NASCEU URUBU, MAS TINHA ALMA DE UM BEIJA-FLOR

Rubem Alves escreveu que a homossexualidade é uma condição estética, pois a imagem que vai comover o corpo é uma imagem semelhante à sua, o seu DNA irá determinar o objeto que vai disparar as reações químicas e hidráulicas necessárias para o ato sexual. E isso que é ser homossexual. Então ele narra o inusitado: um urubu, sim um urubu, batendo furiosamente as asas como se fosse um beija-flor, diante de uma flor de alamanda sugando o melzinho. Era um urubu, mas tinha a alma de um beijar flor. Nasceu diferente, desajeitado e visto com desprezo.

De acordo com minha mãe, eu nasci canhoto. Meu pai ficou assustado com isso, sou de família nordestina de raiz, ser canhoto era ser considerado estranho, sou filho mais velho e fui criado pela minha vó por um tempo, quando voltei a morar com meus pais, meu pai me fazia pegar tudo com a mão direita, hoje sou ambidestro. Nunca deixei de ser canhoto e, ironicamente, minhas duas filhas nasceram canhotas. No século XIX ser canhoto era tido como uma patologia, o pai da criminologia – o médico italiano Cesare Lombroso, propôs que canhotos possuíam maior suscetibilidade a psicopatias, criminalidade e violência. Hoje, esses estudos são considerados ultrapassados, mas estimularam ideias de eugenismo fascista na Europa e até influenciaram o Código Penal Brasileiro de 1940.

Não dá mais pra fingir que o gay não existe. Sou psicanalista e lido com esse fato em meu consultório, de pacientes e amigos que sofrem preconceitos todos os dias, que são marginalizados, que são escorraçados, não por serem desonestos, pois não o são, mas por serem gays, são vistos pela sociedade como pessoas doentes, são tratados por instituições religiosas como pessoas doentes e agora o Estado também passa a enxerga-los como pessoas doentes. Isso é adoecedor, as margens voltaram a comprimir violentamente os marginalizados como denunciou Bertolt Brecht.

Não consigo aceitar um cristianismo que não abra espaço para os marginalizados, não condiz com a figura histórica de Jesus, em sua parábola do Samaritano ele mostra que cristão não era o sacerdote ou o levita, figuras religiosas históricas, mas aquele que se compadeceu do sofrimento e da dor de um estranho – o samaritano.

Na fala de Freud um psicanalista é um curador de almas, sendo assim, não posso ignorar esses que hoje estão com a alma enferma. Porquê? Simples, não há nada mais adoecedor do que não ser aceito, e não ser aceito por algo que você não tem controle, você não escolhe ser gay, ninguém decide sua própria sexualidade, ela se impõe. Então porque tanto debate sobre este assunto? Simples, é debate de controle, pois o sexo é uma pulsão fundamental da existência e quem controla essa pulsão, controla o desejo, controla o corpo. Isso é denunciado por Foucault. Antes era o Estado quem dominava, hoje é a igreja quem determina, seja a partir do celibato católico, ou a rígida norma puritana dos protestantes, tudo não passam de mecanismos de controle.

Cada ser humano é único e reagimos às pulsões sexuais distintamente e isso não implica em transgressão libidinosa, porque não admitir a homossexualidade como mera peculiaridade humana? Deixou a igreja de ser local de acolhimento? É papel da Igreja condenar, hostilizar ou reprovar? Jesus mudou e já não se importa mais com a ovelha perdida? Creio que não, nossa interpretação da Bíblia é seletiva e não se baseia na tradição, razão e experiência cotidiana, somos literalistas. Seguidores de líderes que são incapazes de dialogar, pois são raivosos, falsos em seus ideais e falhos em suas éticas.

Cada texto bíblico está inserido num contexto político, histórico e cultural, não pode ser transportado automaticamente para os dias atuais. Mas nós simplesmente ignoramos isso. Somos seguidores de uma teologia que incentiva o idealismo e alimenta um tipo de messianismo triunfalista. Uma teologia que troca o perdão pela ira de Deus. Que faz substituição de um Deus apontado por Jesus como um Deus/Amor, para um Deus que odeia seus filhos rebeldes criando pra esses um inferno de tormento eterno. Um Deus seletista, que escolhe alguns ao gozo infinito dos céus e aos outros filhos, o tormento eterno de um inferno que já começa na própria existência, quando não se pediu pra nascer gay.

Fico entristecido em ver como falhamos, em ver como somos obtusos e intolerantes, fico triste em dizer que sou cristão e sou incapaz de acolher alguém por causa de sua condição sexual. Fico triste por saber que estou em uma comunidade que tem em seu coração a homofobia, a indiferença e até mesmo, o ódio por aqueles que não pediram pra nascerem assim.

O que faz um bispo de 85 anos, Desmond Tutu, que foi o vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua atuação contra a apartheid, falar a favor dos direitos da comunidade LGBT? Apenas sua intensa convicção de que o Evangelho é diferente daquilo que vemos hoje, evangelho é acolhimento dos marginalizados, é aprisco para os perdidos e família para os rejeitados. E faço minha as palavras desse grande homem: “Eu não adoraria um Deus que é homofóbico e é desse jeito que são meus sentimentos mais profundos sobre esse assunto. Eu me recusaria a ir para um céu homofóbico. Sem pedir desculpas, eu preferiria ir para o ‘outro’ lugar”.

Jairo Carioca é psicanalista e escritor, autor do livro “Crônicas de um Divã Feminino” pela editora Autografia.

Jairo Carioca
Enviado por Jairo Carioca em 23/10/2017
Código do texto: T6150737
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