também. (IDEM, p. 34-35).
 
A modernidade, ao dicotomizar essas práticas e ao privilegiar a crítica, e, com ela. a proliferação dos “híbridos” , acaba por constituir esta adesão como ideologia. Para Latour é necessário uma mudança de paradigma para além dessa dicotomia entre humanos e não-humanos que é o que caracteriza a modernidade. O projeto de Latour diz respeito a uma mudança de paradigma: tratar-se-ia de superar a distinção ontológica entre humanos e não-humanos que é o que singulariza, em última instância, a modernidade. Para Latour, a manutenção da referido distinção ontológica - que permite a separação das análises cientificistas, sociológicas e semióticas - produz uma indefinida disseminação dos híbridos. Portanto, enquanto não superarmos a distinção cultura/natureza, humano/não-humano, nossas atividades serão uma contínua construção de problemas e situações interpretados como possuindo natureza científica, política, social, econômica, ideológica. Ou seja, trata-se de desvendar, “desmistificar”, a separação, construída a partir do século XVII, entre o mundo das representações científicas e o mundo das representações políticas, cujo início se encontra, no texto de Latour, na polêmica travada entre Boyle e Hobbes:
 
Os porta-vozes políticos irão representar a multidão implicante e calculadora dos cidadãos; os porta-vozes científicos irão de agora em diante representar a multidão muda e material dos objetos. Os primeiros traduzem aqueles que os enviam, que são mudos de nascimento. Os primeiros podem trair, os segundos, também.” (IBIDEM, p. 34-35).

A modernidade seria uma espécie de adesão ideológica a essa separação, tornando-se necessária sua superação: a partir do momento em que nos desviamos do trabalho de purificação e de hibridação, transformaremos a abordagem relativista e mudaremos nossa visão acerca da dominação, do imperialismo, do sincretismo etc. Caberia à antropologia restabelecer essa simetria, descrevendo como se organiza e se produz essa separação, como os ramos se separam, assim como os múltiplos arranjos que os reúnem:
 
O etnólogo do nosso mundo deve colocar-se no ponto comum, onde se dividem os papéis, as ações, as competências que irão permitir certa entidade como animal ou material, uma outra como sujeito de direito, outra como dotada de consciência, ou maquinal e outra como inconsciente ou incapaz. Ele deve até mesmo comparar as formas sempre diferentes de definir ou não a matéria, o direito, a consciência, a alma dos animais sem partir da metafísica moderna. (IBIDEM, p. 21).
 
A solução, para Latour, consiste em seguir, ao mesmo tempo, a “Constituição” e aquilo que ela proíbe ou permite, estudar de perto o trabalho de produção de “híbridos” e o trabalho de eliminação desses híbridos. Esse é, para Latour, o papel que cabe à antropologia simétrica.

Habermas identifica a modernidade com a tradição iluminista da civilização ocidental e da sua luta em favor da emancipação humana. Habermas se contrapõe aos pós-modernos na medida em que vê na modernidade um projeto inacabado, incompleto. Ao analisar o projeto de modernidade, Habermas se contrapõe aos pós-modernos na medida em que vê na proposta de emancipação um ideal progressista, pois pensa uma sociedade de sujeitos livres que buscam sua emancipação; assim a modernidade seria um projeto interrompido.
Labareda
Enviado por Labareda em 07/06/2015
Reeditado em 08/06/2015
Código do texto: T5268789
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.