Com licença, quero ejacular.

Ela sempre foi uma mulher atraente, sua beleza física era estonteante, mas havia um quê de sensualidade que a tornava mais deslumbrante, tinha nesta sensualidade uma espécie de magnetismo misterioso. Sentia-se única, plena e completa, gostava de ditar as regras, era segura de seus atos, como escreveu Douglas G. Cunha; “Ela é um poema com pés” e foi assim toda a sua juventude. Um dia descobriu-se frágil, apaixonou-se se despiu de sua armadura, entregou seu coração ao amor.

Mas seu sonho tornou-se pesadelo logo após seu casamento, ele era inseguro e começou a criticar as roupas que ela usava, criticava sua maquiagem, dizia que ela era vulgar, apontava defeitos diariamente, chamando-a de nomes ruins, porque outros homens olhavam pra ela quando saiam juntos.

Ele queria que ela se sentisse feia, atingia sua autoestima diariamente e foi assim que ela passou a não querer mais sair de casa, passou a usar roupas que desvalorizavam seu corpo, esqueceu as maquiagens, deixou de ser confiante, pra agradar o amor de sua vida, ela deixou pouco a pouco de viver, pra que outros homens não a olhassem mais ela perdeu o respeito de si mesma.

Outra mulher saiu pra trabalhar, era um dia comum como outros onde cumpria sua rotina, entrou no ônibus, pagou sua passagem e sentou no banco ao lado do corredor. Outros passageiros foram entrando. Um homem fica em pé no corredor ao seu lado, de repente retira o pênis de dentro das calças, se masturba e ejacula em cima dela, enquanto o ônibus transitava em plena Avenida Paulista.

O que essas duas histórias tem em comum? A violência silenciosa contra a mulher, talvez por isso tenha Nelson Rodrigues falado que “nunca a mulher foi menos amada do que em nossos dias”. A violência silenciosa não é de ordem dum arranjo sadomasoquista e se difere desta porque é um quadro sintomático onde o grau de masoquismo presente na vítima duma relação perversa assim seria advindo, não propriamente, de um prazer no sofrimento, que não há, mas da percepção do sofrimento infligido como indicando um desafio a ser aceito e vencido, um obstáculo a ser superado.

Nem toda violência silenciosa se dá desta forma, estes foram apenas exemplos apresentados, pode atingir também homens, mas as mulheres são as maiores vítimas deste modelo de violência. Ela é mais comum do que podemos supor, e trata-se de um tipo de perversão que, embora certamente sempre tenha existido, talvez encontre na cultura contemporânea um terreno particularmente fértil, não é uma perversão explícita, acontece no dia a dia, nas pequenas relações, nos pequenos atos, passando despercebida. Glauber Lima fala acertadamente que “a dor silenciosa é a mais difícil de curar, pois sentimentos não se curam com analgésico”.

Procurar ajuda para estes problemas também é difícil, nossa sociedade tem dificuldade de aceitar a violência que não seja um ato físico, ignoram a violência subjetiva, simbólica, psicológica e moral que não se inscreve no real. O próprio artigo 213 que trata do estupro é interpretado como um ato real e físico, ignorando-se que também possa ser interpretado dentro de um mundo cada vez mais virtual e por isso, simbólico, como um ato de violência silenciosa.

Luis A. R. Branco escreveu que “a burocracia é uma violência silenciosa ao espírito democrático, e uma manipulação sutil das massas”, então numa sociedade onde a violência social está implícita em todas as partes, o sujeito violento se sente motivado e encorajado a continuar com seu ato nefasto de perversão narcísica.

A perversão narcísica é uma tentativa desesperada de se evitar a perda do eu, a despersonalização ou mesmo a psicose, numa abordagem kleiniana é um mecanismo defensivo que se serve da identificação projetiva, de uma combinação de sadismo anal e de sadismo oral, a saber, respectivamente: projetar no exterior o que se sente como ruim em si mesmo, e sugar o seio materno do que este tem de bom e desejável, mediante a qual o agressor fortalece seu ego através da desvalorização do ego do outro. A perversão narcísica refere-se a uma falha narcísica inicial, a partir da qual o sujeito, ao invés de voltar-se para si, busca no poder exercido sobre o outro, uma forma de sustentação e preenchimento de seu próprio narcisismo, ele sempre vai necessitar do outro para sua própria sustentação egóica.

Joel Birman, em seu livro “Amar a si mesmo e amar o outro”, escreveu que o investimento em nosso próprio eu dificulta a construção e o fortalecimento dos laços sociais. Winnicott diz que a pessoa agressora sente que seu eu é frágil e que há problemas na integração de seu self; mas ela não vê como modificar esta situação, por isso mantém este contorno de seu eu, a fim de não defrontar-se com as falhas de integração de seu self.

A pessoa que agride projeta nas vítimas o que sente de ruim de si mesma, desvaloriza e destrói o outro como se estivesse destruindo seus próprios fantasmas. O ato é repetitivo porque a satisfação experimentada na agressão é sempre superficial, nunca se satisfaz, então precisa manter seu comportamento, e assim nunca confrontará seus problemas. O agressor é incapaz de amar e como escreveu Sigmund Freud em seu clássico texto de 1914 sobre o narcisismo: “É preciso amar para não adoecer”.

Jairo Carioca é psicanalista e escritor, autor do livro “Crônicas de um Divã Feminino” pela editora Autografia.

Jairo Carioca
Enviado por Jairo Carioca em 23/10/2017
Reeditado em 23/10/2017
Código do texto: T6150690
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