A natureza do poder e o fim da democracia

Pequeno comentário sobre o poder como o motor da história política

(Contém informações sobre o penúltimo episódio da oitava temporada de Game of Thrones)

Quem assistiu o penúltimo episódio da temporada final de Game of Thrones viu o que possivelmente é o início da ascensão de uma tirana totalitária e sanguinária ao poder. Ora, qual é a surpresa? A despeito dos problemas, inúmeros, de roteiro, edição, construção das cenas, que a série está apresentando em seu crepúsculo, o fato é que a profecia se fez como previsto.

A libertadora dos povos, que quebra as correntes, concebe a si mesma como uma líder investida da missão “sagrada” de concretizar uma verdade histórica: uma revolução capaz de promover a justiça e salvar as futuras gerações de toda e qualquer opressão. Terrível ironia: em nome disso fará qualquer coisa para se impor e concretizar seu objetivo final. O libertador se transforma em tirano com demasiada frequência, tanto na fantasia quanto na realidade.

Aristóteles nos definiu como animais políticos. Somos seres gregários, sociais, e dotamos nossa vida de sentido na medida em que participamos da polis. De animais políticos a econômicos, Marx entendeu que as relações econômicas são infra-estruturais, e que deter o Capital, deter o domínio sobre os modos de produção, é colocar-se na posição de quem controla, oprime, e, via de regra, vence as batalhas no complexo jogo da luta de classes. Mas foi Weber que se dedicou a analisar o poder como categoria central da história social, o poder como móvel da sociedade.

Conforme Weber, o poder pode ser exercido como meio ou como fim. O meio pode ser nobre ou ignóbil, como libertar povos oprimidos, ou carbonizá-los com o sopro de morte de um Dragão voraz. Qual é o fim almejado? Fazer um bom governo, justo, próspero, pacífico? Ou se manter no poder? Quando o poder se torna um fim em si mesmo, nenhum preço poder ser alto demais para mantê-lo. De certo modo todas essas questões foram friamente antecipadas por Maquiavel.

A natureza do poder é complexa. Merece estudo cuidadoso e análise meticulosa. Não será nessa oportunidade que poderemos nos aprofundar. Cabe ressaltar que o poder, que segundo Weber pode ser tradicional, carismático ou jurídico-burocrático, tem, além de tudo, duas faces. Ele pode ser construtivo, fazendo parte de um projeto mais amplo de sociedade, de uma visão programática, ou meramente destrutivo, corrosivo e reativo;um poder ruminante, ressentido, cujo propósito é a desconstrução de seus inimigos, ainda que imaginários, como os milhões de professores comunistas doutrinadores no Brasil. Uma legião de não existências que precisa ser combatida pelo poder central.

O tipo de poder que vemos hoje nos Estados Unidos e no Brasil, e que está crescendo em diversas partes do mundo, é desse quadrante. Um poder sem propostas construtivas, cujo propósito é perseguir moinhos de vento. Um poder que relativiza, banaliza e escarnece dos valores humanísticos mais básicos. Não a toa, a literatura sobre o “fim da democracia” vem se avolumando no mundo. Autores como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt,cientistas políticos da Universidade de Harvard, que escreveram “Como as democracias morrem”, David Runciman, pesquisador de filosofia política da Universidade de Cambridge, que escreveu “Como as democracias chegam ao fim” e Madaleine Allbright, professora de Relações Internacionais na Georgtown University, em Washington DC, que lançou “Fascismo: Um alerta”, apontam, cada qual ao seu modo, o grande risco que vivemos atualmente: o risco de um dano estrutural (quiçá irreversível) no que entendemos por democracia.

A ascensão da extrema direita ao poder não representa um perigo para as esquerdas. Isso é coisa menor. Chega a ser mesquinho. O que está em perigo são os valores humanísticos, as ciências, artes e letras, e o próprio ideal de democracia. Os impactos concretos desse viés destrutivo estamos vendo aos borbotões no Brasil: ataque ressentido às universidades e centros de saber, desmonte da cultura e das instâncias de fiscalização e cuidado do meio ambiente, crescimento de um ethos armamentista e de uma vontade cega e implacável por justiça “custe o que custar”. A ideia é que no campo o proprietário tenha licença para matar quem invadir suas terras. E se é o fazendeiro poderoso que invade, que se apropria das terras alheias dos mais fracos, que os mata, invertendo a história? Quem dirá o contrário? O campo, já tão violento, arderá em chamas, como queimado por uma Rainha Louca em um dragão de morte?

O poder parece ser o móvel da história política universal. Quando concentrado, o limite para que degrade em tirania é muito tênue. Se a democracia sobreviverá aos ataques sofridos nesse início de século é o que veremos. Gostaríamos de ser mais otimistas, mas os recentes episódios não nos brindam com boas expectativas.

Publicado inicialmente em:

https://medium.com/@viniciusfilo/a-natureza-do-poder-e-o-fim-da-democracia-dbf566fe7252