Herança

Em 1970, certa pessoa saiu do país em função da conjuntura política adversa, já que um irmão seu havia se envolvido em atividades consideradas “subversivas”, o que poderia trazer riscos de vida ou prisão para toda a família. Voltou em 1973, quando a poeira parecia ter baixado. E constatou que “boa parte de sua adolescência havia se evaporado”, com o desaparecimento de um bar que costumava frequentar, da casa de um amigo, que dera lugar a um edifício, etc.

Verificou também que igualmente não havia mais ética. “A ganância, a insensibilidade e a inconsciência haviam se instalado”. E que valores como “o bem, a justiça e a dignidade pareciam ter perdido o sentido”.

Talvez não seja muito errado dizermos que o panorama atual, em 2017, é mais ou menos o mesmo. Com a consolidação de atributos que nos foram legados, em grande parte, pelo regime militar com a sua vigência de mais de vinte anos.

Um regime de exceção em que aos detentores do poder praticamente tudo é permitido tem grandes chances de incentivar a proliferação de atitudes que se relacionem à “ganância, insensibilidade e inconsciência”. Às vezes nem tanto pelos mentores do regime, mas pelos seus áulicos ou pessoas que se tornaram seus adeptos de ocasião ou por conveniência. Essas pessoas, gravitando sempre em torno do poder em busca de apoio, garantias e benefícios, podem ter se acostumado com a facilidade com que seus objetivos puderam ser atingidos numa época em que o poder não podia ser questionado. Tendo essa ótica se transferido às gerações futuras. O que torna consistente a expressão cunhada um dia por Brizola ao se referir aos “filhotes da ditadura”.

Um exemplo de ganância, que verificamos hoje, pode ser o número de ações criminosas atribuídas ao ex-governador Sérgio Cabral pelo seu acintoso desvio de dinheiro público, levando o estado a atrasar e parcelar o pagamento de seu expressivo quadro de servidores. De insensibilidade poderia ser a manobra dos chamados “Anões do Orçamento”, desviando para seus bolsos o dinheiro que seria empregado na construção de moradias de baixa renda para inúmeros brasileiros. E de inconsciência seria a inexistência no meio político, de um modo geral, da consciência do dever cumprido. Já que eles não cumprem nunca o que prometem, sobretudo quando se tratam de programas que beneficiem a população menos favorecida.

Nessas condições, “o bem, a justiça e a dignidade” não podem deixar de ser visceralmente afetados, pois tudo o que for favorável à melhor qualidade de vida só poderá estar ao alcance dos que estiverem mais próximos a algum tipo de poder. Sendo por isso merecedores de severas críticas os poucos que se preocupam nos dias de hoje em fazer justiça, apesar de estarem apenas cumprindo o seu papel. O que para muitos chega a ponto de parecer estranho.

Rio, 24/03/2017

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 25/03/2017
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