Novos Tempos, Nova História, Novos Desafios - Uma Revisão da História dos Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro

Novos Tempos, Nova História, Novos Desafios

Carlos A. L. Carvalho

«Chegou a hora da etnologia enfrentar a turbulência »

Claude Lévi-Strauss, Histoire et Ethnologie

« Ao pensar nos ameríndios, uma espécie de clinamen filosófico parece indispensável para que, em qualquer setor do cosmos ou da sociedade, as coisas não permaneçam em seu estado original e que um dualismo instável, em qualquer nível que esteja, sempre resulte em outro dualismo instável »

Claude Lévi-Strauss, Histoire et Ethnologie

Uma Velha História... Uma nova realidade.

As citações acima nos levam a pensar no quão distantes temos andado da verdade, tanto histórica quanto antropologicamente, das sociedades indígenas, com especial ênfase nos grupos do nordeste brasileiro. Em grande medida nossa percepção da indigeneidade destes grupos tem sido ofuscada pela presunção de que “índio de verdade” vive na selva, usa pouca ou nenhuma “roupa de branco” e que fala uma língua ancestral pouco conhecida. Todo este estereótipo, que não deixa de ser real ainda para muitos povos chamados “povos da selva”, isolados ou de recente contato com a sociedade não indígena envolvente, não se aplica aos grupos nordestinos, sejam grupos historicamente conhecidos ou aqueles que foram considerados aculturados, mestiçados ou mesmo extintos, até os grupos novos, sociopolíticos, que chamarei de etnizados.

Como consequência deste equívoco, a missiologia tem tratado tais grupos como de menor interesse para o olhar transcultural, uma vez que os classificamos como sem língua nativa e “sem cultura”. Não é preciso dizer que tanto o termo quanto a ideia são absurdos, mas, falas como esta são comuns nos meios missiológico e missionário, e geraram um abandono destes povos, entregando-os aos esforços das igrejas locais daqueles rincões no alcance das populações sertanejas.

Ocorre que estas mesmas igrejas locais são compostas por populações que historicamente têm vivido em conflito com os grupos indígenas desde os primeiros dias da colonização. Nos dias atuais, cidades inteiras vivem em conflito com aldeias urbanas, vivendo uma no limiar da outra ou, muitas vezes, uma dentro da outra, ao ponto de alguns estudiosos usarem hoje os termos “aldeia urbana” e “cidade indígena”.

É extremamente importante este momento que vivemos de uma discussão aberta sobre esta questão. É imperativo que tomemos consciência desta nova realidade que inclui tanto uma revisão histórica do processo de colonização, mestiçagem, aculturação ou reorganização cultural, pseudo extinção, ressurgimento e até o que chamo de etnização ou etnogênese, e que, à luz disto, possamos rever nossa maneira de pensar os indígenas nordestinos e nossas estratégias de treinamento de missionários e de atuação entre estes povos, de forma a conhecer e respeitar suas origens e sua história, para podermos comunicar-lhes um Evangelho compreensível e relevante.

Para tanto, quero traçar um caminho resumido da história, desde o descobrimento das terras e dos povos brasileiros até a situação atual das populações indígenas remanescentes no nosso Nordeste, especialmente dentro do período quinhentista, que, conforme observo, nos dá um esboço da história dos últimos quinhentos anos.

Mas o que justifica esta revisão histórica com relação aos povos indígenas da nossa região nordeste? Em primeiro lugar, nordeste porque foi a primeira região do país a sofrer a influência da colonização e seus povos foram os primeiros a experimentar a invasão, a perseguição, a escravidão e a destruição do seu mundo e modo de vida. Em segundo lugar, uma revisão histórica, neste caso, se justifica pelo fato de não buscar a negação de algo que aconteceu, como no caso do holocausto judeu, mas da afirmação de atos e fatos históricos que foram omitidos e “apagados” pela história contada pelos colonizadores.

A Realidade a partir da História

A reflexão sobre o lugar dos índios (nordestinos) na história, considerando sua invisibilidade enquanto sujeitos históricos no século XIX e o protagonismo crescente revelado pela historiografia atual, implica, a meu ver, analisar de forma conjunta algumas questões [...] Refiro-me à política indigenista do Império, à cultura política indígena, ao nacionalismo e à etnicidade, enfocando a problemática das controvérsias e imprecisões sobre as classificações étnicas e os conflitos de terra nas antigas aldeias coloniais. (ALMEIDA, 2003) (Grifo meu)

Embora não seja específico sobre os índios no Nordeste, o livro «Os índios e a Civilização», com o subtítulo “A Integração das Populações Indígenas no Brasil Moderno”, do antropólogo Darcy Ribeiro, teve a primeira edição publicada no Brasil em 1970. No capítulo “Os Índios do Nordeste” o autor fez uma retomada histórica sobre os processos de esbulhos às terras indígenas na Região.

Ao tratar dos indígenas que habitavam no Sertão do São Francisco o antropólogo afirmou que em função da expulsão dos seus territórios, os índios se dispersaram, vivendo, no início do século XX, “aos bandos que perambulavam pelas fazendas, à procura de comida”, e de forma pejorativa, e talvez sarcástica, completou: “vários magotes desses índios desajustados eram vistos nas margens do São Francisco” (RIBEIRO, 1982).

Desde os primeiros momentos da chegada dos Portugueses ao litoral nordeste brasileiro, as populações indígenas ali presentes em grande número e diversidade foram abruptamente confrontadas com a realidade de que haviam outros mundos, diferentes, assustadores e perigosos. Estas novas criaturas não apenas se vestiam e tinham uma aparência diferente, mas falavam uma “voz estranha” e se comportavam de maneira pouco educada e desrespeitosa. A invasão de domicílio e de privacidade, era vista pelos recém-chegados como natural, uma vez que estas criaturas não eram na verdade humanas.

Pero Vaz de Caminha, poucos dias depois do "achamento", declarava que "…eles, segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença". Também pouco tempo depois de sua chegada, em sua "informação das terras do Brasil" (agosto de 1549), o padre Manuel da Nóbrega afirmava categoricamente que "esta gentilidad a ninguna cosa adora".

Pero Magalhães de Gândavo, em 1570, e Gabriel Soares de Souza, em 1587, escreviam que os índios não têm "nem fé, nem lei, nem rei". Também para o jesuíta Cardim, "este gentio não tem conhecimento algum de seu Creador, nem de cousa do Céo… e, portanto, não tem adoração nenhuma, nem cerimonias, ou culto divino" (CAMINHA Pero Vaz de. "Carta de Pero Vaz de Caminha". In PEREIRA, Paulo Roberto (org.) Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999)

A Europa clássica, centro do desenvolvimento nos idos de 1500, não apenas observava as populações do novo mundo como algum nível inferior de gente, ou menos que isto, mas ainda as avaliava pelo filtro do olhar religioso cristão católico romano, pelo qual se desenvolveu a ideia de paganismo ainda hoje presente em alguns círculos. Tanto o contato inicial como os primeiros anos do pós-contato geraram graves problemas para as populações indígenas. Doenças, mortes, que na verdade aconteceram dos dois lados, mormente entre os nativos, dominação, apropriação de terras, tudo isto contribuindo para um processo de colonização destrutivo.

Diferentemente do negro africano que posteriormente também seria inserido como variante nesta equação, o índio não se sujeitaria à dominação e à escravidão apesar que muitas das tribos dominantes também faziam seus escravos aos grupos que venciam nas inúmeras guerras indígenas. Algumas cobravam tributo e intimidavam os grupos menores ou menos representativos. Contudo, uma combinação de características culturais provou não permitir que os índios se mostrassem bons escravos dos colonos portugueses. Ainda que para muitos dos escritores e historiadores da época o índio era “preguiçoso” e de “pouco lidar”, satisfazendo-se apenas da caça e da pesca, o tempo mostrou que este estilo de vida não era, de maneira alguma, fácil nem de pouco trabalho.

O regime de escravidão não foi apenas um suplício físico para os indígenas, ele também foi um suplício espiritual. Além das diversas atividades a que foram submetidos – como ocorre em qualquer regime escravocrata – os indígenas, por sua natureza de liberdade e extrema ligação com o meio ambiente, sofreram desde muito cedo pelo afastamento total de seu meio, de seus companheiros e, mais ainda, de sua cultura e religiosidade. Eram submetidos a uma catequese da qual nada entendiam, além de serem obrigados a um batismo totalmente sem sentido, bem como a adotar nomes de origem europeia.

Obrigados a trabalhos forçados, tanto nas fazendas quanto nos meios urbanos, desestruturaram-se completamente. Vieram as doenças, a fraqueza física, a saudade e a desesperança. Viram-se perdidos em seu novo meio, tornando-se alvo fácil para o vício da bebida. O alcoolismo generalizou-se entre eles e a degradação como seres humanos levou-os à morte prematura. Nada disso incomodava os colonos, pois novas presas poderiam substituir aquelas que se fossem. Já o negro africano, na visão dos colonizadores, se mostrou muito mais “próprio” e resistente ao trabalho escravo, já que, mesmo tendo o desejo ardente de ser livre, demonstrava esperança de um futuro de liberdade e uma resistência passiva, conferindo-lhes uma disposição para continuarem vivos, mesmo como escravos.

Mas, esta história dos primeiros habitantes das terras brasileiras e de como eles conheceram os habitantes do velho mundo que chegavam curiosos e ávidos pelos tesouros do novo mundo se desenrola de maneira inicialmente pacífica, mais pelo temor mútuo, pela estranheza, e menos pelo respeito, e logo se transforma em uma história de dominação, espoliação e destruição, como nos conta Antonio Carlos Olivieri, escritor e jornalista:

O contato inicial entre índios e brancos não chegou a ser predominantemente conflituoso. Como os europeus estivessem em pequeno número, podiam ser incorporados à vida social do índio, sem afetar a unidade e a autonomia das sociedades tribais. Isso favoreceu o intercâmbio comercial pacífico, as trocas de produtos entre os brancos e os índios, principalmente enquanto os interesses dos europeus se limitaram ao extrativismo do pau-brasil. Em geral, nas três primeiras décadas de colonização, os brancos se incorporavam às aldeias, totalmente sujeitos à vontade dos nativos. Mesmo em suas feitorias, os europeus dependiam de articular alianças com os indígenas, para garantir a alimentação.

Toda a história dos quatro séculos seguintes pode ser vista claramente na sequência de eventos do primeiro século da colonização, isto é, os chamados quinhentos.

Desde os primeiros momentos da chegada ao que seria o Brasil, a corte portuguesa via aqui a grande oportunidade de ampliar e renovar seus recursos e riquezas escassos no contexto da Europa. Assim, em pouco tempo a corte portuguesa tomou medidas para que a terra fosse dominada e explorada. Inicialmente terras que iam desde a costa do Pará até a Bahia foram dadas em consignação a alguns nobres e pessoas de considerável posição na sociedade portuguesa na colônia. Mas, estes primeiros signatários não tiveram muito sucesso na administração destas terras o que levou o Rei D. João a alterar um pouco o regime de colonização criando assim as capitanias hereditárias que teriam uma administração mais oficial e ligada ao estado português.

Uma carta foi despachada pelo rei de Portugal, D. João III, em 20 de novembro de 1530, concedendo jurisdição a Martim Afonso de Sousa sobre todos os integrantes de sua armada e todos os habitantes do Brasil. Martim Afonso de Sousa pertencia a uma família nobre. Vivendo na corte, foi nomeado pajem do duque de Bragança e, posteriormente, do infante dom João, futuro rei de Portugal. Em 1521, foi para Castela, acompanhando a corte de dona Leonor, viúva do rei dom Manuel. A carta dizia:

“A quantos essa minha carta de poder virem, faço saber que eu a envio ora a Martim Afonso de Sousa do meu conselho por capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil e assim de todas as terras que ele achar e descobrir (...) aos capitães da dita armada, e fidalgos, cavaleiros, escudeiros, gente de armas, pilotos, mestres, mareantes e todas as outras pessoas que haja ao dito Martim Afonso de Sousa por capitão-mor da dita armada e terras e lhe obedeçam em tudo e por tudo o que lhes mandar."

Esta divisão e distribuição de terras, além de não dar certo e gerar então o surgimento das Capitanias Hereditárias, geraria o primeiro grande problema, tanto ecológico como social. Para o estabelecimento das fazendas agrícolas, grandes desmatamentos começaram a acontecer e com eles a destruição de grandes áreas de perambulação de muitos povos nativos, os quais se viam agora sob franca agressão do seu modo de vida.

Ao mesmo tempo os colonizadores perceberam que não poderiam usufruir da terra, plantar, colher sem uma grande mão de obra, e a mão de obra mais à disposição seriam as populações indígenas. Mas, como mencionado anteriormente, as populações indígenas reagiram a este processo enganoso de aproximação por parte do colono, inicialmente amigável, mas que levaria à escravidão, diferentemente da população negra que, aos olhos do colono escravagista, se adaptou bem ao regime de trabalho escravo,

Com as populações indígenas isso não ocorreu, suponho, por duas razões. Primeiro, pela situação de exclusão e marginalidade em que desde o início da colonização foram mantidas, sempre submetidas a uma forte e direta tutela, que outorgava a outros o direito de pensar e falar por eles. (OLIVEIRA, 2016, p. 12)

Maria Hilda Paraíso, da UFBA, nos diz:

Inicialmente cabe chamar a atenção para o fato de que a colonização da América portuguesa exigiu, entre outras questões, repensar as relações de trabalho, passando esse a ser um dos temas centrais de discussão sobre a colonização. [...] O modelo que se buscou implantar tentava conciliar uma base de dominação política, centralizando o poder nas mãos de agentes governamentais e uma organização econômica mercantilista, menos centralizada, que procurava incorporar a atuação e a iniciativa de agentes particulares. [...] Após o fracasso dos arrendamentos de grandes porções do território colonial a particulares, em 1532, a Coroa deliberou por implantar o sistema das capitanias hereditárias.

O futuro das capitanias, no entanto, foi desastroso, quer pela incompetência administrativa dos donatários, quer pela resistência dos indígenas que de uma forma ou outra já começavam a ser compulsoriamente incluídos no trabalho agrícola e extrativista. Dentre os problemas com os indígenas se destaca a violação de suas terras originariamente de habitação e perambulação com a expansão das fronteiras agrícolas e o aumento gradativo do uso da mão de obra nativa de forma impositiva, compulsória, e, porque não dizer, escravagista. Vale ressaltar aqui inicialmente, que a mencionada “violação de terras de habitação e perambulação” se explica pelo fato de que, por natureza, os povos nativos viviam num regime de nomadismo ou seminomadísmo, já que não eram agricultores nem criadores, mas caçadores, pescadores e coletores. O sedentarismo europeu não compreendia isto, e, portanto, não via a necessidade desses povos por terra para a perambulação.

Alguns grupos indígenas, especialmente os grandes grupos litorâneos que primeiro encontraram os europeus tiveram a impressão inicial de que era possível estabelecer uma relação amigável de escambo, coisa comum ao seu universo, mas logo perceberam que isto não seria possível, e esta relação frágil logo daria lugar à dominação e, claro, à resistência, ou às chamadas “guerras indígenas”.

Entre os anos de 1530 e 1546 a política de arrendamento de terras e de capitanias hereditárias foi a tentativa da coroa portuguesa de desenvolver e extrair da terra tudo que pudesse em termos de riquezas para suprir a demanda e a ganância dos reis e nobres. Como já mencionado, tal estratégia não foi adiante por diversos fatores. Além disto, a constante ameaça de outros potenciais colonizadores como França, Espanha e Holanda, criavam um clima de constante apreensão e da necessidade de possuir a terra de maneira mais real e eficiente.

A relação portugueses e indígenas cada vez mais se agravava em toda a região, pois, apesar da proposta de convivência amigável, as constantes incursões de colonos nas aldeias em busca de trabalhadores mostrava que a relação não era verdadeira, o acordo de não ataque não era respeitado e demonstrava um claro desrespeito às alianças, até mesmo a alianças matrimoniais que se havia constituído entre colonos e indígenas. Para os indígenas, as únicas maneiras de resistir e protestar contra estes desmandos eram a rebelião e a guerra, mesmo que estas fossem fadadas ao insucesso.

A década dos 1540 foi especialmente marcada por estas revoltas, como conta Paraíso:

As contradições e os conflitos se acentuaram na década de 40. Estão registradas as revoltas na Bahia, em 1545; em São Tomé, em 1546; no Espírito Santo, em 1546 e em Porto Seguro, em 1546. Tais eventos preocupavam o governo português ante a vulnerabilidade dos estabelecimentos litorâneos ameaçados pelos ataques dos indígenas e dos franceses, além de representarem graves prejuízos quanto aos investimentos feitos e a perda da vida de moradores que para ali haviam sido deslocados com grande dificuldade pelos donatários. (PARAÍSO, 2018)

João Pacheco de Oliveira nos conta que as primeiras décadas da colonização do nordeste brasileiro foram marcadas por várias mudanças de paradigma na relação entre a coroa, os colonos e os povos indígenas. Como já foi dito, a sensação inicial de que seria possível a convivência pacífica logo começou a ser substituída pela sensação de trabalho forçado e espoliação de bens e terras.

Outro fator interessante neste momento da história e que perduraria por muito tempo, é a visão antropológica evolucionista que entendia que a evolução das sociedades vem sempre pelo fator externo, isto é, se as sociedades indígenas, se é que podiam ser consideradas sociedades, evoluiriam, seria através da atuação do “civilizado” europeu. Curiosamente, segundo Oliveira, esta compreensão evolucionista da história não é vista apenas no período colonial do século XVI, mas, também, no século XIX e no pensamento antropológico evolucionista europeu.

Assim, a dominação colonial e a consequente desintegração e desaparecimento daquelas populações seria um resultado natural do desenvolvimento, onde o selvagem seria absorvido pelo civilizado, justificando qualquer atuação ou comportamento, sem qualquer preocupação ou lembrança de que antes que o europeu aqui chegasse e se instalasse a farsa do “descobrimento”, o novo mundo e sua população nativa já existiam e aqui viviam e morriam por séculos.

Se, antes da chegada dos portugueses, os indígenas eram os detentores exclusivos dos recursos naturais, a narrativa sobre eles dentro dessa história em ciclos deveria ser feita preferencialmente antes da colonização. Uma vez iniciada, os indígenas só poderiam ser concebidos como flores que fenecem, que precisam ser descritas e compreendidas antes que murchem e desapareçam. A superioridade tecnológica e militar dos colonizadores, as violências e epidemias dariam conta de explicar a sua extinção .(OLIVEIRA, 2016, p.47)

Como mencionado anteriormente, a relativa paz dos primeiros anos do contato europeu-nativos, logo se tornou em conflito de intensidade crescente. A distribuição e tomada das terras nativas, o extrativismo e o comércio do pau-brasil que instalou um regime de mercado e de trabalho forçado, somados à presença e à relação belicosa entre portugueses e seus aliados indígenas e franceses e seus aliados indígenas, foram fatores que, direta e indiretamente, contribuíram para duas vertentes históricas. Primeiro, as alianças indígenas-europeus criaram a visão idílica do indígena no cenário europeu, onde essas associações produziriam até mesmo certo prestígio aos monarcas envolvidos.

Contudo, essa crescente relação sociocultural levaria à rápida mudança de costumes e comportamentos dos indígenas, que, além de perderem aos poucos suas terras e suas ligações com sua própria história, perderiam também sua identidade através da miscigenação, produzida até mesmo pela prática dos senhores colonos de “gerar” mão de obra casando-se ou mesmo emprenhando índias de maneira a produzir uma nova geração de trabalhadores. Mas, a miscigenação, ou mestiçagem, como ficou conhecida na história, não se deu apenas com os colonos europeus, mas também entre os diferentes grupos indígenas que vinham para perto das colônias para evitar serem caçados, ou fugiam para os interiores encontrando com outros grupos indígenas, encontros estes que geravam um novo modelo de reorganização cultural.

A realidade dos movimentos migratórios

A professora Luana Polon nos conta que:

Mesmo antes da chegada dos europeus para a colonização das Américas (aliás, que também não passou de uma migração), já havia um dinâmico fluxo migratório no que hoje denotamos como o território nacional brasileiro, mas estendendo ao espaço continental americano entre os povos indígenas, possibilitando trocas culturais, materiais e econômicas entres as civilizações pré-colombianas e tribos indígenas.

Após o século XVI, o território hoje compreendido pelo Brasil, passa a receber imigrantes portugueses (em toda faixa litorânea do Sudeste ao Norte) e espanhóis (ao Sul e Oeste) no sentido de explorar e colonizar o continente. Além destes, há uma migração francesa, no sentido de disputar territórios com as nações ibéricas (Portugal e Espanha) no Sudeste brasileiro e no Norte (Amapá). Ainda, no período colonial há a migração holandesa no Nordeste, disputando a região com os portugueses.

Em todo período de colonização, por parte dos europeus, do território brasileiro, são realizadas as “migrações forçadas”, de indígenas do interior do continente sul-americano e de negros oriundos de várias partes do continente africano como mão de obra escrava, no âmbito do desenvolvimento colonial.

Estes movimentos, quer naturais, antes da chegada dos colonos, ou forçados pela perseguição e pela invasão de terras, produziam uma mistura de culturas que é a expressão exata da dinâmica cultural, ou seja, de que cada cultura tem a capacidade de evoluir, mudar, atualizar-se, não apenas através do elemento externo nos encontros interétnicos, mas, também pelo fator interno dos inovadores de cultura. Certamente estes movimentos de fuga migratória intensificados pelo medo da dominação foram determinantes para a reorganização de padrões culturais e linguísticos das populações indígenas nordestinas de forma agressiva e desagregadora, gerando mais perda do que apenas transformação ou redefinição cultural.

O avanço das vilas que logo se tornariam cidades rurais e grandes aglomerados de população mista, atrairia cada vez mais os antigos moradores das terras tradicionais para uma integração sociopolítica que aos poucos foi sendo considerada, numa abordagem radical, como a “morte” das sociedades indígenas da região. Muitos destes grupos, no entanto, decidiram no íntimo do lar, da família e mesmo do coração, manter vivas suas crenças, valores e até mesmo expectativas de futuro, sem, contudo, poderem escapar da inexorável transformação de suas cosmovisões, crenças e valores em um novo modelo cultural sincrético e, no futuro, para uma diluição não apenas cultural, mas também social.

É desta realidade histórica que vem minha percepção das três categorias de sociedades indígenas nordestinas que podemos identificar nos nossos dias, isto é, as 1sociedades indígenas históricas resistentes, as 2sociedades indígenas históricas ressurgentes, isto é, aquelas que se concebia extintas ou desaparecidas, e os 3grupos sociopolíticos que, pela força da política indigenista das últimas décadas e da ação antropológica aplicada às causas políticas, vêm se organizando em torno de uma “cultura nova” que tem sido observada e elogiada por muitos segmentos da sociedade nacional como um “milagre de ressurgimento”.

A realidade a partir de uma “nova” observação etnológica

Em minha opinião, o quadro que se pinta atualmente do ressurgimento destes grupos dados como historicamente desaparecidos, se trata, em um âmbito específico e não geral, de uma etnogênese artificial, a qual se dá em pouquíssimo tempo, décadas no máximo, e de forma consciente, diferentemente do processo longo e subconsciente de nascimento de uma etnia, na forma mais real e pura, a qual se dá como produto da história mitológica acumulada e passada entre gerações, a qual gera uma cosmovisão étnica, natural, única, coesa, que por sua vez gera um sistema de crenças e valores que identificam um povo como povo único em sua autoconsciência e autodesignação étnica.

Bem, é fato inegável, exceto para aqueles que, motivados por outros interesses que não o conhecimento e a prática antropológica o negam, que as sociedades humanas nunca, repito, nunca na história viveram em completo isolamento, a não ser que se considere isolamento quando ele se refere ao contato, por exemplo, entre uma tribo indígena e a sociedade majoritária de um país. Contudo, é facilmente provável que existe sempre uma rede de comércio e interatividade social entre grupos minoritários isolados em maior ou menor grau da sociedade envolvente. Todos estes contatos interétnicos produzem alterações, para melhor ou para pior, em todos os envolvidos.

Além do fator externo, reconhece-se ainda o fator interno, no próprio dinamismo cultural, onde ideias e inovações transformam conceitos, relacionamentos e artefatos de produção material, de um nível simples para um mais complexo. Para ser justo, me permito apresentar este contraponto ao pensamento ideal acadêmico tradicional, na avaliação da Professora Maria Regina Almeida , que nos diz:

Entender cultura e etnicidade como produtos históricos, dinâmicos e flexíveis, que continuamente se constroem através das complexas relações sociais entre grupos e indivíduos em contextos históricos definidos, permite repensar a trajetória de inúmeros povos que por muito tempo foram considerados misturados e extintos. Mudanças culturais vivenciadas pelos índios ganham outras interpretações e passam a ser vistas não apenas como perda ou esvaziamento de uma cultura dita autêntica, mas em termos do seu dinamismo, mesmo em situações de contato extremamente violentas como foi o caso dos índios e dos colonizadores.

E ainda...

O mesmo se pode dizer em relação às identidades indígenas que, transformadas e invisibilizadas, emergem hoje em conjunturas mais favoráveis, graças aos inúmeros processos de etnogênese. Tais processos evidenciam a falácia dos discursos de desaparecimento no século XIX. Alguns grupos, sobretudo no Nordeste, recuperam identidades indígenas com base nas antigas aldeias missionárias do período colonial que foram declaradas extintas pelo estado de mistura e « civilização » dos seus habitantes. Se, como afirmou Pacheco de Oliveira, esses processos não surgem do nada, é mister reconhecer que os índios nunca deixaram de existir, mas foram invisibilizados em conjunturas políticas e ideológicas desfavoráveis. (grifo meu)

Almeida parte do princípio de que este processo de “ressurgimento”, como diz Oliveira, “não surge do nada”. Mas este discurso, apesar de interessante politicamente falando, é no máximo isto mesmo, porque não há como negar que, ao longo de quase três séculos, vários destes grupos étnicos tiveram não apenas suas aldeias, mas seu modo de pensar, de viver e de falar alterados, e tiveram seu sentido de identidade diluído ao ponto de se dispersarem. Suas visões de mundo, autodesignações e autodefinições, suas autoconsciências como povo, se perderam.

De muitos destes, não de todos, o que resta hoje são, sim, descendentes que trazem consigo a carga genética de seus antepassados. Contudo, são pessoas que não sabem mais como foram seus ancestrais, no que criam e como se definiam, a não ser pelo pouco que podem ler nos escassos relatos históricos existentes e nos ainda mais escassos registros antropológicos. Uma questão que pode parecer filosófica, mas não é de fato, me incomoda quando penso neste processo que chamo de etnização e não etnogênese, é o fato bem compreendido pelos etnólogos de que a identidade de um povo se forma através de sua cosmovisão, de como e eles entendem seu universo e de qual é o seu lugar nele.

É esta compreensão do SER que leva ao FAZER o que eles fazem, ao FALAR o que e como eles falam. Neste processo de etnização a busca primeira destes grupos é a de um fazer, fazer igual, falar igual, arranjado, pensado, planejado, ou seja, é um FAZER que levará ao SER. Como já disse, reafirmo que este processo não foi totalmente igual para todos os grupos originários do nordeste brasileiro, até porque sabemos que o processo de reorganização sociocultural (termo atualmente usado para o antigo termo aculturação) é definido pela história de cada grupo e segue diferentes caminhos e graus. Uma observação importante nessa direção é o que nos diz Guillermo Bonfil em seu trabalho sobre a teoria do Controle Social. Ele nos diz:

Os povos indígenas eram essenciais para a economia colonial e as metrópoles e, posteriormente, foram exercidos através de vigários do sistema capitalista internacional. Na maioria dos casos, não havia isolamento ou autonomia, mas sujeição indireta, o que leva à expansão da sociedade dominante que assedia as comunidades indígenas, devora seu território e leva à falência e desaparecimento de mais povos indígenas. (grifo meu)

Em sua Teoria de Controle Cultural, ele nos propõe:

O controle cultural é uma forma de controle social em que a capacidade de decidir sobre os elementos culturais é afetada. O controle cultural, portanto, não é absoluto nem abstrato, mas histórico. Embora existam vários graus e níveis possíveis de capacidade de tomada de decisão, o controle cultural não implica apenas a capacidade social de usar um determinado elemento cultural, mas - mais importante - a capacidade de produzi-lo e reproduzi-lo.

De acordo com o momento histórico de seu desenvolvimento, uma sociedade pode ter uma 1cultura de resistência, uma 2cultura de inovação ou uma 3cultura de apropriação; esses três momentos dependem do grau de controle dos elementos culturais que uma sociedade possui, seja ela própria ou a dos outros.

As decisões próprias (autonomia) resultam, com seus próprios elementos, culturas autônomas e com elementos estrangeiros, culturas apropriadas ;

As decisões impostas (dominação) resultam em culturas alienadas com seus próprios elementos ou em culturas impostas com elementos estranhos. A partir da autonomia é possível construir a cultura da pluralidade, um espaço onde as diferenças são admitidas e valorizadas.

Em situações de dominação colonial, ou seja, quando a relação entre grupos com culturas diferentes é uma relação assimétrica, de dominação / subordinação, será possível distinguir, na cultura do grupo subalterno, a presença de elementos culturais que correspondem a cada um dos grupos.

Como avaliar, então, o cenário atual no nordeste indígena do nosso país? Como defini-lo? Como entende-lo? A que ponto a história que já observamos destes antigos grupos indígenas do nosso nordeste nos leva em termos de resultado atual. São perguntas para as quais quero propor aqui de forma inicial algumas respostas. Para tanto gostaria de me ater aos casos mais graves, isto é, daqueles grupos que hoje se denominam como renascidos e que eu denomino de etnizados. Quero evocar o artigo de João Pacheco de Oliveira intitulado Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais.

O autor vai nos confrontar com a ideia de que, para a maioria dos antropólogos e até da Antropologia como ciência, a identificação de uma cultura original pela análise etnográfica ou etnológica só poderia ser feita nos tempos iniciais de encontro entre povo e observadores, porque o envolvimento histórico com as culturas dominantes, seja dos colonizadores ou de outros povos, levaria a uma descaracterização cultural e, assim, o que restaria seria uma tentativa de descrever o que estes povos foram, e nunca no que eles são ou se tornaram, o que seria apoiado pela citação de Darcy Ribeiro que fala de “resíduos da população indígena no nordeste...” e “... índios desajustados”.

Diferentemente desta tendência, dois movimentos que surgiram durante os anos 70 (PINEB e ANAI) passaram a valorizar a indigeneidade presente no nordeste do Brasil como “uma unidade, isto é, um "conjunto étnico e histórico" integrado pelos "diversos povos adaptativamente relacionados à caatinga e historicamente associados às frentes pastoris e ao padrão missionário (católico) dos séculos XVII e XVIII" (Dantas, Sampaio e Carvalho 1992:433, em OLIVEIRA, João Pacheco de, Uma etnologia dos "índios misturados)

Encurtando a conversa, o fato verificável é que, ao longo de séculos de história de invasão, destruição, desapropriação e efetiva mistura dos povos nativos originários do nordeste brasileiro, seja com as populações colonizadoras, seja com outros povos indígenas, desenvolveu-se um processo de transformação, para dizer o mínimo, que, sim, descaracteriza quase totalmente vários daqueles povos e os integra à sociedade nacional, ao ponto de não mais se identificarem, eles mesmos, como “tal povo” ou “tal etnia”.

Não se pode negar, também, e não pretendo fazer isto, que outros grupos de uma maneira ou outra resistiram de forma mais firme ao avanço da influência externa, de forma que, tanto o processo como os resultados, não foram homogêneos nas realidades indígenas atuais na região.

Contudo, especialmente nos casos mais extremos, o grande desafio ao estudo e à compreensão desta nova realidade “ressurgida” é como considerar uma entidade étnica legítima um grupo claramente composto por descendentes, não só do mesmo grupo que se propõe a ser reconhecido, mas ainda de afrodescendentes, de outras origens indígenas e até não indígenas, todos estes mestiçados, sem nenhum sentido pejorativo ou discriminatório, num grupo heterogêneo unido apenas pelo desejo de serem reconhecidos e aceitos como povo indígena?

Como lidar com o fato facilmente observável de grupos que se reúnem para ler antigos relatos históricos e/ou antropológicos que narram um ou outro aspecto de uma cultura antiga que já não existe, e assim escolher e combinar entre si quais comportamentos vão adotar para ser sua “nova cultura”? De qualquer forma, meu objetivo neste texto era trazer à luz a história, ainda que de forma muito resumida, de povos, raças, tribos, mas mais o que isto, de pessoas, que foram assaltadas pelo arrastão da colonização, perseguidas, mortas e escravizadas em nome de civilização.

O presente dos nossos povos nativos da região nordeste são sem dúvida fruto de um passado triste que, a princípio, foi propositadamente escondido e maquiado. O tempo passou e a verdade foi de fato esquecida. Mas no presente, a sociedade brasileira tem sido despertada pela busca de alguns por esta verdade histórica nos poucos, mas importantes registros que chegaram até nós. A realidade presente desafia a sociedade, os estudiosos e todos os mais que desejem verdadeiramente compreender e respeitar essas pessoas, que é o que são no fim das contas.

Carlos A.L. Carvalho