Conceitos e discursos sobre a auto inscrição africana

A construção da identidade dos povos africanos, durante muito tempo, esteve permeada por discursos racialistas e estereotipias. Imagens cambiantes de uma realidade concreta. Com o posicionamento de pensadores e teóricos de África, tais convenções, antes tão válidas, começaram a cair em descrédito. Já não conseguiam mais responder aos questionamentos acerca da identidade dos africanos. Mas, isso correu numa longa duração.

Até o início do século XX, antes de uma revolução epistemológica promovida por pensadores africanos e estrangeiros que se debruçavam sobre o tema, tudo que se sabia sobre o continente africano estava baseado em mitos e preconceitos. O próprio filósofo alemão, Hegel, afirmava que a África era a-histórica. Um território e população com existência disfuncional no planeta Terra. Deslocada da humanidade como um todo.

A Europa Ocidental, em seu processo de expansão econômica e geopolítica, se pôs como centro do mundo, assentando África numa zona periférica — e outros lugares como Ásia e América Latina. Uma linearidade histórica se forjou, uma espécie de escala diacrônica da história mundial. Tem como marco inicial a Grécia Antiga e se conclui no projeto da liberal-democracia contemporânea (DUSSEL, 2005).

Essa perspectiva é teleológica e eurocêntrica. O eurocêntrismo é um etnocentrismo singular. É tanto uma ideologia, pois suas ideias mobilizam as ações dos indivíduos, enquanto os integra ao sistema, um paradigma por servir como um modelo básico, e discurso por estabelecer uma “verdade” (BARBOSA, 2008). O provincialismo europeu-ocidental se tornou uma cosmovisão.

Era impossível que a História da África, a memória, e identidade do “eu africano” não estivesse condicionada, em um primeiro momento, por preconceitos e estereótipos. África foi criada de fora para dentro, numa relação que pouco levou em conta o Outro. Ela aconteceu numa perspectiva binária, quando não maniqueísta: “Europa civilizada” em contraponto a “África bárbara”.

Após nos situar, definimos cinco os fatores que constituem ou interferem na auto inscrição dos povos africanos: “raça”, colonização, escravidão, “diáspora” e a Independência dos Estados-Nações africanos. É uma complexa genealogia que deve levar em conta vários aspectos, “(...) através dos processos de escravidão, colonização e apartheid, o eu africano se torna alienado de si mesmo (divisão do self)” (MBEMBE, 2001, p. 174).

Dentre os fatores supracitados, “raça” é um dos que mais pesa. A confusão entre o ser negro e ser africano ainda causa dificuldades epistemológicas, bem como políticas e sociais. Imensa maioria dos africanos se reconhecem como pertencentes aos seus respectivos povos. Um único país pode estar configurado em diversos povos, e esses povos podem estar agrupados em unidade étnicas maiores.

Muitos pensadores ocidentais, principalmente os afroamericanos do século XIX, transformaram a África, de modo apriorístico, no lar ancestral dos negros de todo mundo. Embora as “raças humanas” sejam construções sócio-históricas de mesmo período: “A ‘África’ de [Alexander] Crummell é a pátria da raça negra, e seu direito de agir dentro dela, falar por ela e arquitetar seu futuro decorria — na concepção do autor — do fato de ser negro” (APPIAH, 1997, pág. 22).

A “raça” continua a ser um empecilho para compreender África pelo seu caráter homogeneizador, negando o que esse continente tem de mais particular: sua diversidade. Entretanto, no século XXI, para muitos, o conceito não está descartado como base para interpretação das realidades de africanos e de suas respetivas Nações. Mas, há sim uma busca por criticar e estabelecer novos parâmetros.

Raça é uma das “barragens de mitos” mais resistentes da História de África, com um grande impacto nas representações e da construção da identidade (KI-ZERBO, 2009). É algo tão forte e arraigado, que durante muitos anos, nos primórdios da Egiptologia do século XX, havia uma distinção entre a África Negra e a África Branca (o Egito). Mitos bíblicos e racismo se somavam à metodologia científica, e assim nascia a Dual-África.

Um outro pensador africano cunhou o termo “mitos científicos” para designar essa ação: “o trabalho dos homens de ciência produziu também de maneira mais insidiosa, ao lado das reconstruções históricas mais refletidas e mais duradouras, estereótipos tanto mais persistentes pois apareciam aparelhados com todos os emblemas da legitimidade ‘científica’ ou acadêmica, ao mesmo tempo em que confortavam as falsas evidências do senso comum” (M’BOKOLO, 2009, pág. 49).

A ciência que deveria estar a serviço da busca de uma “verdade” por meios teórico-metodológicos, ou seja, rigor objetivo em detrimento dos pré-conceitos e preconceitos, acabou por legitimar visões de mundos racistas. Destituiu os africanos de suas várias identidades e de sua autonomia social e histórica. Tudo isso serviu a um propósito político e ideológico dos invasores europeus.

A colonização, embora tenha ocorrido a longo prazo, diferindo de método e tempo pela região de contato, causou um abalo na auto inscrição africana. Muitas vezes, os colonizadores obtiveram contribuições desses povos nativos no processo de dominação. Portanto, a identidade passou por um processo de mediação com o “outro” invasor.

Um dos fenômenos dessa colonização europeia em África foi o comércio de escravos no sistema-mundo, deslocado do Mar Mediterrâneo para o Oceano Atlântico. A pré-existência da escravidão no continente africano à chegada dos povos ibéricos não pode ser comparada com o período de escravidão entre os séculos XVI e XIX entre África e América. Potências da Europa Ocidental foram os maiores comerciantes de seres humanos do mundo na Era Moderna, seguido pelos traficantes brasileiros.

Se a chegada dos árabes no norte-africano aumentou a escala de escravização de seus povos, o comércio transatlântico transladou milhões de africanos. América Portuguesa, Hispano-América e até mesmo o Japão Feudal se beneficiaram da mão-de-obra escrava. Logo, se os africanos eram negros, pertencentes a uma mesma “raça”, a escravidão provocou uma “diáspora”.

O termo tenta fazer uma analogia a condição dos judeus. A diferença é que os judeus, sempre estiveram em condição de imigração constante, uma “terra prometida”, uma origem ancestral comum e um livro sagrado para mobilizar a solidariedade a nível supranacional. O holocausto judeu é outro fator a se considerar no período atual. A Segunda Guerra Mundial criou o Estado de Israel como reparação histórica, bem diferente da situação do Estado da Libéria, reduto de ex-escravos estadunidenses em África.

Por fim, analisamos o processo de independência dos Estados-Nações africanos. Devemos entender que esse processo ocorreu tanto em conflitos armados, quanto diplomáticos e políticos. A negociação da Independência não elimina as divergências ou exacerbações de facções políticas. Os processos de Gana e de Angola são bem diversos se analisados de perto, mas os conflitos estão em ambos.

Cientistas, pensadores e literatos africanos se engajaram politicamente nos processos de Independência e de (re)construção de suas Nações. Dentre eles, filósofos, antropólogos e historiadores evocavam a “tradição” africana como base para uma “filosofia africana” (MUDIMBE, 2013). A História tinha um papel importante por legitimar a narrativa histórica construída pelas novas elites nativas.

Essa primeira geração ficou conhecida entre historiadores contemporâneos como “Geração Militante”, pois defendiam posições nacionalistas e raciais:

o primeiro grande historiador africano desta geração dos anos 1950 e 1960 foi o senegalês Cheikh Anta Diop, criador do Afro-centrismo. Em livros conhecidos como Nações negras e cultura (1955) e Anterioridade das civilizações africanas (1967); traduzido para o inglês como As origens africanas da civilização, (1973), Diop retomou, de forma transformada, uma tese do século XIX, de que o Egito fôra uma civilização negróide; tida como origem cultural do mundo helenístico (por conseqüência, greco-romano) e das sociedades africanas [sic] (BARBOSA, 2008, pág. 51).

Os nacionalistas e o marxistas discursaram em defesa da africanidade e de suas respectivas Nações, porém:

(1) as narrativas marxistas e nacionalistas sobre o eu africano tem sido superficiais; (2) como consequência desta superficialidade, suas noções de autogoverno e de autonomia têm pouca base filosófica; e (3) seu privilegiamento da vitimização, em detrimento do sujeito, em última instância resulta de uma compreensão da história como feitiçaria (MBEMBE, 2001, pág. 177).

Mesmo sem consenso acerca dos limites da interferência da escravidão, colonização e os regimes de apartheid na auto inscrição africana, seria improfícuo descartar sua influência no processo. Muito dessa construção identitária africana esteve marcada pelas lutas intestinas, discursos racialistas, guerras civis, intervenção político-econômica das grandes potências, e atualmente o terrorismo islâmico etc.

A auto inscrição em África, tanto sofre interferência das representações construídas sobre o continente, bem como pelas condições socioeconômicas e diversidades culturais imanentes. A formação de identidade não depende de uma coerência histórica, nem unidade étnico-racial, mas todos esses elementos estão em sua constituição. O debate está posto, mas, talvez, sejam os atuais africanistas e historiadores africanos que estejam chegando mais perto de uma resposta.

Referências bibliográficas

APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. In: ________A invenção da África. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

BARBOSA, Muryatan Santana. Eurocentrismo, História e História da África. In: Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, nº 1, jun.2008, p. 46-63.

Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/sankofa/article/view/88723/91620> acesso dia: 30 jan. 2020, às 18:43 horas.

DUSSEL, Enrique. Europa, Modernidade e Eurocentrismo. Edgardo Lander (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, set. 2005.

KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Vol. I. 4 ed. Lisboa: Edições Europa-América, 1999.

M´BOKOLO, Elikia. II. Debates e Combates. In: África negra. História e civilizações – Tomo I (até o século XVIII). Salvador/São Paulo: EDUFBA/Casa das Áfricas, 2009.

MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, nº 1, 2001, p. 171-209.

MUDIMBE, V. Y. A invenção de África. Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Lisboa: Edições Pedago, 2013.

Caliel Alves
Enviado por Caliel Alves em 10/08/2020
Código do texto: T7031375
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