A Ideia Da Passividade Da Sociedade Brasileira

A ideia dominante e aceita como verdade por grande parte da população brasileira, de que o nosso povo é por natureza pacífico e consequentemente passivo, é uma ideia altamente questionável, ao menos pelo ponto de visto histórico. Não houve nenhum período da história da sociedade brasileira em que o protesto popular não se fez presente de uma forma ou de outra. Em alguns momentos, a reação popular se fez notar pela sua radicalidade e/ou pela sua violência. E mais, em alguns momentos a ação popular, surgiu como forma de reação a chamda de uma determinada elite local, contrária as ordens do Governo Maior - Monarca ou posteriormente, Presidente.

Começo a questionar tal ideia, partindo do movimento abolicionista, que realmente ganha forças a partir de 1887. Um movimento nacional, embora predominantemente urbano. Foi forte tanto no sul como no norte do país. Além disso, envolveu várias camadas sociais, desde membros da elite, como Joaquim Nabuco, até os próprios escravos, jornalistas, pequenos proprietários e operários. Primeiramente, tratou se de uma luta por um direito civil básico, a liberdade. A falha do movimento veio do fato de ter acabado logo após a abolição - 1888. Ela não prosseguiu a luta, como queria André Rebouças, para quem a abolição era apenas o primeiro passo na transformação daquela sociedade.

Outro movimento que merece referência foi o dos Jovens Oficiais do Exército, iniciada em "22". De natureza estritamente militar e corporativista, o Tenentismo despertou simpatia, por atacar as oligarquias políticas estaduais. Havia no movimento uma consciência política, sobretudo no que se refere ao mundo das oligarquias e suas práticas desonestas para manutenção do poder. Esta consciência manifestou se de forma mais clara durante a grande marcha de milhares de quilômetros que fizeram pelo interior do país na tentativa de escapar ao cerco das forças governamentais. Ao atacar as oligarquias agrárias estaduais contribuía para enfraquecer outro grande obstáculo a expansão dos direitos civis e políticos. O lado negativo do Tenentismo foi a ausência do envolvimento popular, mesmo durante a grande marcha. Mesmo depois de 1930, quando tiveram intensa participação política, o militarismo manteve a postura golpista alheia a mobilização popular.

Já na independencia, a população do Rio de Janeiro por várias vezes foi a rua, aos milhares, em apoio aos líderes separatistas, contra as tropas portuguesas.

Em janeiro de 1822, 8 mil pessoas assinaram o manifesto contra o regresso de D. Pedro a Portugal. Para uma cidade de 150 mil pessoas, dos quais grande parte era analfabeta e fora do jogo politico, o número impressiona.

Em 1831, um levante em que se confudiram militares, povo e deputados reuniu 4 mil pessoas no Campo de Sant ´Ana, forçou D. Pedro a renunciar e aclamou seu filho, uma criança de 5 anos, como sucessor. As Noites das Garrafadas, foi o estopim daquilo que o levou a abdicação.

Algumas rebeliões da Regência tiveram carater nitidamente popular. Nas capitais revoltaram se com frequência as tropas de linha, cujos componentes eram na totalidade provenientes das camadas mais pobres da população. Era comum a expressão "tropa e povo" para indicar os revoltosos. Mas foi nas áreas rurais que aconteceram as revoltas populares mais importantes. A primeira dela deu-se em "1832", na fronteira das províncias de Pernambuco e Alagoas. Chamou se a Revolta dos Cabanos, que eram pequenos proprietários, índios, camponeses, escravos. Defendiam a Igreja Católica e queriam a volta de D. Pedro I. Seu líder era um sargento filho de um padre. Durante três anos enfrentaram as tropas do Governo em autêntica guerrilha travada nas matas, como animais.

Outra revolta aconteceu em 1838 no Maranhã, perto da divisa com o Piauí, em região de pequenas propriedades. Ficou conhecida como Balaiada porque um dos líderes era fabricantes de balaios. Outro líder era vaqueiro. Também havia um ex-escravo que liderou uns tres mil escravos fugidos das fazendas das regiões vizinhas. Chegaram a reunir 11 mil homens armados, ocupando a segunda maior cidade da província, Caxias. Este levante foi derrotado em 1840, exatamente no ano do Grande Golpe brasileiro. O vencedor dos "balaios", Luís Alves de Lima, foi recompensado com o título de Barão de Caxias.

Com certeza, uma das revoltas mais violenta e dramática foi a Cabanagem, na provincia do Pará, em 1835. Os rebelados eram na maioria índios, chamados de "tapuios", negros e mestiços. A capital da provincia foi ocupada e boa parte da população branca, umas cinco mil pessoas, formada por comerciantes e proprietários brasileiros e portugueses, refugiou-se junto com o presidente, em navios de guerra estrangeiros. O líder da revolta, Eduardo Angelim, de apenas 21 anos, proclamou juntoa aos rebelados, a independencia da província. O confronto durou até 1840 quando o novo presidente da provincia recuperou a capital abandonada pelos rebeldes, iniciando assim uma sangrenta e sistemática repressão. Una quatro mil cabanos morreram. Na verdade, o número de mortos passou de 30 mil, divididos entre os dois campos de batalhas. Soldados do governo exibiam em torno dos pescoços, rosários feitos de orelhas de cabanos. Provavelmente tenha sido a maior carnificina da História do Brasil independente.

Também em 1835 surgiu outra revolta. Uma revolta de negros islamizados, em Salvador. Embora sendo abortada devido a denúncias, foi duramente reprimida. Calcula se que 40 escravos e libertos foram mortos na luta, fora os executados por sentença condenatória. Excetuando se esta última revolta, que reclamava claramente o direito civil da liberdade, nenhuma das outras tinha programa definido e nem mesmo ideias claras sobre as suas reivindicações. Isto não quer dizer que os rebeldes eram alienados e que lutavam por nada. Eles lutavam por valores que lhes eram caros, independentemente de poderem expressá los claramente. Havia neles ressentimentos antigos contra o regime colonial, contra portugueses, contra brancos, contra ricos em geral. Os balaios davam vivas à "Sagrada Causa da Liberdade". Havia, também, um arraigado catolicismo que julgavam ameaçados por forças das reformas liberais da Regência, atribuídas vagamente a alguma conspiração maçônica. O importante é perceber que possuíam valores, que percebiam formas de injustiças e que estavam dispostos a lutar até a morte por suas crênças. Isso vai muito além daquilo que a elite pensava e considerava sobre a população em geral, selvagens, massas-brutas, gentalha e alienados de todo o processo político social.

As manifestações populares do Segundo Reinado tiveram natureza diferente. O Estado imperial consolidou-se. As revoltas populares ganharam, então, a característica de reação às reformas introduzidas pelo governo. Em 1851 e 1852 houve reação em varias províncias contra uma lei que introduzia o registro civil de nascimento e óbito (que era feito pela igreja) e mandava fazer o primeiro recenseamento nacional. A população temia fazer tais registros fora dos portões eclesiásticos, pois entendia que o risco da maldição poderia ser enorme. O governo interrompeu as duas medidas. A lei de recrutamento militar de 1874 provocou reações ainda mais generalizadas que atingiram oito províncias e duraram até 1887. Multidões invadiram igrejas para interromper o trabalho das juntas de recrutamento. De particular interesse nessas reações era a grande presença de mulheres. Talvez tenha sido a primeira manifestação política de mulheres no Brasil.

Uma das reações mais intensas se deu em 1874, ficando conhecida como "Quebra-quilos". O motivo agora foi a lei de 1862, que introduzia o novo sistema decimal de pesos e medidas e que deveria entrar em vigor em 1872. A reação começou no Rio de Janeiro em 1871 e se espalhou entre pequenos proprietários nas províncias da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte. Atacaram Câmaras Municipais, cartórios, coletorias de impostos, serviços de recrutamento militar, lojas maçonicas, casas de negócios e destruíram guias de impostos e os novos pesos e medidas. A população protestava também contra a prisão de bispos católicos, feita durante o ministério do Visconde do Rio Branco, que era grão-mestre da maçonaria. Não havia uma organização concreta e nem mesmo havia reivindicações explícitas, mas não se tratava de ação de bandidos, de ignorantes ou mesmo de inconscientes. Rio Branco ofendera tradições seculares dos sertanejos. Ofendera a Igreja, que lhes dava a medida cotidiana da ação moral; mudara o velho sistema de pesos e medidas, que lhes fornecia a medida das coisas materiais. Além disso, assustou os sertanejos, quando introduziu a lei de serviço militar que, embora mais democrática, viam nela uma tentativa de escravização desta população.

Antonio Conselheiro reuniu milhares de sertanejos depois que a polícia o perseguiu por ter destruído as listas dos novos impostos decretados após a Proclamação da República. O conselheiro não gostara também de medidas secularizadoras adotadas pela República, como a separação entre Igreja e Estado, a secularização dos cemitérios e, sobretudo, a introdução do casamento civil. Em Canudos, tentou criar uma comunidade de santos onde as práticas religiosas tradicionais seriam preservadas e onde todos poderiam viver irmanados pela fé. Sua comunidade foi destruída a poder de canhões, em nome da República e da modernidade.

No Contestado também estava presente a utopia sertaneja de uma comunidade de santos. Não havia comércio e o dinheiro republicano não entrava. Um dos motivos que levaram a formação da comunidade fora a luta pela propriedade da terra, exacerbada pela chegada ao local de uma grande companhia estrangeira de construção de estrada de ferro. A questão social estava presente, assim como a política. Como os de Canudos, os rebeldes do Contestado foram arrasados a ferro e fogo.

O Rio de Janeiro do final do século, retomou a tradição de protestos da época da independencia e da Regencia. Em 1880, por causa do aumento de um vintém (20 réis) no preço das passagens do transporte urbano, 5 mil pessoas se reuniram em praça pública para protestar. Houve choques com a polícia, e o conflito generalizou-se. A multidão quebrou coches, arrancou trilhos, espancou cocheiros, esfaqueou mulas, levantou barricadas. Os distúrbios duraram tres dias. Daí em diante, tornaram-se frequentes as revoltas contra a má qualidade dos serviços públicos mais fundamentais, como transporte, iluminação, o abastecimento de água. A revolta urbana mais importante aconteceu em 1904. O Rio era conhecido pelas frequentes epidemias de febre amarela, varíola, peste bubônica, era a cidade ainda colonial, de ruas desordenadas e estreitas, com precário serviço de esgoto e de abastecimento de água. As residências não tinham condições higiênicas. Havia numerosa população no mercado informal, acrescida nos últimos anos do século pela migração de ex-escravos. No verão, a elite local e os diplomatas estrangeiros, para fugir das epidemias, mudavam-se para Petrópolis, cidade de clima mais saudável.

O prefeito Pereira Passos deu início em 1902 a uma reforma urbanística e higiênica da cidade. Abriu grandes avenidas , endireitou e alargou ruas, reformou o porto. Centenas de "casas" foram derrubadas, deixando os moradores sem teto. Na área da saúde, Oswaldo Cruz atacou primeiro a febre amarela atacando o mosquito transmissor com um método recente aplicado em Cuba. Dezenas de funcionários percorriam a cidade desinfetando ruas e casas, interditando prédios, removendo doentes. Os cortiços tiveram uma atenção especial, pois eram um conjunto de habitações anti-higiênicas onde se aglomeravam boa parte da população pobre. Muitos deles foram condenados a demolição. Em 1904, Oswaldo Cruz iniciou o combate a varíola, tradicionalmente feito por meio de vacinação que uma lei tornara obrigatória. Os políticos que se opunham ao governo iniciaram uma campanha de oposição à obrigatoriedade. Os positivistas também se opuseram ruidosamente, alegando que a vacina não era segura, que podia causar outras doenças e, sobretudo que o Estado não tinha autoridade para forçar as pessoas a se vacinarem, não podia mandar seus médicos invadir os lares para vacinar os sãos ou remover os doentes. A oposição estendeu-se às camadas populares, organizadas no Centro das classes operárias. Umas 15 mil pessoas assinaram listas pedindo ao governo que suspendesse a vacinação. No dia 10 de novembro de 1904, ao ser anunciada uma regulamentação muito rigorosa da lei, a revolta popular explodiu. De início, houve o tradicional conflito com as forças de seguranças e gritos de "Morra a polícia! Abaixo a vacina!" Depois a revolta generalizou-se, do dia 10 ao dia 18. Os revoltosos mantiveram a cidade em estado de permanente agitação, no que receberam a ajuda de militares do exército também rebelados contra o governo.

As áreas centrais, mais atingidas pela reforma, e a região do porto tornaram-se redutos dos rebeldes , que bloquearam várias ruas com barricadas. No dia 13, grandes danos foram causados por multidões furiosas. Houve tiroteios, destruição de postes de iluminação, de calçamento, Prédios públicos foram danificados, quartéis assaltados. A ira da população dirigiu-se especialmente contra os serviços públicos, a polícia, as autoridades sanitárias, o ministro da justiça. O governo decretou estado de sítio e chamou tropas de outros estados para controlar a situação. O saldo final da luta foram 30 mortos, 110 feridos e 945 presos, dos quais 461 foram deportados para o norte do país.

A Revolta da Vacina foi um protesto popular gerado pelo acúmulo de insatisfações com o governo. A reforma urbana, a destruição de casas, a expulsão da população, as medidas sanitárias, que incluíam a proibição de mendigos e cães nas ruas, a proibição de cuspir na rua e nos veículos e, finalmente, a obrigatoriedade da vacina, levaram a população a levantar-se contra o governo. O levante teve a ajuda de políticos da oposição, de militares e da classe operária, mas nenhum líder exerceu qualquer controle sobre este movimento popular.

A oposição á vacina apresentou aspectos moralistas. A vacina era aplicada no braço com uma lanceta. Espalhou-se, no entanto, a noticia de que os médicos do governo visitariam as famílias para aplicá-las nas coxas, ou mesmo nas nádegas das mulheres e das filhas dos operários. Esse boato teve um peso decisivo na revolta. Para o operário e para o homem comum, o Estado não tinha o direito de fazer uma coisa dessas.

Posso concluir que em todas esssas revoltas populares que se deram a partir do início do Segundo Reinado verifica-se que, apesar de não participar da política oficial, de não votar ou de não ter consciência clara do sentido do voto e da sua participação cidadã, população tinha alguma noção sobre direitos e de alguns dos deveres atribuído ao Estado. O Estado era aceito por esses cidadãos, desde que não violasse um pacto implícito de não interferir em sua vida privada, de não desrespeitar seus valores, sobretudo os religiosos. Tais pessoas não podiam e não podem ser consideradas apáticas e mesmo passivas. Eram, é verdade, movimentos reativos e não propositivos. Aí reside talvez, o maior engano, ao pensar uma sociedade brasileira estática, passiva. Ela era sempre reativa a alguma ação do governo central, da liderança local, de algum órgão. Era preciso alguma coisa acontecer, como decisões, obrigatoriedades, invasões das particularidades, para que as "massas" reclamassem. Outro, houve e há diversificadas manifestações populares, muitas delas acontecem em níveis municipais, distritais, por isto não ganham notoriedade e tão pouco conseguem a adesão de outras localidades, ficando assim restrita a sua eficácia e abrangência. Não nos esqueçamos também, que existem várias maneiras de manifestar-se, incluindo muitas delas, bem diferentes daquelas destacadas no meu texto, pois são de contextos totalmente diferenciados. A manifestação de hoje, pode ser de forma eficaz mesmo não tendo a presença física dos manifestantes, basta para isto o uso da internet e suas redes, bem como de outros meios tecnológicos de comunicação. Na verdade, tais manifestações, desobriga a presença física, e o ajuntamento de pessoas em determinados locais específicos para o reclame, bem diferente daquelas que ocorreram nos séculos anteriores aqui no Brasil.

ProfessorMoises
Enviado por ProfessorMoises em 24/11/2019
Reeditado em 23/12/2019
Código do texto: T6802761
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