LIÇÕES DA COVID-19:
O QUE APRENDEMOS COM O CONFINAMENTO
(por Goulart Gomes e colaboradores)
 
INTRODUÇÃO

Há sete séculos uma tragédia mundial, como esta atual pandemia provocada pelo Coronavirus teria sua causa possivelmente atribuída a um castigo divino, em consequência dos pecados humanos, como aconteceu quando da Peste Negra, na Idade Média. Em situações como essa, a principal alternativa era implorar pela misericórdia divina, em rituais ou procissões pelas ruas da cidade, com significativa participação popular.

Na contemporaneidade algumas outras teorias surgiram para tentar justificar catástrofes mundiais, como a necessidade de depurar o planeta de algumas almas, em resgates coletivos, preparando-o para uma nova era. Tais explicações estão relacionadas a dogmas de suas respectivas religiões ou doutrinas. Os dogmas são afirmações incontestáveis para aqueles que neles acreditam, uma questão de fé, e não de lógica, não necessitam de provas ou evidências. No caso desta pandemia, por exemplo, uma procissão movida pela fé, que reunisse centenas ou milhares de pessoas, teria o efeito contrário, dadas as características de transmissão do vírus. A tragédia seria ainda maior.

À margem das possíveis explicações transcendentais, o que a ciência e os registros históricos nos demonstram é que “pestes” sempre ocorreram, periodicamente, por motivos diversos e, para a maioria das pessoas, inexplicáveis. A citada peste negra, também chamada peste bubônica, era transmitida pelas pulgas dos ratos contaminados por uma  bactéria; a COVID-19 é transmitida por um vírus de origem ainda incerta, vindo da China. Bactérias e vírus, invisíveis a olho nu, eram desconhecidos no passado, e como quase tudo que era provocado por “elementos invisíveis”, atribuído a fatores sobrenaturais.

Diferentemente das anteriores, esta peste da nossa Idade Mídia teve seus efeitos minimizados por dois fatores: a informação e o confinamento. A utilização incessante das diversas mídias – sejam elas convencionais ou redes sociais – para alertar sobre as precauções a serem tomadas e o confinamento – seja ele voluntário ou compulsório – atenuaram o desastre. Não fossem por eles, ao invés de dezenas de milhares de mortos, talvez chegássemos à casa dos milhões.

Não estou entre aqueles que acreditam que tudo tem seu lado positivo, mas creio que em tudo pode haver aprendizados, se estivermos predispostos a percebê-los, sem dogmatismos. O confinamento tem nos trazido ou pode nos trazer diversos aprendizados que, se compartilhados, se tornam ainda mais úteis. Foi pensando nisso que fiz um convite aberto, no Facebook, às pessoas que desejassem compartilhar seus aprendizados, o que resultou neste texto, onde inclui os meus próprios. Cerca de vinte pessoas contribuíram e, nesse caso, não é a quantidade que faz a diferença, mas a qualidade. Não citarei seus nomes aqui, mas os comentários feitos por elas estão lá, em minha “linha do tempo” (timeline), para quem desejar conhecê-las.

Dividi os comentários em quatro grupos, em função de suas características: Cotidiano, Comunidade, Política e Existencial. Cotidiano reúne os comentários sobre as questões práticas do dia-a-dia, que ganham um novo contorno, em situações de exceção, a exemplo do que ocorre em diversos romances de José Saramago, como Ensaio sobre a Cegueira ou As Intermitências da Morte, em que apenas uma causa provoca consequências inimagináveis, promovendo um novo olhar ao universo em que estamos inseridos. Comunidade traz reflexões sobre a nossa relação com aqueles que são mais próximos de nós: o parente, o amigo, o vizinho, às vezes esquecidos, ignorados, mas todos interconectados nessa teia social. Política não se atém às questões partidárias, mas sim à nossa relação com a Polis com a sociedade em um espectro mais amplo, local mas também universal (urbi et orbi) à nossa atuação como animais políticos (zoon politikon), influenciando e sendo influenciados no e pelo meio em que estamos inserido. Existencial dispensa maiores explicações. Nele podem ser compreendidos aspectos que podem ser chamados de psíquicos, mentais, espirituais ou transcendentais, nossa innernet, como diria o cantor Krishna Das.

Ao realizar esta compilação me veio à memória o vídeo Filosofia para o Dia-a-DiaEpicuro (disponível no Youtube), baseado no livro As Consolações da Filosofia, do filósofo Alain de Botton. Epicuro nasceu na atual Turquia, mas viveu em Atenas, Grécia, no século IV a.C. e algumas de suas ideias, tão atuais, perpassarão meus comentários. Outro fator importante para a melhor compreensão do “lugar” de onde escrevo é que hoje, 1 de maio, é a data do meu aniversário. Há cerca de dez anos eu imaginava que nesta data estaria me aposentando (o que aconteceu cinco anos antes), com meu Mestrado concluído (o que está para acontecer),  iniciando um Doutorado (o que não acontecerá), comemorando tudo isto com amigos e familiares. Há quatro meses, o plano era fazer uma viagem ao exterior, já com passagens compradas, o que teve de ser adiado. Hoje, como outros tantos milhões de pessoas, estou em confinamento, provocado por um fator totalmente alheio à minha vontade. Qual o aprendizado disto? Saber que não estamos no controle de coisa alguma e que é preciso ser flexível. Relembro uma máxima que diz: “é preciso ter coragem para mudar o que pode ser mudado, ter paciência para aceitar aquilo que não pode ser mudado, e sabedoria para diferenciar uma coisa da outra”. De posse dessas informações, vamos aos aprendizados transmitidos pelos colaboradores (destacados entre aspas) e os meus próprios, permeados de aforismos dos pensadores da Antiguidade Clássica, meus preferidos.
 
1. COTIDIANO
 
Circunscritas ao espaço doméstico, algumas pessoas começaram a perceber a diferença entre Casa (ou apartamento) e Lar. O primeiro é o espaço físico, sólido, cheio de objetos que deveriam facilitar a nossa vida, alguns dos quais nem sabemos como usar (“eu já comprei”, como nos lembra a música Coisas que eu sei, de Dudu Falcão) ou que são usados por terceiros, em nosso benefício, como o aspirador de pó ou a máquina de lavar. O segundo é o espaço de convivência (nem sempre fácil!), de aprendizado, de realização, de diversão ou simplesmente de repouso. Em um estado ideal, é o espaço de Harmonia, de Paz, a simbólica hystera (útero) ao qual gostaríamos de voltar, para nos sentirmos amados e protegidos. Nesse confinamento algumas pessoas começaram a ter uma “nova relação” com o lar e seus elementos, a exemplo de alguns eletrodomésticos ou de produtos de limpeza - habitualmente utilizados apenas pela diarista ou empregada doméstica -  e melhor compreender a essencialidade dessas profissionais em suas vidas. Outras, como eu, perceberam como é de pouca valia ter um vasto “curriculum Lattes”  se você não sabe preparar ao menos arroz, macarrão ou qualquer outra coisa que mate a fome. Uma pessoa declarou que aprendeu “o valor de um ovo. Mas já pensaram como ter ovos no frigorifico [geladeira] é valioso? Não posso sair para fazer compras, então ter sopa e ovos é uma fortuna”.  Relembro da “Pirâmide de Maslow”, à qual fui apresentado na graduação em Administração de Empresas. Na base da pirâmide estão as necessidades básicas: fisiológicas, como respirar, comer e reproduzir e de segurança, como ter um lugar aonde dormir, estar protegido, ter trabalho ou renda. Nesta pandemia, o que tentamos assegurar, prioritariamente, é a satisfação dessas necessidades. Depois, as necessidades de relacionamento social, atenuadas pelos meios virtuais. Ou seja, buscamos primeiramente sobreviver, pulso vital de tudo que vive.

Neste cenário, uma “coisa” tem um papel destacado: o telefone celular (ou smartphone). Enquanto uma pessoa declarou que aprendeu a “desligar o celular durante 12 horas seguidas” outra disse que “o telefone celular é de uma utilidade incalculável!”. E não foi a mesma pessoa que disse “sou incapaz de ficar sem saber da vida dos outros!”. Enquanto para uns, nesse confinamento, o celular tem um papel importante ao atenuar as distâncias e manter o convívio social, de alguma forma nos aproximando das pessoas queridas, para outros, manter-se afastado dele se tornou necessário, numa verdadeira “desintoxicação” tecnológica, ao dar mais atenção ao real (que está à nossa volta) que ao virtual. Há também quem não tenha sentido tanto os efeitos do atual momento, pois percebeu “que já fazia confinamento e não me dava conta”.  A sociedade em que vivemos, principalmente nos grandes centros urbanos, nos leva a crer que todos são “out”, esquecendo que muitas pessoas são ‘in”, que tem mais prazer em ver um bom filme em casa, a dois, que ir ao cinema (ainda que “a programação da Netflix é [seja] muito fraca. Não atende a quem, efetivamente, gosta de cinema”); que preferem receber os amigos, que ir para um barzinho; que gostam mais de videogame que de jogar bola. Alguns preferem o seu “infinito particular” (Marisa Monte) ao “sou de todo mundo” (Os Tribalistas). Nesta reclusão, o Tempo ganha uma nova dimensão. Deixa de ser Chronos para ser Kairós, o tempo sem relógio (principalmente o de ponto), possibilitando que possamos realizar aqueles desejos que sempre aguardaram o “momento certo”: aprender “as escalas musicais maiores no teclado”, estudar um idioma, resgatar a máquina de costura, arrumar os objetos guardados por anos naquela caixa, dentro do guarda-roupa”, ler mais. São muitas as “artes do ócio”. Há uma “inversão de prioridades. O que sempre deixamos para depois, passa na frente” e “as nossas urgências/prioridades do cotidiano sempre podem esperar”.

Um comentário especificamente me relembrou a “fórmula de felicidade” de Epicuro, composta de três fatores. O primeiro deles é ter amigos. Então, “não poder almoçar e tomar uma [cerveja]” com as pessoas que gostamos, realmente faz uma grande diferença. Talvez o maior “castigo” dessa pandemia seja, nos manter temporariamente afastados daqueles que amamos, o que aumenta ainda mais a importância deles. Isto nos leva ao próximo segmento.
 
2. COMUNIDADE/SOCIEDADE
 
Para alguns filósofos o homem é um ser social, que precisa interagir com os outros integrantes da sua espécie para sobreviver e realizar as suas necessidades, sejam elas materiais ou intelectuais. Essa relação começa no menor núcleo social, que é a família, e vai se expandindo para outros espaços, até abranger toda a humanidade, pois “nada do que é humano me é estranho”, como disse Públio Terêncio Afro (século II a.C.), que foi escritor, depois de ter sido escravo. A importância da família, nesse momento, foi destacada por algumas pessoas com declarações como: “é muito fácil ficar em casa para quem tem uma ótima casa e companhia” e “qualquer oportunidade para voltar o olhar para sua família, sua casa e seus amigos deve ser abraçada”. É a partir desse núcleo central que expandimos as nossas relações interpessoais.

De dentro de casa, isolados, passamos a perceber quem realmente tem maior importância em nossas vidas, quem faz a diferença, pessoas com quem estabelecemos laços fraternos que perdurarão por toda a vida, apesar do tempo e da distância. “O isolamento social tem seu lado limitante, sem dúvida, pois afasta muitas pessoas. Contudo, é uma perfeita oportunidade para aproximar mais outras pessoas”, declarou uma colaboradora. Em sentido inverso, também percebemos para quem somos importantes, quem procura saber como estamos, se precisamos de algo. O distanciamento social reforça as relações autênticas, ao mesmo tempo em que evapora aquelas que já são “líquidas”, como diria o pensador Zigmunt Bauman.

Não acredito que esta pandemia venha a transformar maus em bons, indiferentes em humanitários, que teremos uma sociedade mais justa e mais solidária quando a crise passar. Situações de exceção, como esta, potencializam aquilo que já trazemos em nosso íntimo. As pessoas que já são naturalmente solidárias se predispõem a ajudar aqueles que precisam, da forma que podem. No extremo oposto, outras se dedicam a tirar o melhor proveito da situação, seja acumulando recursos que podem fazer falta a outras pessoas (como estocar alimentos ou medicamentos) ou aumentando exageradamente o preço dos produtos mais procurados (como álcool, máscaras e luvas). No citado livro Ensaio sobre a Cegueira, existem personagens cegos que se dedicam a explorar outros cegos, enquanto uma mulher que enxerga, que poderia tirar proveito da situação, se dedica a ajudar que nem conhecia. Assim é a chamada “natureza humana”.

Esta pandemia evidenciou “como nunca na história deste país”, através dos veículos de comunicação, a realidade de milhões de brasileiros, para quem receber uma contribuição de seiscentos reais pode representar a diferença entre a vida e a morte. A realidade de pessoas que moram nas favelas, nas ruas, desempregadas ou subempregadas, vivendo de “bicos”, lutando a cada dia pela sobrevivência, catando os restos do que a sociedade consumiu. Uma colaboradora disse “que tem mais gente necessitando de ajuda que eu imaginava”, “que todos precisamos ser mais solidários e fazer mudanças quanto a isso, ajudando efetivamente” e que “é feio falar que fico só comendo enquanto tem tanta gente sem nada para comer”.  

Todos sabemos que é preciso realizar uma grande mudança, só não sabemos como fazê-la. Todos sabemos que é inconcebível, imoral, que apenas 1% de habitantes do planeta detenham 50% de toda a riqueza, e que isto não vai mudar nem que tenhamos uma pandemia por ano. Todos vimos como bilhões de dólares foram utilizados pelos governos para “salvar” os bancos na crise financeira de 2008, e como está sendo difícil obter alguns milhões deles para salvar vidas. A pobreza mundial é indecente e isto nos leva ao item seguinte.

 
3. POLÍTICO
 
Algumas pessoas acreditam, equivocadamente, que o estado democrático em que hoje vivemos era igualzinho à democracia da antiga Grécia. Isto é um engano, assim como a polis não era exatamente a cidade como hoje a conhecemos. Em primeiro lugar aquela sociedade tinha um modelo excludente, que prevaleceu no Ocidente até o século XIX. Aqueles que tinham direito a opinar, a votar, a decidir os destinos da cidade eram homens, livres e de determinado poder aquisitivo. Escravos, pobres e mulheres estavam automaticamente excluídos. A polis não era apenas a estrutura arquitetônica da cidade, com suas casas, templos, termas e estádios, mas todo o substrato social, que abrange o território, a interação entre os indivíduos, a cultura, as crenças, tudo que envolve a vida em sociedade. A nossa sociedade republicana ampliou a participação popular nas escolhas de seus representantes, incluindo aqueles que antes estavam excluídos do processo, mas reduziu o poder de influência do indivíduo nas decisões que lhe atingem. O antigo “animal político” agia circunscrito aos limites territoriais da sua cidade, diferentemente do “ser social” de hoje, conectado a uma rede de decisões bem mais ampla. Como exemplo, podemos tomar a influência das mensagens veiculadas por redes sociais nas eleições presidenciais brasileiras em 2018, muitas delas produzidas por “robôs”, ou a Primavera Árabe, em 2010.

A sociedade se transformou e o poder mudou de mãos. O citado filósofo Alain de Botton, que também realiza estudos na área de arquitetura e urbanismo, nos chama a atenção para o fato de como, ao longo do tempo, as grandes construções arquitetônicas simbolizam quem detém o poder. Inicialmente, os grandes templos (religião), depois os grandes castelos (poder político e militar) e, atualmente, os edifícios das grandes corporações comerciais e financeiras, as “torres”: Shangai Tower (China), Makkah Clock Tower (Arábia Saudita), Lotte World Tower (Coreia do Sul), etc. O atual modelo econômico capitalista, em que algumas empresas possuem uma riqueza acumulada maior que o PIB (Produto Interno Bruto) de inúmeros países, dá bem a ideia da nossa realidade. A pandemia trouxe à tona um debate que é intrínseco ao próprio modelo capitalista: salvar a Economia ou salvar vidas? Como conciliar uma e outra coisa? Neste momento crítico, empresas que possuem recursos estão demitindo pessoas da mesma forma como desligam máquinas, sem se preocuparem em como aqueles trabalhadores irão sobreviver. Querem salvar a empresa, não as pessoas. Ao mesmo tempo em que o capitalismo neoliberal apregoa a mínima intervenção do Estado na Economia, quer que ele venha em seu socorro, injetando recursos, nos momentos de crise. Um colaborador disse que aprendeu que “não temos Governo” enquanto outro disse que “o socialismo é muito melhor do que o capitalismo”. Eu vejo que temos governo, sim, mas é possível perceber claramente a serviço de quem ele está. Ainda não tivemos um governo socialista plenamente exitoso, mas convivemos diariamente com todos os efeitos colaterais do capitalismo, e sabemos que este modelo também está exaurido. Um colaborador disse  “que eleger governos autoritários é um enorme risco, desde os tempos de Platão e Aristóteles”, com o que concordo, sejam eles de esquerda ou de direita.

O conflito entre capital e trabalho, muito bem analisado por Karl Marx, vem à tona neste cenário, com um novo componente: o trabalho em casa (home office). Hoje, a tecnologia possibilita que o trabalhador produza mesmo estando em seu lar. Os comentários feitos pelos colaboradores questionam qual a necessidade de profissionais de determinadas atividades ficarem “presos” fisicamente ao seu local de trabalho, quando poderiam produzir o mesmo, ou até mais, estando em casa, tendo uma melhor qualidade de vida e mais liberdade. Aqui chegamos ao segundo fator que Epicuro elenca como fundamental para a felicidade: Liberdade. Não apenas a liberdade de expressão, sempre suprimida por governos autoritários, mas a liberdade para gerir o seu tempo da forma que lhe for conveniente, dedicando uma parte dele às atividades profissionais, mas também ao lazer, ao convívio familiar e ao ócio criativo, ou seja, ao prazer, a coisa mais importante para os epicuristas.

Quando citei a ampliação da participação popular nos processos eleitorais, com a redução do seu poder de influência, me referia exatamente a isto. Quando decisões essenciais devem ser tomadas pelos governantes, raramente elas são para proteger quem os elege, mas sim a quem mantém a estrutura do sistema de exploração capitalista, coincidentemente os mesmos que patrocinam suas campanhas. Muito diferente daqueles que podem trabalhar em casa é a situação daqueles que nem nas ruas podem trabalhar, nesse momento, a exemplo dos vendedores ambulantes, em sua maioria, informais. Pessoas que precisariam de todo o apoio financeiro do Estado, representado por aqueles a quem elegeram. Esta “liberdade vigiada” à qual fomos submetidos, ainda com o total controle dos nossos corpos (mas não de nossas almas), relembrando Foucault, nos provoca reflexões. “As grades do condomínio são pra trazer proteção, mas também trazem a dúvida, se é você que tá nessa prisão” (O Rappa). Com algumas dessas dúvidas chegamos à parte final deste texto.
 
4. EXISTENCIAL
 
O terceiro fator para a felicidade, citado por Epicuro, é viver uma vida em reflexão, bem analisada. Ele destaca como fundamental encontrarmos o tempo e o local para “pensarmos” a nossa vida. De uma forma compulsória, a pandemia nos proporcionou, ainda que brevemente, a possibilidade de pararmos e refletirmos sobre a nossa existência, o que temos feito com ela e o que podemos fazer daqui para frente. Aliás, esta foi a motivação principal deste texto: provocar reflexões e, consequentemente, atitudes que promovam transformações, sejam pessoais ou coletivas, com a ajuda de colaboradores que relatassem suas experiências pessoais.

Nesta “parada” muitas pessoas perceberam a importância de cuidar do seu corpo e de sua mente, algo que quase sempre postergamos. Duas pessoas citaram a importância de separar o essencial do não-essencial e de descartar o supérfluo. Mas esta descoberta do que é essencial ou não é um delicado processo individual. Cada um deve perceber o que realmente faz diferença em sua vida, e o que não. Não existem fórmulas prontas.  Disso decorre um outro elemento, citado também por duas pessoas: a isenção de julgamento. O que é importante para mim, pode não ser para você. O que lhe vivifica, pode me matar. Existem estruturas psíquicas tão arraigadas que não podem ser repentinamente demolidas, sob pena de causar um mal ainda maior. Os processos de transformação mais eficazes são lentos, e não abruptos. Começam com uma constatação, fruto da reflexão, da análise, que leva a uma proposta de mudança, que pode ou não se concretizar, que pode demorar um tempo maior ou menor.

Nesse processo o silêncio tem um papel fundamental. Quando o mundo à nossa volta silencia, a alma sussurra e, se dermos a devida atenção, poderemos ouvi-la. Aprendendo a silenciar a mente, de Osho,  é um livro que aborda muito bem esta questão. Deserto, desertos, de Leloup, também, mas com outro enfoque. Parar, silenciar, dar mais ouvidos a si mesmo, reduzir o ritmo das atividades, da mente. Às vezes, uma ajudinha no processo de reflexão é necessária. Alguém disse que “aprendi que tem muita gente precisando de terapia sem fazer”. Sobretudo, esta pausa nos ensina a “viver um dia de cada vez” ou, como diria o filósofo Horácio (séc. I a.C.), Carpe diem, quam minimum credula postero: aproveita o teu dia, não acredites no amanhã, e a seguir a máxima do Oráculo de Delfos, repetida por Sócrates: temet nosce: conhece-te.
 
 
 
CONCLUSÃO
 
Chego ao final deste texto já na madrugada do dia 2 de maio. Lá fora começa a chover, a água molhando as plantas e as flores do meu jardim. Elas devem ficar felizes, pois tudo que precisam é de terra, ar, água e luz (fogo), os quatro elementos dos quais o filósofo Empédocles (século V a.C.) dizia tudo ser constituído. Mas nós, os seres humanos, sociais e políticos, também parecemos ser dotados de um quinto elemento, que faz com que tenhamos consciência de nós mesmos e do universo. Tateando na escuridão, tentamos acender pequeninas chamas que iluminem a nossa caverna (e a de Platão). Quando achamos que encontramos todas as respostas, surgem novas perguntas. “Por que precisamos passar por tudo isto?” é uma delas.  Não sabemos responder, mas podemos dizer o que aprendemos com tudo isto. E, como dizia Leonardo da Vinci, aprender é a única coisa que a mente nunca tem medo, nunca se cansa e nunca se arrepende. Aprendemos com nossos erros e acertos, mas também com os dos nossos semelhantes. E precisamos registrar nossos erros, para que não voltemos a repeti-los. Como historiador sei bem a importância de não esquecermos nosso passado.
Epicuro nos ensina que a coisa mais importante na vida é a simplicidade. Afastados dos shoppings centers podemos repensar sobre nossos padrões de consumo e como eles estão relacionados com nossas angústias e ansiedades. Afastados das pessoas de nosso convívio social, aprendemos quais relações merecem ser preservadas  e melhor cuidadas, e quais não. Afastados do burburinho de vozes e do barulho ensurdecedor dos veículos, podemos aprender a ouvir o silêncio e o que vem depois dele.

Enquanto seres humanos, individualmente, estamos tendo nossos aprendizados. Mas, será que após tudo isto as fronteiras entre os países estarão ainda mais fechadas, ou aprenderemos que os vírus não respeitam fronteiras? Será que aprenderemos que não é possível salvar as economias, sem antes salvar quem as movem? Voltaremos a dizer: bom dia, por favor, com licença, me desculpe? O que você faria se só lhe restasse um dia (Paulinho Moska)? Tudo agora mesmo pode estar por um segundo (Gilberto Gil). Acreditamos que estamos no controle de nossas vidas, mas um microscópico vírus pode desconstruir todos os nossos planos. Destino, karma, vontade divina ou apenas acaso? E os projetos de utilizar energias mais limpas, deter a destruição das florestas, investir em pesquisas, redistribuir a renda, fortalecer os sistemas de saúde pública, dentre outros, voltarão para o fundo das gavetas? Alguém se lembra dos Objetivos do Milênio? Que faremos se houver uma COVID-20, 21, 22...? Não sabemos responder. As experiências e reflexões aqui apresentadas não pretendem ser conclusivas, mas provocativas.

Neste momento já foram ultrapassadas as 6.000 mortes no Brasil, e especialistas dizem que estamos apenas no começo. Não sabemos qual será o número final de vítimas. O texto de John Donne nunca foi tão atual: “Nenhum homem é uma ilha isolada... a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. Sinos estão dobrando por todo o mundo e faltam covas para tantos cadáveres insepultos.

Temos amigos e podemos começar a viver de forma mais reflexiva e analisada, mas para fechar a tríade de felicidade de Epicuro, precisamos de Liberdade. E essa, amigos, nunca é concedida, sempre é conquistada com muita luta. Um novo dia está começando e estamos vivos. Vamos lutar?
 
 
Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 03/05/2020
Reeditado em 03/05/2020
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