Quem tem a autoridade para falar?

Recentemente, perdemos o famoso apresentador Gugu Liberato e sua morte causou profunda comoção, não apenas porque ocorreu de forma inesperada e trágica, como também pelo fato de que ele era uma pessoa que parecíamos conhecer bem. Muitos de nós crescemos acompanhando seu trabalho na televisão e para nós sua morte foi como perder um amigo, filho, irmão, pai ou tio.

Como era de esperar, a mídia explorou o processo de traslado do corpo para o Brasil e o velório aberto ao público e, entre os muitos acontecimentos que me chamam a atenção, está a fala de Datena, que comentou sobre a idade da mãe de Gugu – uma senhora de noventa anos que foi ao velório em cadeira de rodas – acrescentando que, se Gugu não houvesse morrido por causa do acidente teria tido uma vida longa mas que ninguém poderia entender os desígnios de Deus. Façamos uma pequena reflexão. Quer dizer então que os desígnios de Deus eram que Gugu morresse por causa de um estúpido acidente doméstico? Se temos de admitir que Deus tinha designado que Gugu morreria como morreu, Deus também designou que os Mamonas Assassinas e o time da Chapecoense morreriam em acidentes de avião? Não vamos aqui falar em explicações espíritas que usam o argumento do desencarne coletivo, mas parece justo que Deus tenha determinado que jovens morreriam de explosão e queda de avião? Pensemos nas dores dos familiares que perderam filhos, irmãos, namorados e amigos assim. No caso dos Mamonas Assassinas, as famílias nem mesmo puderam abrir os caixões pois tudo que receberam para enterrar foram corpos mutilados (Dinho, o vocalista, estava sem cabeça, braço e pernas).

É estranho como as pessoas – quando usam razões religiosas para explicar tudo ou consolar – parecem saber tudo o que Deus quer para os outros. A questão não é se Deus existe ou se Ele toma decisões sobre os destinos das pessoas. A questão é que ninguém sabe. Eu não posso dizer àquela pessoa que o que ela está passando é a vontade de Deus. Mas muita gente fala como se Deus lhe passasse mensagens por celular. Eu ainda lembro de quando uma senhora me falou: “Isso é a sua cruz, meu amor. A cruz que você tem que carregar.” Engraçado, não é? Tal frase, além de prepotente, pois a pessoa que fala assim soa como detentora da verdade, é fatalista e sugere que, assim que nascemos, Deus já determinou que sofreríamos isso e aquilo. Então, Ele faz acepção de pessoas? Deus por acaso não tem coisas mais importantes para se ocupar do que determinar quem vai sofrer com um marido abusivo, ser abusado pelos pais, sofrer um acidente e perder as pernas ou morrer queimado?

Antes que alguém venha me dizer que não posso questionar Deus, lembro que na própria Bíblia Deus não fazia revelações para todo mundo assim, de forma indiscriminada. Ele tinha seus profetas e escolhidos. Hoje, porém, há uma enormidade de pessoas que supostamente sabem tudo sobre o que Deus deseja para nós, especialmente quando é para se intrometer na vida das outras pessoas. Nunca vou esquecer quando uma prima me disse que Deus tinha planos para minha vida e que eu seria missionária. Ou quando uma senhora me falou que eu tinha que entender que Deus podia querer que eu ficasse solteira. E Deus se importa tanto assim em dizer quem vai se realizar na vida amorosa ou quem vai terminar seus dias sozinho e amargurado por não ter encontrado outra pessoa? Se temos de aceitar que Deus lança desígnios, temos de aceitar também que Ele faz acepção de pessoas. Penso nisso principalmente ao recordar a história de uma mulher que passou toda sua vida presa a um marido abusivo. Ela frequentava a Igreja presbiteriana Renascer e também a Pentecostal e ouvia muito dos pastores que chegaria o dia de sua vitória e libertação. Bem, esse dia realmente chegou, pois ela morreu e seu marido abusivo está viúvo. Esse era o desígnio de Deus para ela? Mas muitos dos que a conheceram disseram: “Ninguém entende a vontade de Deus mesmo. Pelo menos agora ela está nos braços Dele.” Por que Deus supostamente liberta uns de uma situação opressora e a outros não? Então, Deus manipula as vidas das pessoas como se fossem marionetes? E onde está o tal do livre arbítrio, tão usado para justificar todo o mal que existe no mundo e eximir Deus de toda responsabilidade? Porém, a ideia de que Deus tem desígnios não pode coexistir com a do livre arbítrio, assim como ninguém que se diz católico pode dizer que também é espírita, pois as bases do espiritismo e do catolicismo são muito contraditórias.

Caso haja mesmo os desígnios de Deus, então, não há livre arbítrio, estamos todos destinados a morrer de uma determinada maneira? Com certeza, não há resposta para esse pergunta e tentar usar a religião para responder só nos levará a soluções rápidas e superficiais. O que podemos dizer, no caso de Gugu, é que foi um infeliz acidente, que ocorreu num momento de desatenção no qual ele pisou em falso e com certeza não houve influência divina ou sobrenatural. Estamos o tempo todo cercados de perigos, porque o mundo é um lugar hostil e na nossa casa podemos sofrer qualquer tipo de acidente. É mais justo pensar assim. Quantas mortes acidentais não ocorrem por erro humano sem que possamos dizer que foi porque Deus quis assim?

Também soa muito horrível pensar que Deus tenha querido que Gugu morresse dessa forma quando vemos todos dizerem: “Que Deus conforte a família”; “Que Deus os console” ou “Deus dê forças.” É o mesmo que pedir a quem nos machucou intencionalmente que nos faça um curativo.