VIDAS NO LIXO

Reflexão

"que país eu quero para o futuro?

Se ainda nos houver futuro: um país sem lixos!".

Enquanto eu pensava no título que eu daria ao meu texto reflexivo, e depois de decidí-lo, me veio à memória o título de VIDAS SECAS, o da clássica obra de Graciliano Ramos, escrita em mil novecentos e trinta e oito e que versa sobre as dificuldades da vida dos retirantes dos sertões do Brasil.

Meu título, portanto, não é plágio mas é uma analogia que ora me surge após um documentário que assisti boquiaberta sobre o Lixão da Estrutural, tido como o maior lixão da America Latina, justo nos arredores de Brasília, capital administrativa que “cuida” dum País que agoniza em lixos de toda sorte.

Se é que podemos falar em sorte quando falamos dos lixos.

O que vi no documentário, aos poucos, entrava pelas minhas narinas como se eu estivesse ali, resfolegando o ocre odor dum chorume, produto das tantas vidas que ali agonizam no tempo, sobre um sol escaldante do Cerrado que também embarga suas lágrimas de chuva sobre o próprio drama, um sol a brilhar sem dó sobre destinos perdidos, sol que ali nunca nasce para todos, em meio a uma vida tão indigna, de presente e futuro negados, hoje sabidamente roubados da cidadania.

No teatro cortante daquele lixão os protagonistas são ecléticos, de todas as idades e de todas as dores.

No abrir das cortinas dos horrores, adultos, mulheres, idosos ceratósicos, crianças, todos trabalhadores escravos da vida, unidos no propósito único da luta pela subsistência/sobrevivência através dos descartes não menos ecléticos, a disputar como se guerra fosse, espaços e putrefatas comidas com os urubus, aves mais dignas na sua existência, uma vez que que ali exercem o legítimo direito biológico na dinâmica da sua cadeia alimentar animalesca, instintiva.

O documentario informava inclusive o encontro de restos abortivos humanos ali denunciados pelos catadores, atacados pelas aves famintas.

Vez ou outra um catador é atropelado e morto pelas betoneiras cegas que sobre eles descartam a dignidade humana fora do seu alcance.

Ali todos continuam secos e famintos de tudo, vítimas perenes de todos os lixos históricos.

Comemoram efusivamente o encontro de comida industrialzada vencida e, como num banquete festivo, vez ou outra assam alguma carne descartada num lixo doméstico privilegiado.

Pensei: " o inferno tem várias versões na Terra e uma delas está ali, naquele lixão emblematicamente situado ao lado dos palanques".

Triste perceber que, anunciada extinção do LIXÃO DA ESTRUTURAL depois de décadas de tentativas gestoras frustradas, as pessoas que ao derredor formaram ali uma comunidade de mais ou menos quarenta mil habitantes, lamentam a perda do seu único veículo de sobrevivência.

É compreensível diante do todo de única saída.

Deus nos dotou com fantástica adaptação às tantas provas...já a resiliência é tempo dependente, tem data de validade por ela pede socorro por ali.

Viver do lixo, sem habitação,SEM ÁGUA POTÁVEL, sem saneamento básico, sem atenção humanitária, sem governantes comprometidos com a dor dos que votam, sem nada, absolutamente nada!-é a a triste condição de vida dos animais racionais, o que somos todos nós, todavia, ali muitos já consumidos pelo craque que aquece o coração e degenera os sentidos, a subverter a cognição de si mesmos, dos tantos horrores em vida, seres que encontram na droga o único abraço acalorado que lhes resgata suas tantas vidas secas.

Que país somos nós?

Como chegamos nisso?

Que vergonha! Que HUMILHAÇÃO!

O que um governante, uma autoridade , sejam eles de quais poderes forem, sentem ao ver as imagens desse documentário?

Mas...nada nunca está perdido, sempre há um palanque a espreita das securas das horas podres.

De repente, uma boa alma gestora, de nobre competência técnica no assunto, nos informa que, fechado o lixão, as pessoas serão reintegradas à sociedade.

Palmas efusivas!

Senti um alivio sarcástico, aqui confesso.

Fiquei pensando qual seria o milagre brasileiro instantâneo, o esperado por todos, que reintegraria, em meio a tantos lixões programáticos, pessoas esquecidas, às quais lhes foi negada a básica cidadania de direito por todo seu tempo, muitas inclusive já levadas pelo “craque e afins”, algumas com mais de sessenta anos de idade, sem instrução, sem profissão, sem moradia, sem projetos, sem perspectiva, portadores apenas dum corpo sucumbido e anestesiado pelo abandono político de sempre.

Saibam, Graciliano Ramos está mais que vivo entre nós.

E a culpa, de certa forma, é de todos os cidadãos, já que configuramos uma Democracia, aonde, ao menos conceitualmente, quem manda e assente o "satus quo" somos nós.

Oitenta anos depois de publicada, VIDAS SECAS continua cáustica, pulsante, encenada apenas em novas versões, em novos velhos versos dum tempo de cenário triste, fedorento, violento, velhaco, palco de vidas áridas e PERDIDAS AOS MONTES que correm ao léu dum extinto “país do futuro...de também futuro extinto”.

Somos produtos de sonhos em bolha, dum passado recente transformado em pesadelo empedernido, bolha que explodiu nosso futuro decantado nos lixões de tudo a expor nossos fragmentos sociais num museu do amanhã que não nos chega nunca.

Depois do tal documentário rezei em ação de Graças pela dignidade humana de direito.

Dedico esta minha reflexão a todos os lixos, visíveis em invisíveis que nos secam e nos lambuzam pela vida de forma institucionalizada.

E aos bons corações conscientes do todo, ainda a pulsar esperanças de mudanças de vida, minimamente dignas e humanitárias para todos.

Quem sabe,um dia, o milagre do compromisso social desça sobre nós.

Enquanto isso seguimos chorumentos, gentes de todas as gentes!-a encenar a desidratada obra escrita e reescrita com as nossas mãos...