Ousadia e realização do desejo no mundo

‘O sucesso sempre foi a criação da ousadia’

Voltaire

‘Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente.

Não ousar é perder-se definitivamente’

Kierkegaard

Seja qual for o seu sonho, comece. A ousadia traz em si

o gênio, o poder e a magia’

Goethe

I-Introdução

Este trabalho versa sobre a ousadia no universo psíquico, assentando-se essencialmente na psicanálise. Contudo, dada a complexidade do tema, cabe explorá-lo sob os vértices linguístico, biológico, psicológico e, por fim, psicanalítico.

Faz-se necessário destacar que a palavra ousadia tende a ser colocada em oposição a outra, que varia dependendo do domínio do conhecimento com o qual se está lidando. Sendo assim, encontra-se ousadia x prudência, ousadia x timidez e ousadia x medo.

Nessa introdução de cunho linguístico, primeiramente disserta-se a respeito da origem das palavras ousadia e prudência, pois esta, muitas vezes, é contraposta a ela. A seguir, abordam-se seus significados e a visão clássica acerca da prudência.

Em se buscando suas raízes etimológicas, ousadia, deriva do latim audere, com seu significado de atrever-se, empreender. Por sua vez, um de seus sinônimos, audácia advém do latim audacia e tem o sentido de coragem, atrevimento. Outro sinônimo de ousadia é arrojo, que significa lançamento, arremesso de um objeto para longe. Costumeiramente contraposta à ousadia, a prudência procede do latim prudentia, que significa previsão, sagacidade. Prudentia constitui uma redução de providentia, derivada de providere: olhar adiante, antecipar (Origem da palavra).

No tocante a seus significados, ousadia equivale a audácia, coragem, arrojo, atrevimento, imprudência, realizado sem reflexão, atrevimento injustificado; petulância. Por seu turno, a prudência é a característica que leva a evitar perigos ou consequências ruins e a característica que permite conseguir algo desejado, evitando ameaças à integridade, precaução, ponderação (Dicionário Online de Português).

Classicamente, a prudência é considerada uma virtude fundamental, sendo associada a sabedoria, introspecção e conhecimento. De modo geral, é a capacidade de avaliar as ações mais apropriadas num dado tempo e lugar. Atualmente, a prudência nomeia a relutância a correr riscos, uma virtude com respeito aos riscos desnecessários, mas quando excessiva (sobrecautela) pode tornar-se o vício da covardia.

Virtude e vício consistem em termos largamente utilizados nos domínios religiosos e filosóficos, distintos do foco psicanalítico que preside esta pesquisa. Contudo, outras áreas do conhecimento que se debruçam sobre ela são apresentadas.

II- A ousadia na biologia

Constituindo um fenômeno multifacetado, faz-se necessário abordar os vários aspectos da ousadia. Nesse sentido, expõem-se algumas ideias a respeito da ousadia do ponto de vista da biologia.

O continuum do comportamento que vai da timidez até a ousadia é familiar para todos nós, a partir das nossas interações pessoais. Alguns indivíduos parecem prosperar no risco e na novidade, enquanto outros se encolhem nas mesmas situações. Os psicólogos consideram o continuum timidez-ousadia como um eixo fundamental do comportamento humano, com complexas bases fisiológicas e hormonais. As diferenças genéticas e os estímulos ambientais interagem para produzir adaptações nos fenótipos das pessoas (Sloan, 2020).

III- A ousadia em psicologia

Ainda se falando das várias facetas da ousadia, esta é estudada sob a ótica da psicologia. Sendo assim, começa-se com seu significado de acordo com uma importante instituição da psicologia, que enfoca sua relação com algumas partes do cérebro. Estas informações complementam aquelas fornecidas anteriormente pela biologia.

Em seguida, alguns autores apresentam uma série de informações sobre ela. Complementando essas ideias, a ousadia é discutida com base no enquadramento da psicoterapia, acrescida de uma teoria psicológica que descreve seus possíveis fundamentos psicológicos. Na sequência, alguns componentes psíquicos que dificultam a ousadia são designados e, dentre eles, encontram-se: a impulsividade, a indecisão, a hesitação, a dúvida, a imobilidade e a submissão às expectativas dos outros. Posteriormente, alguns autores discutem sua ligação com a psicopatia e, por fim, expõe-se um enfoque bastante prático da ousadia.

De acordo com a Associação Americana de Psicologia, a ousadia é a tendência para aceitar riscos e uma dimensão do temperamento que existe tanto em humanos quanto em animais não humanos. As diferenças individuais na ousadia decorrem de diferenças na excitação de áreas do sistema límbico ligadas à avaliação de estímulos. Adultos ousados exibem maior ativação do núcleo accumbens e menor ativação da amígdala, ao olhar nas faces de estranhos do que adultos menos ousados.

A audácia implica uma vontade de fazer as coisas, apesar dos riscos. No contexto da sociabilidade, uma pessoa audaciosa pode aceitar o risco da vergonha e da rejeição em situações sociais ou públicas e, ainda, de confrontar as regras de etiqueta e da polidez. A audácia tem relação com a coragem, pois ela implica enfrentar o medo. A audácia se refere a certo valor pessoal que permite ganhar confiança, ao mobilizar os recursos internos para atingir objetivos e afrontar as adversidades. Ao ousar fazer algo não habitual, pode se progredir e ganhar prazer de viver (Senk, 2017).

Filliozat (2013) considera que a ousadia permite vencer a letargia e a inércia. Há certos riscos decisivos, que engajam a pessoa em sua integridade: assumir o risco de renunciar, de se enganar, de desagradar, de deixar de ser vítima, de dizer não, de mergulhar no desconhecido, para avançar em direção aos seus sonhos. Portanto, esses riscos permitem a construção de si, implicando ações absolutamente necessárias para poder dizer eu, ao se posicionar na família e na vida. Lidar com as falhas e as fraquezas desbloqueia as situações travadas, fazendo avançar seus projetos, de modo a se sentir plenamente responsável pela própria vida. Ao reconstruir suas próprias referências, atravessa barreiras. Quanto mais ousa atravessá-las, mais ganha confiança em si mesmo.

No contexto da psicoterapia, as três formas de coragem – bravura, ousadia e firmeza – existem no continuum das diferenças individuais e tem variadas intensidades. No caso da bravura, o medo é de dano físico e envolve a segurança física da pessoa. A ousadia envolve assumir riscos psicológicos, que ameaçam o senso de segurança pessoal e se refere a aceitar as vulnerabilidades psicológicas, que surgem na terapia. A ousadia do terapeuta envolve confrontar essas vulnerabilidades psicológicas com a disposição de explorar o desconhecido e o risco, sendo criativo e curioso, mesmo diante daquilo que o paciente e o terapeuta se sentem compelidos a evitar. Essa ousadia não é governada por impulso, mas por decisões pensadas a partir de muita reflexão. O terapeuta deve lidar com sua ousadia com sensibilidade bem afinada. A ousadia da mente garante a ele a liberdade íntima de genuinamente explorar suas próprias reações emocionais aos pacientes (Geller, 2014).

A seguir, uma teoria psicológica ajuda a pensar os fundamentos da ousadia.

Segundo Senk (2017), a teoria do apego de Bowlby se interessa pela ousadia, atitude que permite atingir objetivos e realizar sonhos. Algumas pessoas – demasiado ou pouco amadas, em seus primeiros anos – desenvolveram um apego inseguro, que as condena durante toda a vida a ter medo de se separar, ser abandonada e fracassar. Outras tiveram atenção e cuidados e experimentam um apego seguro, que as fortalece em sua vida no sentido de se levantar e assumir riscos. A ousadia é estimulada pela sábia mistura entre emoções e razão.

Reiterando essas últimas ideias, Taibbi (2018) considera que as pessoas ousadas assumem riscos, são decididas, compromissadas e estão no comando das próprias vidas. As pessoas ousadas ponderam, comandam e vão adiante, quando a decisão é tomada. Por outro lado, pessoas impulsivas podem parecer ousadas, mas sua aparente ousadia vem de elas serem regidas pela emoção. Geralmente, agem sem nenhum plano e sem a intervenção de seu cérebro racional.

Igualmente bloqueando a ousadia, a indecisão resulta de várias fontes:

pensar muito à frente - as decisões adequadas são equacionadas a não cometer erros e os erros são equacionadas à certeza de que nada negativo ocorra depois; nesse caso, a ansiedade produz os piores cenários, gerando a tentativa de controlar o futuro e os resultados, que não podem ser controlados

autocrítica - piora os piores cenários e gera hesitação, porque a autocrítica implica que os erros geram forte sofrimento mental, que intensifica a pressão de fazer tudo certo

tudo parece importante - a ansiedade perturba o senso de perspectiva e faz tudo parecer importante; assim sendo, é preciso saber priorizar mesmo nas pequenas decisões

não querer preocupar os outros - enorme barreira contra a decisão, que cria timidez reprimir-se por medo da reação dos outros.

Outros fatores dificultam o exercício da ousadia e a realização de desejos. No que diz respeito a isso, Lambert (2005) aponta que nós podemos ficar paralisados pela dúvida e pela imobilidade, em uma sociedade que tem medo do olhar do outro. E, mais, Gavilan (2006) pontua que quase todo mundo hoje em dia já sofreu ou sofre de uma forma de fobia social. São os indivíduos que temem agir sem controle, de maneira impulsiva e socialmente inaceitável e não satisfazer as expectativas dos outros.

Como é possível perceber, a ousadia tem sido abordada como uma característica que favorece a saúde mental e o sucesso, sendo altamente valorizada na atualidade. Contudo, a literatura cientifica americana desvela sua relação com a psicopatia, em alguns casos. Sob essa perspectiva:

A relevância da ousadia para a psicopatia tornou-se recentemente um ponto de grande controvérsia científica. Ainda que alguns autores declarem que a ousadia é um componente necessário – mas insuficiente – da psicopatia, outros afirmam que ela é ampla ou inteiramente irrelevante para a psicopatia. Ao contrário das alegações de alguns autores, a ousadia é percebida como sendo tão relevante para a psicopatia quanto a desinibição, por profissionais de saúde. Contudo, ambas as dimensões são percebidas como menos relevantes para a psicopatia do que a maldade (Berg, 2017).

Ainda quanto ao tema, outros autores propõem que a disposição para o destemor/ousadia possa conduzir ao sucesso – quando não acompanhada pela alta externalização de sensibilidade/desinibição. Assim, indivíduos altamente ousados e com baixa desinibição tendem a obter maior sucesso em ocupações que exigem liderança/coragem, porque suas tendências psicopáticas são manifestas principalmente em termos de eficiência social, resiliência afetiva e gosto por aventura (Patrick, 2020).

Num enfoque bastante prático da ousadia, algumas sugestões são propostas: seja você mesmo, tenha empatia e não espere que o mundo garanta as oportunidades, mas utilize-as de modo inteligente, avaliando cada etapa em busca do sucesso. Além disso, reconheça seu potencial, pense através de perspectivas diferentes, saia de sua zona de conforto, identifique os riscos que pode assumir, responsabilize-se por suas ações (Marques, 2019).

IV- A ousadia em psicanálise

Consoante o foco central dessa investigação, a ousadia é abordada com base no pensamento de alguns psicanalistas, inclusive a partir de determinadas hipóteses investigativas da autora.

De acordo com Ricaud-François (2017), estamos divididos entre duas forças antagonistas: Eros, a pulsão de vida incita a avançar, construir, agir e Thanatos, a pulsão mortífera que nos torna inertes e nos impede de abandonar o conforto relativo – mas seguro – de certas situações. Quando sentimos que devemos mudar, um combate interior é travado. Todavia, esse combate promove vitória, porque nossas dúvidas e nossos desconfortos nos levam a avançar. Se não se avança e se abandona um projeto íntimo, há o imenso risco de depressão. Desse modo, é preciso contatar o desejo de viver para avançar. Para tanto, a ousadia demanda organização, coragem e paciência.

E, ainda, é preciso descobrir dentro de si a audácia de ser psicanalista. Este deveria deixar sua mente entrar em sintonia com a dos pacientes, constituindo uma prova de seu envolvimento, num momento angustiante da sessão. É mais fácil fazê-lo se houve ocasiões semelhantes prévias, nas quais ele conseguiu trabalhar com essas situações. Com um grau apropriado de confiança em sua estrutura básica de personalidade, ele pode descobrir a audácia de fazê-lo. Descobre-se a audácia necessária para aceitar a imprevisibilidade da psicanálise, quando ousamos entrar em mundos que parecem loucos. Essa audácia é possível quando se aceita as limitações da psicanálise e as próprias. Qualquer que seja o estágio de nosso desenvolvimento profissional, temos de admitir nosso sucesso, mas também nossas dificuldades e falhas – a fim de sermos capazes de aprender com elas (Quinodoz, 2006).

Na sequência, a autora propõe sua própria concepção sobre a ousadia em relação ao desejo e ao sistema das representações – hipóteses de trabalho advindas de sua clínica.

O desejo apresenta-se como um conjunto de representações e de afetos, que rege as forças psíquicas do sujeito. Em princípio, ele promove movimentos psíquicos em direção aos seus objetos de satisfação, visando se realizar no mundo. Um processo oposto ocorre quando as inibições na satisfação do desejo do adulto impedem sua concretização no mundo. Tanto a realização quanto a inibição do desejo do sujeito – e de seus antecessores – têm como fons et origo o material psíquico que atravessa sua família. Assim, vivências familiares mais saudáveis ou mais patológicas marcam o desejo do sujeito. Nesse contexto, seu sistema representacional é formado.

O sistema das representações do sujeito constitui um dispositivo psíquico capaz de representar seus impulsos, relações de objeto e estados mentais. Sua função de representar suas diversas vivências psíquicas se desenvolve a partir dos sistemas representacionais de seus objetos primários e, assim, se submete ao seu desejo. Esses conteúdos psíquicos introjetados pela criança derivam daqueles de seus pais e antepassados. Seus elementos fundamentais são as representações e os afetos do desejo que, num movimento saudável, dirige-se ao mundo das relações humanas. Esses processos tem relação direta com a rede das gerações da família.

Ao se considerar a ousadia no contexto do desejo do sujeito e de sua família, ela constitui a expressão do fluxo do desejo em relação ao mundo. Esse fluxo do desejo significa que ele não foi inibido por traumas e conflitos graves, em meio à transmissão da vida psíquica da família. Todavia, esse herdeiro foi atingido, em alguma medida, pelas questões de sua família. Em outras palavras, o sujeito pode deter aspectos neuróticos em sua formação, mas eles não impedem o movimento de seu desejo em direção ao mundo. Assim sendo, na ousadia, a pulsão de vida prevalece sobre a pulsão de morte, no sentido de o sujeito se ligar ao mundo, crescer, avançar e produzir bens simbólicos e materiais. Além disso, seu sistema das representações se constituiu segundo a primazia do amor sobre o ódio, denotando certa integração entre esses afetos. E, mais, o sujeito estabeleceu uma boa ligação com a realidade, revelando que o desligamento da realidade não foi erigido como defesa contra intenso sofrimento psíquico. Esse desligamento da realidade ocorre em menor grau nas neuroses e em maior grau nas psicoses. Vale adicionar que seu sistema das representações funciona segundo o princípio da realidade, à medida que o desejo do sujeito é integrado a noções de realidade. Dessa maneira, seu desejo é realizado de forma mais amadurecida – a posteriori, num tempo e espaço subsequentes, envolvendo objetos mais adequados – do que seria se predominasse o princípio do prazer, que busca a satisfação imediata dos impulsos e do desejo. Logo, um ego melhor elaborado se faz presente quando o princípio da realidade prevalece sobre o princípio do prazer, ligado ao id.

Diferenciando-se da impulsividade, a ousadia denota certa integração entre razão e emoção, prenunciando a tendência à saúde mental. No sujeito ousado, prevalece a identificação com figuras lutadoras, guerreiras e vencedoras, visto que sua identificação não se pautou em figuras perdedoras, sofredoras e desamparadas na vida. Porém, ele pode ser sensível, ter empatia e ajudar aqueles mais desfavorecidos na vida. Nesse sujeito, a propensão às parcerias com os outros favorece realizar seus projetos em conjunção com aqueles desses objetos. Junto com isso, no geral, as vivências mentais de ganho prevaleceram sobre as de perda em sua herança familiar. E, mais, o desejo de sucesso, projetado nele por seus genitores, favorece suas possibilidades de sucesso e seu bom posicionamento no mundo.

No que concerne a seu lugar no mundo, este tende a ser bastante diferenciado daquele das pessoas que se representam como: ‘sem lugar no mundo’. Quanto a isso, certa paciente que se sentia bastante rejeitada pela mãe, dizia: ‘se eu não tiver um lugar ao lado da minha mãe, não tenho nenhum lugar no mundo’. Num momento de muita dor, outra paciente disse: ‘eu não pertenço a esse mundo, eu não sou desse mundo’. Esse tipo de representação investida por ódio denuncia profundos conflitos de natureza familiar, que atormenta seus herdeiros.

No sujeito ousado, seu sistema das representações foi constituído em meio às figuras de inspiração bem-sucedidas, mas não se encontra fixado a elas. Melhor dizendo, essas figuras favorecem seu movimento em direção à vida, ao passo que esse movimento é bloqueado quando da fixação em figuras idealizadas. Essa fixação é notória na transmissão familiar patológica, na qual o filho é bastante desvalorizado por pais autoritários, severos e cruéis, de modo que o sistema cria objetos idealizados. Nestes, ele projeta as representações de seu valor e seu amor, a ponto de ele desconsiderar seus talentos e capacidades, sequestrando de si a pujança do desejo para empreender. Diferenciando-se disso, o sujeito ousado não ficou fixado tampouco paralisado por ideais parentais inalcançáveis. Em contraponto a isso, os ideais inatingíveis são estabelecidos à medida que os genitores exigem da criança, que ela realize tarefas para além de sua idade e capacidade, nunca ficam satisfeitos com ela, jamais a valorizam e, enfim, sempre a criticam. Nessa trama, ela fica paralisada diante de ideais impossíveis, que minam sua força de efetivação do desejo. Logo, ela fica bloqueada por indecisão, inércia e autocrítica severa, reproduzindo a neurose de seus cuidadores para com ela.

Na constituição psíquica do sujeito ousado tende a predominar representações e frases como: ‘vai, você pode, você consegue’; ‘meu campeão’; ‘você vai longe’ e ‘vamos arrebentar de vender’. Conquanto arrebentar suscite uma indagação quanto a possíveis elementos destrutivos subjacentes a ele, a criança é colocada numa posição de poder lutar por algo e obter sucesso. Com isso, sua autoconfiança é fortalecida, de forma que ela confia no seu sucesso e tende a minimizar seu medo de fracassar. Além disso, o sujeito ousado tende a ser independente da crítica alheia e a não ter medo do olhar invejoso do outro. Quase sempre, ele é movido por um impulso vital no tocante a assumir desafios, abrir caminhos, ampliar perspectivas e superar dificuldades. Nesse movimento, a ousadia pode se apresentar, inclusive, como a relutância em aceitar as restrições impostas por uma autoridade, que se caracteriza pelas ordens que emite, em detrimento do carinho, da acolhida e dos serviços prestados, por ela, aos outros.

Faz-se necessário, ainda, apontar que o sujeito ousado não precisa se haver com paradoxos advindos de uma teia familiar patológica. Fruto dessa teia, o paradoxo é constituído por representações antagônicas investidas por grande carga de ódio, que geram profunda contradição mental, produzem intenso sofrimento psíquico e paralisam a capacidade representativa do sistema. O paradoxo está presente no sujeito belo, a partir de sua herança genética, mas representado como feio, desengonçado e esquisito, dada a herança psíquica de sua família. Ele é encontrado na filha bastante inteligente e bem-sucedida na escola, mas que, desde sempre, foi representada como burra, débil mental e doente mental por seu pai. Outra criança avassalada pelo paradoxo, apesar de satisfeita em termos de alimentação, era superalimentada com base na fome de sua mãe e, ainda, era superagasalhada e passava calor, pois sua mãe sentia frio.

A ousadia inclui a tendência a se encarar a realidade sob um ângulo otimista. Desse modo, por vezes, mesmo diante de uma grande crise mundial, o sujeito ousado tende a ter recursos tanto psíquicos quanto financeiros, para enfrentá-la com vitalidade e obter o que ele deseja. O sujeito ousado carrega a propensão de ter uma relação relativamente clara com o tempo, estabelecendo metas e objetivos a serem alcançados mês a mês ou em dez anos, colocando as suas energias no sentido de realizá-los. Porém, sua relação com esse tempo cronológico e consciente pode implicar exigir de si a realização dessas metas e objetivos, quase como um robô. Por vezes, ele desconsidera o tempo de seu corpo ainda sonolento, o tempo do relaxamento necessário para ele ser mais produtivo, o tempo de sua curiosidade quanto ao que é postado nas redes sociais. Em meio a isso, ele pode experimentar rompantes de raiva frente às frustrações em seu trabalho, direcionando-os à esposa.

Esse tratamento do tempo difere bastante de outra pessoa que, por questões familiares de longínqua data, se encontra avassalada pelo tempo do inconsciente. Este pode incluir a negação da cena primária relativa a sua concepção por seus pais, junto com sua fixação psíquica no tempo do para sempre em termos de sofrimento psíquico. Há, ainda, o tempo infinito da maldição familiar, sob o qual o sujeito estaria proibido de satisfazer seu desejo na realidade. Igualmente, num país submetido a colonizadores autoritários, severos e sádicos, alguns cidadãos podem crer que seu sofrimento vai perdurar por séculos. Por fim, quaisquer desses registros inconscientes do tempo ultrapassam o tempo de vida real das pessoas e se referem às concepções distorcidas acerca da duração de seu sofrimento (Almeida, 2003).

Focando-se no sujeito ousado, seu autoconhecimento tende a apresentar falhas. Por exemplo, numa sessão, certo paciente disse que era sonhador, porém ele primava por ser lutador, guerreiro, prático, determinado e focado na realização de seus sonhos. Noutra ocasião, ele disse que não tinha feito nada, mas três meses antes da páscoa já estava produzindo uma série de produtos para vender nessa data. Noutros momentos, disse que seu raciocínio com relação às vendas e dinheiro era simples, mas era bastante complexo. Com relação ao seu sistema representacional, ser lutador, ser guerreiro, ser vencedor, ser sensível, ser empático, ser solidário, ser parceiro, ser bem-sucedido – são investidas por amor. Em termos de comparação, o sujeito oriundo de uma família patológica demanda muito mais tempo de análise até esse tipo de representação e de afeto ser integrado por ele.

Ainda que se esteja apontando vários aspectos positivos de crescimento, de expansão do eu e de aprimoramento de seus talentos no mundo, reitera-se que o sujeito ousado também se depara com bloqueios neuróticos. Por exemplo, pode fazer parcerias que dificultam seu crescimento de forma mais ampla. Portanto, sua ‘tendência’, ‘possibilidade’ e ‘propensão’ a realizar seus desejos precisam dialogar com seus entraves internos, frente aos limites dos outros e da realidade. Sendo assim, no mais das vezes, para ele ser ousado, de forma ampla, precisa fazer inúmeras mudanças nos padrões de pensamento construídos na sua trajetória de vida. Para tanto, ele deve trabalhar determinados limites imaginários contra seu crescimento. Nesse sentido, uma análise ajuda bastante a reorganizar melhor essas construções mentais.

Considerações finais

Tendo-se em vista que a ousadia é um fenômeno intrincado e plurifacetado, as informações de uma área do conhecimento vieram a complementar a outra.

Sob o enfoque biológico, a ousadia tem bases fisiológicas e hormonais bastante complexas. Cabe, ainda, pontuar que as diferenças genéticas e os estímulos ambientais influenciam-se entre si, gerando seres únicos em termos de ousadia, inclusive.

De acordo com o vértice psicológico, a APA aponta que as diferenças individuais quanto a ousadia tem ligação com diferentes áreas do sistema límbico. Bastante interessante é a predisposição da pessoa audaciosa a lidar com o risco da vergonha e da rejeição em situações sociais e públicas, sob as quais outras sucumbiriam. Neste caso, muitas pessoas deixam de realizar o que desejam por temerem a rejeição e a vergonha sociais. Aliás, a vergonha é um afeto bastante presente nas configurações familiares patológicas. Logo, a audácia está ligada à confiança em si, de modo a se progredir e ter prazer de viver. Nesse sentido, há riscos decisivos que o sujeito tem que assumir para ter um eu próprio. Para tanto, superou a necessidade de agradar o outro e o medo de errar, utilizado como aprendizagem para ele se superar. Esse sujeito ousado tende a uma independência saudável com relação ao outro, posicionando-se para além do medo de seu olhar, de sua crítica e de suas expectativas. Ainda assim, pode ter consideração e humanidade para com os mais desfavorecidos. Sua propensão a priorizar o que é mais importante e ter uma perspectiva ampla ao raciocinar sobre algo se aliam a sua capacidade de explorar o desconhecido e o risco. Sendo assim, a ousadia favorece a saúde mental e o sucesso, sendo bastante valorizada hoje em dia.

Em psicanálise, a ousadia, também, é valorizada, quanto a ir além de si mesmo. No tocante as contribuições da autora, a ousadia é considerada a manifestação do fluxo do desejo em direção ao mundo, ligado à tendência a saúde mental, à força da pulsão de vida e ao princípio da realidade. Ela está interligada a uma boa relação do sujeito com seu espaço no mundo, a sua boa relação com o tempo e a uma família com certa saúde psicológica. Em meio aos vários aspectos saudáveis ligados a ousadia, enquanto tendência, propensão, predisposição e possibilidade, há bloqueios no eu que precisam ser analisados.

A despeito desses limites, o sujeito ousado detém uma das melhores heranças familiares, que se pode observar na clínica psicanalítica.

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Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 16/01/2021
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