O dia-a-dia da minha tia (homenagem)

Seu "doce lar" começou naquele casebre de madeira tosca, encimado por telhas coloniais e sobre um terreno baixo e úmido.

O já velho madeirame não resistiu por muito tempo às investidas da umidade e a casa começou a afundar e declinar. A esta altura a tia já tinha algumas lavagens de roupas (incluam-se quaragens, secagens, passagens, etc.), para equilibrar o orçamento doméstico do marido carpinteiro e educação dos filhos.

Mas quando as tábuas começaram a apodrecer, a tia aumentou assustadoramente o número de lavagens de roupas. Era seus planos ir paulatinamente substituindo as tábuas por tijolos para fazer a casa toda em alvenaria, iniciando pela frente até chegar aos fundos.

Eu, pessoalmente, confesso que perdi o número de lavagens de roupas da tia. Diria oito devido ao número de bocas (filhos), mas os próprios filhos, hoje crescidos, dizem que foram doze. E a tia que diz? A tia desaprendeu a contar. Somente sabia lavar, e passar, e dobrar... Lavava hoje as de hoje. Passava hoje as de ontem. Entregava hoje as de anteontem. Assim, a tia era a única mulher que recebia dias trouxas na visita da cegonha: um trouxa contendo um filho, outra com as devidas roupas para a mãe tirar o sustento do filho.

Coitada da tia. Magricela em cima do tanque de lavar (e do ferro de passar).

Coitada da Senhora Dio. Todos os dias com uma "senhora" bacia na cabeça a caminho do riacho.

Também sua casa nunca ficou pronta. Sua saúde só deu para levar a casa até a metade. Já vi casas grandes e pequenas, casarões e casebres, mas casa-metade somente a da tia. Vista de frente até que parecia casa mas de fundo, não. Aliás, não tinha nem parede de fundos para tapar.

Mesmo assim tia tinha a preocupação de fechar a porta da frente à noite, na hora de dormir.

Vinte anos depois vamos encontrar a desgastada tia morando na mesmíssima casa-metade, sem que se tenha sido acrescentado um único tijolo...

De uma coisa estou certo: sempre acreditei no dia-a-dia da minha tia.

Edmilson N Soares
Enviado por Edmilson N Soares em 19/11/2020
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