A trama paradoxal do desejo em termos de tudo ou nada

Introdução

Numa análise, certo impasse se apresenta quando o paciente enfrenta o paradoxo do tudo ou nada. Nesse caso, certos elementos psíquicos isolados uns em relação aos outros – anteriormente interpretados e supostamente trabalhados – reapresentam-se como uma trama paradoxal de seu desejo. Essa trama – de origem ancestral – faz-se presente em seu sistema das representações.

Para estudá-la, parte-se de contribuições de psicanalistas contemporâneos acerca dos paradoxos e do discurso perverso que o perpetua. Questões narcísicas dos interlocutores envolvidos nesse discurso são examinadas. A seguir, a autora propõe algumas hipóteses de trabalho que subsidiam a investigação de um caso clínico.

A presente reflexão acerca da trama paradoxal do desejo – em termos de tudo ou nada – parte do pensamento de psicanalistas que estudam o paradoxo.

Racamier (1980) define o paradoxo como uma formação psíquica, que liga duas proposições contraditórias de maneira indissociável. Forma-se quando a percepção da criança é desqualificada, cabendo-lhe crer em seus sentidos ou no objeto e escolher entre a confiança em seu eu e o amor do objeto. Essa agressão ao seu eu suscita, na vítima, um ódio intenso. Em 1991, o fascínio do paradoxo ata o pensamento numa rede paralisante. O paradoxo fechado insolúvel sinaliza um impasse, que se impõe à psique.

Roussilon (2012) pontua que quanto maior a intensidade, a frequência e o valor do objeto que transmite o paradoxo, mais seus efeitos são devastadores no narcisismo de seu receptor. Em 2013, o paradoxo da culpa do inocente decorre de certas situações traumáticas precoces, que se fixam em seu narcisismo e originam um núcleo de culpa – ligado à confusão eu-outro.

E, ainda, Anzieu (1975) aponta que, na comunicação paradoxal, a desqualificação do receptor se opõe ao reconhecimento narcísico de seu eu. Nessa desqualificação, o paradoxo decorre de seu julgamento, que nega sua percepção de suas sensações, pensamentos e desejos. A desqualificação significa que seu receptor não é nada, que, assim, nega sua própria existência. Portanto, há uma conexão entre a pulsão do emissor – que visa à morte psíquica do destinatário – e sua pulsão de autodestruição. Complementando, Francese (2003) afirma que o discurso perverso paralisa o objeto ‒ mediante o espanto, o horror e o fascínio ‒ bloqueando sua capacidade de pensar.

E, ainda, de acordo com Eiguer (2003), a perversão narcísica – ligada ao paradoxo – ocorre em um vínculo marcado pela inflação narcísica do agressor. A diferenciação entre agressor e vítima é subvertida para acentuar a dominação: sua força, riqueza, posição hierárquica e seu pertencimento ao sexo masculino. Ele busca utilizar os recursos do outro: suas competências, sua vitalidade, seu entusiasmo ‒ dada sua inveja dele. O exercício do poder produz ‒ na vítima ‒ perplexidade, paralisia, desvalorização, invasão pela culpa em detrimento de seu narcisismo. Nessa esteira conceitual, Rosenfeld (1987) aponta que o predomínio do narcisismo destrutivo sobre o narcisismo libidinal deve-se à destrutividade e à inveja diante da frustração e da dependência do objeto. Falta diferenciar o eu e o outro.

Esses conceitos iniciais ampliam a compreensão sobre o paradoxo: o contexto em que ele se forma, os componentes da relação que o promove, as características de seu emissor, bem como suas consequências psíquicas no receptor.

Transposto para o âmbito do cascatear das gerações da família, o paradoxo é transmitido por meio da identificação da criança com os traumas, as fantasias, os mitos e o discurso perverso das figuras parentais. Seu narcisismo é bastante impactado por essa trama investida por ódio, que gera intenso ódio, horror e culpa nessa criança. A fragilização narcísica do receptor do discurso perverso – filho ou cônjuge – associa-se à inflação narcísica e ao narcisismo destrutivo do perverso narcísico/emissor – figura parental ou cônjuge. Tanto seus genitores quanto ela foram destituídos de seu lócus de sujeitos da própria história, dada a imposição da herança familiar.

Tendo-se em vista que a onipotência do emissor/perverso narcísico visa negar seu desamparo, sua pequenez e sua dependência do objeto/receptor, esses aspectos de seu eu são projetados e controlados neste último. Além do mais, como sua relação com o receptor é sentida como fonte de dor, o perverso narcísico não estabelece relações objetais propriamente ditas. Então, ele usa o objeto como extensão de seu eu, adequado às suas necessidades ou ele o descarta, quando desnecessário.

O paradoxo do tudo ou nada e sua relação com o desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações

Para examinar a trama paradoxal do desejo sob a forma de tudo ou nada, de outro ângulo, propõem-se três hipóteses de trabalho: o desejo, o trauma do absoluto e o sistema das representações. Elas são aplicadas ao caso clínico, apresentado a seguir.

O desejo configura-se como uma faixa de representações e de afetos, que organiza o conjunto de forças psíquicas. A princípio, ele imprime movimentos psíquicos do sujeito em direção aos seus objetos de satisfação. Nessa medida, atua como fator de orientação desses movimentos, visando se realizar no mundo. Em contrapartida, os bloqueios na satisfação do desejo do adulto derivam de sua ancoragem ou fixação em certas representações e afetos, que limitam sua atualização no mundo. Parte do desejo do sujeito e do desejo de seus antecessores articula-se ao material psíquico, que atravessa sua família. Assim, vivências parentais e ancestrais marcam o desejo do sujeito. As representações e os afetos – ligados às suas vivências com as figuras primárias – constituem seu sistema representacional.

O sistema das representações consiste num aparato psíquico do sujeito, com a função de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. O sistema representacional da criança interliga-se a aquele de seus objetos primários e, assim, se encadeia ao seu desejo. Em sua vida adulta, seu desejo se realiza de modo mais ‘fluido’ ou se paralisa, com base no material psíquico herdado, por ela, de seus pais. Esses conteúdos foram transmitidos, a eles, por seus genitores/avôs do sujeito. Sob esse background, a potência representativa desse sistema é alterada sob a influência dos traumas. Dentre eles, enfoca-se o trauma do absoluto.

O trauma do absoluto designa um sofrimento psíquico intenso em pacientes, oriundo de sua herança psíquica. Caracteriza-se por representações sobre-investidas por ódio e horror: ser abandonado, desamparado, rejeitado, não-amado, nada, perdedor, devedor, invulnerável ao amor, sofredor eterno, para sempre, sem lugar no mundo, infinito, imutável, entre outras. O sobreinvestimento refere-se à intensa carga de ódio e horror, associados a elas. Essas representações e esses afetos - ódio e horror - são contrários à realização do desejo do sujeito. Em contrapartida, ser amado, ser competente, ser inteligente, ser autossustentado, ser reconhecido, ter valor, ter méritos próprios, entre outras - investidas por amor - constituem as representações e o afeto favoráveis a seu desejo.

Elementos desse trauma, os paradoxos lógicos se revelam quando o tudo vira nada, o ganho transforma-se em perda, o cheio fica vazio e a inclusão torna-se exclusão. Nesse caso, as primeiras representações de cada par dão lugar às representações opostas – o nada, a perda, o vazio e a exclusão – sendo vividas como absolutos pelo sujeito.

Além disso, a hipersensibilidade do sistema representacional do sujeito às condições iniciais das relações objetais contribui para seus possíveis efeitos destrutivos. Nessas relações, o paradoxo do tudo ou nada evidencia a fixação desse sistema sob o intenso sofrimento do trauma do absoluto. A condensação do ódio nesse paradoxo retrata um modo de relação com seu genitor, introjetado como modo de relação consigo mesmo. Quanto a isso, Freud (1915) propõe que o ódio é mais antigo que o amor na relação de objeto: deve-se à recusa do eu narcísico ao mundo exterior.

A clínica da trama paradoxal do desejo quanto ao tudo ou nada

Para se discutir a trama do desejo – no plano do tudo ou nada – presente no sistema das representações, apresenta-se a historia clínica de uma paciente.

Destaca-se um recorte de sessões em ordem cronológica, sendo uma sessão diferenciada da outra por meio de parágrafos. O discurso da paciente encontra-se destacado por meio de aspas simples. O uso do travessão visa tornar o relato mais claro.

Em sua infância, seu pai era autoritário, agressivo e dominador. Sua mãe era submissa a ele em sua presença, mas criticava-o, às escondidas, posteriormente. Nas desavenças entre a paciente e seu pai, sua mãe confirmava o suposto poder paterno. Ela se sentia humilhada e desvalorizada diante da fala materna: ‘desse jeito, seu pai vai morrer’. Ela representou essa fala materna como: com seu jeito de ser, você vai matar seu pai e, mais, seu jeito de ser é destrutivo, maléfico e mortal para o outro. Assim, seu desejo, a diferenciação de seu eu de seus pais e sua revolta contra eles seriam mortíferos para seu pai. Com isso, sentia-se louca e não dava crédito às suas percepções, emoções e pensamentos. Nesse contexto, as perdas e os fracassos afetivo-financeiros de seu pai e de seu irmão foram encobertos por ela e por sua mãe – psicológica e financeiramente.

Quando adulta, sua mudança para uma nova cidade – devido ao trabalho do marido – implicou a perda de vínculos de amizade e profissionais bastante significativos, na sua cidade de origem. Essa mudança provocou, ainda, sua separação do marido, por um mês, dadas as brigas do casal. Então, ‘fiquei louca, louca, sem bases, sem apoio’. E, mais, seus pais vieram morar com ela, reativando seus conflitos antigos com eles. A seguir, as perdas precoces e abruptas de parentes amados incidiram no mesmo ponto traumático: matar seu pai.

Na nova cidade, a idealização de certa profissional de humanas implicou novas decepções e perdas, mas uma nova amiga a resgatou para seu consultório. O fechamento posterior do consultório implicou novas perdas afetivas, profissionais e financeiras. Além disso, seu trabalho atual – numa micro-empresa de saúde – comporta um esquema perverso quanto a dinheiro. Ela recebe muito pouco dos convênios e um mês depois de atender os pacientes, pagando considerável porcentagem de seu ganho para a dona da micro-empresa. Contudo, a paciente privilegia o lado frágil e humano daquela, sendo compreensiva para com ela. A dona chama a paciente de amiga-irmã e a convida para ir a sua casa. Por sua vez, a paciente é bastante ética, procurando ‘fazer tudo certo’ e ‘não fofocar’. Apesar de sofrer muito, há muito tempo, com esse esquema de trabalho e com as relações que ali vigoram, não consegue sair dele.

A seguir, as sessões relativas ao paradoxo do tudo ou nada são apresentadas.

‘Tá muito sofrido lá no trabalho. Porém, sair dele ‘me faria perder todos os pacientes e ter que voltar para minha casa’. Quando a analista aponta seu paradoxo de tudo ou nada, ela diz: ‘ficar lá é tudo’. Ao ser questionada sobre o ‘tudo’, ela repete: ‘tudo’. Solicitada a explicá-lo, ela associa: ‘meu pai podia tudo, sabia tudo’. Devidamente analisados, o tudo remete a nada, pois se liga ao suposto e ilusório poder paterno. Por outro, o nada se articula a tudo, pois o nada envolve seu trabalho e seu dinheiro, fundamentais/tudo para encobrir a falência paterna. Ela diz: ‘é uma agonia, eu patino, patino e não saio disso’ e ‘eu não consigo’. Este se associa a ‘avançar’, pois ela regride em seu desejo de sair do trabalho. A seguir, avançar se associa a avançar contra seu pai. Isso relembra: ‘desse jeito, seu pai vai morrer’. Logo, seu desejo de avançar foi marcado por perdas de sua clareza de percepção quanto ao poder paterno e de seu valor. A partir disso, paralisa-se no trabalho, sente um vazio, come comidas calóricas e fica empanturrada. Isso remete ao paradoxo de cheio – de comida – e vazio – de satisfação, prazer e conforto. Ao cheio e ao vazio, ela associa luz e escuridão. A luz permite-lhe ver; porém, está presa na escuridão. Ele se associa às suas capacidades e valor – luz – que são inconscientes – na escuridão.

‘Sofro ao ficar no trabalho’. A analista a lembra que sofre ao ficar em casa. Contudo, quer se manter nele, pois, assim, evitaria novas perdas. Referindo-se à secretária ‘difícil’, ela diz: ‘segunda, foi um dia daqueles, mas lidei bem’ e ‘terça, eu tava morta em casa’. Todavia, ‘é uma delícia estar em casa no sofazinho, com cobertorzinho, vendo um filminho’. Nesse contexto, sente-se um nada, fracassada e desvitalizada. Deseja ser amada, valorizada e reconhecida por seu pai e por seu diferencial no trabalho. Contudo, confunde a perda do objeto bom com a perda do objeto mau. Sair do trabalho é vivido como uma perda paradoxal do objeto bom-mau.

Diminuiu os dias de trabalho, mas o vive como uma ‘perda sem fim’. Quebrou o esquema perverso de trabalho, ‘com tristeza e luto’. A analista destaca seu ganho ao concentrar seu trabalho em menor número de dias. Rompeu, assim, suas perdas. Ela diz: ‘estou feliz’ e ‘meu ódio se dirige contra objetos, que tentam impor seu desejo ao meu’. Porém, diz: ‘não tenho valor’ e ‘não tenho jeito’. A seguir, certo ato alimentar autodestrutivo associa-se à ideia de que ela e sua mãe repassaram o mal aos filhos. Então, sente-se perdida quanto a administrar seu ódio e tem medo de perder o controle sobre ele. ‘Estou mais reservada no trabalho, mas me sinto falsa’. Ser falsa se opõe a ser espontânea e ser transparente, mas ser verdadeira é ser frágil frente ao outro perverso. Em meio a isso, precisa assumir seu valor.

Está anestesiada e triste frente à provável morte de um amigo. Culpa-se por ter se afastado dele. Duvida se vale lutar por seu desejo frente à vulnerabilidade e à morte. Fala de um novo paciente, mas volta a falar do amigo. Sua solidariedade com ele encobre seu recuo quanto a crescer. Cada tentativa de seu eu avançar era contraposta pela ameaça de morte de seu pai. Fala da morte do cachorro, mas ‘um novo cachorro deu um up em minha vida’. Esse up significa renovar o cuidado com a vida, mesmo sendo vulnerável e mortal. A morte de pessoas amadas incide no ponto traumático: matar seu pai. Porém, ‘isso está cicatrizando, como minha rejeição pela secretária difícil’. Avança na análise. Precisa pensar o que faz com o tempo de vida.

‘Estou muito triste – repete várias vezes – com o estado do meu amigo, mas sem paralisia’. Reza, pede para as amigas rezarem, ajuda a família dele. Há certa elaboração do ponto traumático quanto à morte. Seu pai e sua mãe parecem fazer um culto à morte e ao sofrimento, pois ‘se meu pai estava mal, todos deviam ficar mal; isso era amor, afundar no abismo junto’. ‘No trabalho, tenho mais energia, vivo um up, antes me sentia sugada, estou inteira e mais forte com os pacientes, se eles faltam não é por causa das minhas falhas’. Faz planos para sair do trabalho: ‘vou lutar’. ‘Estou entusiasmada, tenho poder de transformação’. Num ato falho sobre mudança de poder, acrescenta: ‘do outro para mim’. Vivencia situações de morte, sem culpa. A analista diz: estamos avançando.

‘Minha antiga supervisora ligou e conversamos por uma hora. Foi um resgate, me senti viva, com energia. Retomei o cuidado com as flores e as plantas’. Assim, vínculos amorosos e bons fazem-na sentir-se viva, com energia. Todavia, ‘eu me sinto morta, sem energia no trabalho’. ‘A perda do meu pai me afundou’, ao ajudar a cobrir a falência dele. É guerreira para lutar pelo outro, mas sem energia para sair do esquema perverso. Dada a saída de pacientes, regride a pontos traumáticos – perda e rejeição. Porém, se auto-analisa e os elabora. Vivencia leve regressão, mas é analista de si mesma.

Fala sobre certo paciente. Diz para a analista: ‘você ficou quieta, não gostou do que falei? Faço coisas que os outros não gostam’. Relata três situações com pessoas que fazem o que não querem e sentem raiva. ‘Tenho raiva do meu marido e ódio do meu pai’. ‘Quando eu não fazia o que ele queria, não falava comigo, virava a cara; minha mãe era boazinha, mas não me protegeu, não me defendeu. Eles foram cruéis, eu era a errada. Estou menos dependente dos pacientes, antes me martirizava, me culpava quando eles paravam ou faltavam. Preciso buscar a minha felicidade, o meu prazer de viver’.

‘Meu marido continua sem falar comigo, eu sofro, mas não falo, não vou atrás’. Ela não quer ser fraca, dominada, submissa. A analista diz que é possível ser a primeira a retomar o diálogo, para se posicionar. ‘Estou mais segura com os pacientes, sem medo de falhar. Na adolescência, falei pro meu pai: você é um cavalo. Ele ficou seis meses sem falar comigo, eu pedia desculpas, ele não aceitava, minha mãe disse para eu pedir desculpa, pedi. Eu me senti muito, muito ruim’. Ela se sentiu muito ruim quando se posicionou e se posiciona. ‘Vim pra suprir’. Nessa frase, falta o sujeito – eu – e dois complementos: o que? – as necessidades – e de quem? – de meus pais. ‘Já fui muito mais autodestrutiva, ou eu me destruía ou destruía o outro’. Tem medo de se posicionar e destruir o outro. ‘Com meus filhos, não consigo mais impor a minha vontade, houve uma transformação. Com meu marido, tenho muito medo de perder, então me afasto’. ‘Meu pai era muito rígido’. Seu pai aparentemente era forte, mas hoje depende dela para ter onde morar. Supostamente, ela era a ruim, mas ela superou muitas vezes sua dor, para não abandoná-lo. Pode ser ela e pensar de modo diferente do outro, sem destruí-lo.

Fala do amigo no hospital, minimizando sua própria dor. Todavia, diz: ‘meu pai bateu no cachorrinho com a vassoura e disse que foi só com o plástico. Senti muito ódio e disse: cê tá ficando louco?’ Quando seu pai batia nela, sua dor era desconsiderada. ‘Tenho muito medo de ser como meu pai ou de ficar como ele: preso na perda, no fracasso, sem amigos. Minha mãe sempre foi guerreira, vencedora e muito querida: já fui como ela’. ‘Pra eu ter um pouquinho de amor, tinha que aceitar o que eles diziam. Meu pai não me ouvia, mesmo nas perdas do negócio’. Ela não podia sentir o que sentia, se anestesiou e teve muito medo de ficar louca. Seu sofrimento com seu pai a fixou no ódio. Hoje, isso se repete com o marido e no trabalho. ‘Acho que nunca vou sair disso. Eu me sinto rejeitada e quando meu marido diz pra ficar lá, minha dor é desconsiderada’. Precisa assumir o que sente e buscar o melhor para si. Diz: ‘Eu chego lá, sinto que tô perto’.

‘Dei uma guinada nessa semana’. Falei com meu marido. Liguei para a G. Como experiência, começo na clínica dela. É um recomeço, para atender pacientes dos meus convênios’. Não calcula se o valor que deixa de ser pago na clinica atual, cobre o valor a ser pago na nova clínica. Quanto a divulgar seu trabalho, fala em não e sim; aponta obstáculos diante de possíveis contatos. É guerreira e lutadora em nome do desejo, da necessidade do outro. ‘É a primeira vez que vou estar sozinha’, mas estava sozinha quando lutou pela família. Em ‘as coisas vão caminhando’, não há o sujeito, nem seu progresso é definido por ela. ‘Quero um lugar pra mim, é um desejo muito forte’. ‘Sinto muita angústia de patinar, patinar e não resolver’. Maximiza um possível erro frente à autoridade, desconsiderando suas capacidades e seus valores como um todo. Tem pavor de priorizar seu desejo e lesar o outro. Assim, permite-se ser explorada por ele.

Discussão

Visando examinar o trabalho analítico com a trama paradoxal do desejo no plano do tudo ou nada, certos pontos essenciais desse processo são dados a conhecer. Os itálicos se prestam a ressaltar suas representações e suas mudanças na análise.

Na primeira sessão, a possível ruptura do longo sofrimento é representada como perda total. Questionada sobre o tudo, ela o repete sem refletir sobre ele. Por fim, associa-o tudo aos supostos poder e saber paternos. Desse modo, ser tudo cabe a seu pai, ao passo que a ela resta ser nada. Na verdade, ser nada, ser fracassada e ser perdedora encobre o fato de seu pai ser fracassado e ser perdedor. Ser consciente disso remete a estar paralisada pelo paradoxo do tudo ou nada. A sobrecarga de ódio nele leva à regressão de seu desejo de dar fim a seu sofrimento. Seu paradoxo do cheio – de comida – e do vazio – de satisfação, prazer e conforto – subjaz a seu paradoxo do tudo ou nada. Ser louca e ser autodestrutiva defendem-na contra o medo de ser destruidora de seu pai. Quanto a isso, Anzieu (1975) considera que, para a pessoa desqualificada, a desqualificação significa que ela não é nada – com relação a qualquer coisa que a toque de perto.

Na sessão seguinte, seu paradoxo do tudo ou nada parece se subdividir, mas igualmente se ampliar: ela sofre tanto ao ficar no trabalho, quanto ao ficar em casa. Assim, ser sofredora a impediria de ser perdedora, mais uma vez. Outras representações do paradoxo aparecem: ser competente – com a secretária – mas estar morta por isso e ser delicioso estar em casa, associado a vários diminutivos. Deseja ser amada, ser valorizada e ser reconhecida por figuras de autoridade. Romper seu sofrimento envolve uma perda paradoxal do objeto bom-mau.

Na terceira sessão, a redução dos dias de trabalho é vivida como ‘perda sem fim’. A princípio, romper seu sofrimento implica estar triste e estar enlutada. A seguir, ser ganhadora supera ser perdedora, permitindo-lhe ser feliz. Redireciona seu ódio de si para os objetos autoritários. Porém, defende-se contra seu ódio em: ser sem valor e ser inadequada. Ser transmissora do mal para o filho aponta sua identificação com sua mãe. Estar perdida em seu ódio conjuga-se a seu medo de ser dominada por ele. Ser falsa se opõe a ser espontânea, mas ser verdadeira implica ser frágil em relação ao perverso. Nesse aspecto, Racamier (1989) afirma que quando a percepção da criança é desqualificada, deve crer em seus sentidos ou no objeto e escolher entre a confiança em seu eu e o amor do objeto. Essa agressão ao seu eu suscita, na vítima, um ódio intenso.

Na quarta, aparece estar anestesiada, junto com tristeza e culpa. Ser lutadora quanto a seu desejo confronta-se com ser vulnerável e ser mortal. Ser solidária encobre sua regressão, dado seu medo de ser mortífera quanto a seu pai: seu foco traumático. Seu up envolve ser cuidadora para com a vida, apesar de ser vulnerável e ser mortal. Está elaborando ser mortífera e ser rejeitada.

Na quinta, sua tristeza coexiste com ser pró-ativa. Elabora ser mortífera. Associa: ‘se meu pai estava mal, todos deviam ficar mal; isso era amor, afundar no abismo junto’. Estar energizada, estar inteira e ser forte, sem culpa, permitem superar ser sugada. Pode ser poderosa, ao ser transformadora: o poder passou do outro para si. Rosenfeld (1987) aponta que no narcisismo destrutivo não há a diferenciação eu-outro.

Na seguinte, ser resgatada, ser viva e ser energizada se associam aos vínculos amorosos e bons. Todavia, sente estar morta e sem energia em vínculos ruins. A perda repetida dos pais a deprimiu. Assim, experimenta ser guerreira quanto ao desejo do outro, mas ser desvitalizada para satisfazer seu desejo. Regride a ideias traumáticas com seu pai – ser perdedora e ser rejeitada – mas suplanta-os ao ser analista de si mesma.

Na sétima, tem medo de falar e fazer coisas que o outro não gosta. A seguir, assume o ódio ao seu pai. Devia ser submissa para não ser rejeitada por ele e ser desprotegida por sua mãe. Então, representa-os como cruéis, repensando ser a errada. Com isso, elabora sua forte culpa. Está menos dependente dos pacientes, sem culpa. Busca ser feliz e ter prazer de viver. Vale lembrar que Roussilon (2013) discute o paradoxo da culpa do inocente. Neste, as situações traumáticas precoces são enquistadas em seu narcisismo, originando um núcleo de culpa que remete à confusão eu-outro.

Na próxima, tem medo de ser fraca, ser dominada e ser submissa frente ao marido. Não consegue se posicionar frente a ele. Porém, está mais segura com os pacientes, sem medo de falhar. Ao falar para o pai ‘você é um cavalo’, ela vivenciou: ser indigna de ser perdoada, ser rejeitada profundamente, ser a errada e ser muito ruim –junto com enorme culpa. Na frase ‘vim pra suprir’, faltam seu eu e as necessidades de meus pais. Associa-os com ser autodestrutiva ou ser destrutiva do outro. Tem medo de se posicionar e destruí-lo. Passou a ser democrática com os filhos: transformação do poder paterno perverso. Tem muito medo de perder o marido. Passou de ser muito ruim para ser acolhedora com seus pais – quanto à moradia. Pode ser a si mesma, sem destruir o outro. No que se refere a isso, Anzieu (1975) aponta a conexão entre a pulsão inconsciente do emissor – que visa à morte do destinatário – e sua pulsão de autodestruição.

Na nona, sente muito ódio de seu pai. Tem muito medo de ser como ele: ser perdedora, fracassada, solitária. Sua identificação profunda com ele sobrepuja sua anterior identificação com sua mãe: ser guerreira, ser vencedora e ser amada. Precisou ser submissa para ser amada por ele minimamente. Cabia-lhe ser insensível, ser anestesiada e ser paralisada quanto à sua dor – dado seu pavor de ser louca. E, ainda, ser rejeitada e ser desconsiderada. Seu sofrimento com ele a fixou no ódio, repetindo-o com o marido e no trabalho. Sua identificação com as perdas paternas surge como sem fim. Nesse sentido, Racamier (1991) propõe que o fascínio mental do paradoxo ata o pensamento numa rede paralisante. O paradoxo fechado insolúvel sinaliza um impasse, que se impõe à psique.

Na décima sessão, suas mudanças envolvem: ser iniciante ao ser assumida quanto a seu desejo. Todavia, revela ser irrealista – com dinheiro – quanto à nova clínica. Pode ser guerreira e lutadora em nome do desejo do outro, mas sente estar sozinha ao ser lutadora em prol de seu desejo. Na frase ‘as coisas vão caminhando’, ela não aparece como sujeito, nem seu avanço/progresso é declarado – subentendido em caminhar. Seu forte desejo de ter seu lugar confronta-se com sua angústia de estar paralisada. Ser a errada – oitava sessão – a leva a maximizar um possível erro frente à autoridade, desconsiderando suas capacidades e seus valores reais e amplos. Entram em conflito uma mera possibilidade de erro e a amplitude de seus acertos reais e construídos por ela. Tem pavor de priorizar seu desejo e lesar o outro, podendo ser explorada por ele.

Ao longo dessas sessões, as representações e os afetos do trauma do absoluto se repetem – ser nada, ser fracassada, ser rejeitada e ser perdedora, numa perda sem fim – sendo sobre-investidas por ódio e horror. Ainda no plano dos afetos, aparecem: intensa culpa, agonia e pavor. Outras representações paradoxais desse trauma – estar morta, estando viva; existir, não existindo, ser desvitalizada e ser mortífera, ao estar viva – junto a seu pai são relevantes nessa trama. E, ainda, ela se refere à perda total e à perda paradoxal do objeto bom-mau (Almeida, 2003). Seus pontos traumáticos são: morte de seu pai, rejeição e perda. Retoma-se, nesse ponto, Anzieu (1975) quanto à questão da desqualificação implicar a negação da própria existência de sua vítima.

Sob tal contexto, o discurso de sua mãe – desse jeito, seu pai morre – parece comportar forte repressão dela contra seu próprio ódio ao marido, projetado na filha. A relação paradoxal da paciente com ambos favorece a fixação do ódio em seu sistema representacional – ‘eu patino, eu patino e não saio disso’. Porquanto, a configuração paradoxal de seu desejo – segundo os extremos do tudo ou nada – está impregnado por aspectos desestruturantes das figuras parentais: ‘ou eu me destruo ou destruo quem amo’. Nesse encadeamento, a repressão parental do ódio da paciente fez com que seu ódio fosse introjetado por ela, em grande medida, sob a forma de paradoxo. Para tanto, contribuiu a desqualificação de seu desejo que – nessa adulta – se configura como impasse paradoxal. Essa intrusão – dada sua identificação com o discurso perverso do agressor – favoreceu ser perversa consigo mesma e ser ética com os outros, de forma rígida.

Por identificação com o discurso materno, representa seu pai em termos paradoxais de ser forte e ser poderoso – em oposição a ser frágil e ser adoentado. Cabe-lhe, então, ser submissa e ser impotente na relação com ele. Sendo assim, subjacente ao seu medo de ser fraca, ela tem medo de ser a si e ser destruidora do outro. Ademais, sua dessubjetivação a fez ser indiferenciada de seus pais e ser sem valor. Esse quadro mental se alia à sua ideia de existir para suprir o desejo do outro. Configura-se, então, no sistema: ser existente, não existindo – como eu diferenciado do outro. Quanto a esses aspectos, de acordo com Eiguer (2003) a perversão narcísica ocorre em um vínculo marcado pela inflação narcísica do agressor. A diferenciação entre agressor e vítima é subvertida para acentuar sua dominação: sua força, sua posição hierárquica e seu pertencimento ao sexo masculino. Ele utiliza os recursos do outro: suas competências, sua vitalidade, seu entusiasmo ‒ dada sua inveja dele.

Em seu discurso, as frases incompletas – ‘vim pra suprir’ e ‘as coisas vão caminhando’ – ratificam a indiscriminação entre seu eu e do outro. Porquanto, ela não se refere a si como um eu agente, autodeterminado e autor de sua história, tampouco consciente de seu desejo, de seus fundamentos e de ações para realizá-lo no mundo.

Essas relações paradoxais se repetem com o marido e a dona da micro-empresa. Nesse caso, à paciente cumpre ser amiga-irmã, mas ser submissa à relação perversa com o trabalho e o dinheiro. Esse paradoxo inclui o fato de que essa micro-empresa – voltada para saúde psíquica dos pacientes – abrigue relações perversas para com seus profissionais. Relações perversas quanto a trabalho e dinheiro, igualmente, estavam presentes em sua relação familiar.

Considerações finais

A trama paradoxal do desejo no plano do tudo ou nada ilustra a destrutividade, que concerne à transmissão da vida psíquica em sua família. Denuncia a confusão dos limites do eu, sob a forma de indiferenciação eu-objeto. Por sua vez, a organização precária inicial do sistema representacional aciona seu fracasso representativo, em face do intenso ódio no trauma do absoluto – subjacente a aquele paradoxo. Esse processo propicia a compulsão à repetição desse paradoxo, no sujeito.

A história de vida da paciente e suas sessões parecem posicionar seu pai como um perverso narcísico. Quanto a isso, sua desvalorização das mulheres é relatada por ela. Porquanto, ele projetou e controlou sua pequenez, seu desamparo e sua dependência em sua esposa e em sua filha. Sua esposa confirmava seu pretenso poder de forma paradoxal, representando-o como poderoso-frágil-adoentado, de tal modo que seu desejo não podia ser contrariado por ninguém, de forma alguma. Nesse contexto mental, as reações da paciente às situações paradoxais incluem: incapacidade de pensar; agressividade dirigida, em especial, a si mesma; passividade diante de seu sofrimento; sensação de ser um nada.

Em sua infância, as representações de si junto aos objetos primários fixaram-se no sistema, dadas as representações paradoxais sobre o poder paterno – poderoso-frágil. Essas ideias paradoxais geraram, nela, a contradição entre suas percepções, representações e afetos, levando-a a uma impotência agonística. Sua agonia remete à sua grande angústia, ao seu tormento e à sua tortura mental. Contudo, a ambígua sustentação do poder paterno – pela figura materna – esconde sua falta de poder efetivo na realidade externa à família. Em síntese, a paradoxal perseguição e a idealização de seu pai remetem a seu poder ‘oco’: dominar as mulheres – que sustentam seu poder psíquica e financeiramente – sem respeitar a diferença de desejos entre eles.

Todavia, a tessitura paradoxal do desejo em termos de tudo ou nada no sistema determina a quase consciência da paciente acerca do suposto poder do pai poderoso-fraco. Sendo assim, suas perdas contínuas junto aos seus pais dificultam a perda de representações e afetos contrários ao seu desejo mais essencial – processo intrínseco e fundamental numa análise. Nessa medida, sua quase percepção e sua quase consciência sobre o falso poder paterno favorece sua quase existência – falta-lhe um eu próprio. Logo, a falta de saída do paradoxo bloqueia suas possibilidades de sair da situação perversa no trabalho. Essa pontual redução de seu eu a um sofrimento sem saída e sem fim/infinito associa-se aos extremos de seu desejo. Porquanto, ela se representava em termos de ser um nada – alçado a um grau máximo irrefutável – em oposição a seu pai ser tudo. Paradoxalmente, essas representações de ela – ser tudo e ser nada – são conteúdos afetivamente intensos no sistema. A desqualificação de seu desejo articulava-se às zonas traumáticas no sistema ligadas ao referido paradoxo. A despeito de esse paradoxo ter excedido os recursos do sistema de representá-lo a contento, a paciente apresenta sensibilidade e abertura para mudanças psíquicas, na análise.

Por fim, as propostas teóricas apresentadas podem complementar as lacunas no conhecimento psicanalítico sobre esses processos.

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 08/12/2020
Reeditado em 08/12/2020
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