Família saudável e patológica: características, tipos e exemplos

Introdução

A família e seus vínculos

Para iniciar o presente estudo acerca da família saudável e patológica, cabe primeiramente examinar a questão do vínculo. Este termo remete à ligação afetiva de cunho relacional, marcada pela repetição dos vínculos determinados em um tempo-espaço anteriores. Em outras palavras, a experiência do sujeito com os primeiros objetos de amor é introjetada em sua mente e reproduzida nas suas relações posteriores.

O vínculo apresenta duas facetas, a saber: o vínculo interno – fruto de uma percepção subjetiva inconsciente construída em suas relações primárias – e o vínculo externo – manifesto pelo sujeito em seu discurso e em seu comportamento, gerado por um vínculo interno. Com relação a isso, Bohoslavsky (1998) descreve três tipos de vínculos na família: dependência – entre pais e filhos; cooperação e mutualidade – modelo entre o casal e entre irmãos e competição e rivalidade – entre o casal e entre irmãos. Fundamentalmente, o vínculo saudável se apresenta nas relações de objeto, nas quais sujeito e objeto são diferenciados entre si, dando espaço para relações de independência e interdependência. Em contrapartida, o vínculo patológico se revela nas alterações do vínculo, que produzem intenso sofrimento mental.

Curran (1983) aponta quinze traços das famílias saudáveis: muita comunicação e capacidade de ouvir os outros; incentivo ao diálogo; apoio mútuo entre os membros; confiança mútua entre eles; senso humor; valoriza-se o trabalho dos outros; responsabilidade compartilhada; ensino de certo e errado, ensino do respeito pelos outros; respeito às tradições da família; respeito à privacidade; equilíbrio nas interações entre os membros; núcleo espiritual compartilhado; usufrui-se de momentos de lazer juntos e busca de ajuda para os problemas da família.

Abordagem psicanalítica da família

Quando se estuda a complexidade das famílias em psicanálise, inúmeros autores são fundamentais, a saber: Kaës (2001a), Eiguer (1997), Faimberg (2001b), dentre outros. Contudo, dentro do escopo desse trabalho, conceitos de outros psicanalistas fazem-se necessários em virtude de sua aplicabilidade aos casos clínicos selecionados pela autora.

No domínio psicanalítico, Zimerman (1999) trabalha com os conceitos de famílias sadias e famílias patológicas, descrevendo seus tipos e suas características. Nas famílias suficientemente sadias há a predominância da harmonia, da atmosfera sadia e do espaço para o crescimento de todos; os pais constituem-se como modelo de identificação para os filhos à medida que apresentam coerência entre o que dizem, fazem e são; os papéis e funções de cada um são claramente delimitados; as diferenças entre as pessoas são reconhecidas e a empatia constitui um elemento essencial dessa estrutura.

Ele examina, igualmente, as famílias patológicas, distinguindo-as em seus tipos e características. Na família simbiótica, os membros aparentemente estão ligados por um grande amor, mas não há uma autêntica emancipação e uma sadia conquista de espaço próprio por parte de seus membros. Nela, ocorre a infantilização do filho, dado o desejo inconsciente dos pais de garanti-lo como fonte de segurança contra a solidão na velhice. Na família dividida, ocorre a formação de subgrupos, em detrimento de uma saudável integração dos seus elementos. Nela, há forte risco de se privilegiar um dos pais ou um dos filhos e de se ter um membro excluído da família. Na família narcisista, os membros acreditam ser donos da verdade e dotados das melhores qualidades: onipotentes em relação às outras pessoas. Contudo, eles toleram mal qualquer tipo de frustração. Às famílias com perdas de limites, falta o reconhecimento das diferenças entre as pessoas, bem como lhes falta o reconhecimento da hierarquia, dos papéis, das posições e das funções de cada membro no grupo. A família esquizoide é marcada pelo distanciamento entre os membros, havendo falta de coesão entre eles. A família paranoide é formada por pessoas muito desconfiadas, provocadoras e sensíveis ao extremo. Na família depressiva preponderam a tristeza, a apatia, o pessimismo generalizado e o culto a familiares mortos, impedindo os membros de viver o presente com intensidade. Numa família obsessiva verifica-se a cobrança excessiva entre os seus membros, buscando a perfeição através do controle exagerado de seus componentes. Já a família hipocondríaca é marcada pelo culto às doenças, exames e abuso de medicamentos. Por fim, cumpre ressaltar que não existe uma família perfeitamente sadia.

Conceitos psicanalíticos adicionais para o estudo das famílias patológicas

Para o estudo de famílias patológicas atendidas pela autora, outras concepções psicanalíticas revelam-se essenciais.

Freud (1920) descreve as pulsões de vida e as pulsões de morte em sua segunda teoria das pulsões. As pulsões de vida compreendem as pulsões sexuais e as de auto-conservação, ao passo que as pulsões de morte incluem as pulsões agressivas/destrutivas. No tocante ao desenvolvimento psicossexual, a fase oral-canibalesca da libido é marcada pelo domínio e pela aniquilação do objeto, de modo que a oralidade constitui o modelo de toda incorporação. Contudo, a incorporação não se limita à fase oral e à zona erógena oral. Na fase anal-sádica da libido se estabelece a pulsão de domínio. No caso da incorporação anal, a cavidade retal é assimilada à boca. Em síntese, a incorporação significa: obter prazer incorporando um objeto dentro de si, assimilar suas qualidades conservando-o dentro de si e, ainda, destruir esse objeto.

No plano da pulsão agressiva/destrutiva, Bion (2004) aponta que o impulso do bebê lactante em busca de provisões pode ser obstruído e cindido, fazendo com que haja uma divisão entre satisfações materiais e psíquicas. A internalização dos elementos brutos da experiência aumenta a necessidade de uma comodidade material em detrimento da psíquica e se converte em voracidade, que, por sua vez, incrementa a destrutividade e a inveja.

Outros autores permitem pensar as questões da família em termos de transmissão psíquica de conteúdos de uma geração para outra.

Para Eiguer (1997), o legado transgeracional reenvia a situações definidas por três palavras-chave. O ‘não-dito’ alude ao segredo, à cripta, ao fantasma e à clivagem. O ‘mal-dito’ evoca a maldição proferida por um avô, a palavra mal-dita, sem estatuto de palavra, mas que atua no inconsciente. No ‘excessivamente-dito’ da genealogia, o ancestral excessivamente presente não deixa o recalque exercer seu papel organizador e entrava a ação do sujeito.

Boszormenyi-Nagy e Spark (2003) discutem a contabilização de méritos e dívidas, inclusive as dívidas filiais, nas gerações da família. Abordam, ainda, a ética relacional na família, que deveria se pautar em relacionamentos com confiança e lealdade, equilíbrio de direitos e deveres junto com o equilíbrio e a justiça do dar e receber.

Mais estudos sobre as famílias patológicas

Esta seção acerca das famílias patológicas traz o relato de três casos clínicos, com base nos quais algumas concepções teóricas são propostas pela autora.

Almeida (2020) propõe três tipos de famílias patológicas, sendo que numa delas ocorre a negação do poder paterno e na outra há a negação do poder materno – ambas no que tange ao patrimônio e ao dinheiro da família. No exame dessas famílias, pathos remete à questão do sofrimento, da paixão e do afeto, sobrepujando, assim, o enfoque mais popular do termo patologia como doença.

1-Família patológica e negação do poder paterno

Numa família marcada pela negação do poder paterno, o pai é o único responsável pela construção do patrimônio, pela geração do dinheiro e pela segurança material da família. Todavia, seu poder é negado no discurso da esposa e filhos.

O marido/pai é um self made man autoritário, agressivo e dominador na família, que afirma sadicamente seu poder pessoal e econômico, desvalorizando sua esposa e filhos. Muito bem sucedido do ponto de vista material, ele controla de modo paradoxal os gastos da família: libera o cartão de crédito para a esposa, mas controla cada compra feita pela família por meio de notificações do banco. Há, nele, grande preocupação com o bem-estar da família junto com intenso stress ao assumir seu papel e suas funções na família. Nesse contexto, a esposa/mãe está presa a uma cama há vários anos, sendo impotente física e financeiramente para ganhar dinheiro. Entretanto, sua onipotência é ressaltada ao dominar-controlar os filhos, à medida que ela dá o dinheiro do marido para eles, supostamente ‘escondido’ dele. Além disso, ela afirma seu poder de pagar os bens materiais dos filhos, dizendo-lhes ‘eu pago as coisas’ – ao que eles correspondem, afirmando ‘minha mãe paga tudo’.

Marcada pelo pavor de ser abandonada pelo marido, paradoxalmente, mandava-o embora continuamente em meio às brigas do casal. Quando ele vai embora num certo momento, paradoxalmente, ela critica o marido expulso-abandonador. Pouco tempo depois, ele retorna à casa da família – dado o adoecimento grave de dois netos. Quando os netos crescem, ele vai embora finalmente, mas continua sendo responsável pela família, que recebe provisões materiais contínuas dele. Em meio a essa trama, todos eles são dependentes, insatisfeitos, invejosos e ingratos para com ele. Numa incorporação destrutiva dos bens materiais fornecidos por ele, mandam-no ‘tomar no c...’ às escondidas.

Fruto dessa trama, o primeiro filho do casal vendeu um imóvel herdado dos avós – a um preço abaixo do preço de mercado – para pagar dívidas com suas exs mulheres. Acabou gastando o dinheiro herdado deles, voltando a depender do dinheiro do pai. Em suas palavras, ‘torrei a grana dos velhos com gosto, não ia deixar minha irmã ficar com a minha grana’. Dados os paradoxos da família, sua compulsão sexual se contrapõe à sua eterna insatisfação com as mulheres. Dessas relações, sobraram filhos que ele não consegue sustentar com seu dinheiro, pois ele vive fora da própria realidade financeira. Em meio a isso, ele desfruta de certas regalias com dinheiro do pai – dado ‘às escondidas’ pela mãe. Porém, ele se queixa dela: ‘minha mãe gruda como carrapato e não me deixa respirar’.

A segunda filha fez vários cursos sem conseguir terminá-los, terminou um curso sem trabalhar na área e sem ganhar dinheiro com ele – continuando a depender do dinheiro do pai. Dentre suas compulsões, sua avidez por comida se alia a sua avidez por compra de roupas. Ela diz que sempre cede na relação com os outros, mas prioriza seus desejos; domina o dinheiro do pai cedido pela mãe e não a deixa escolher o que ela quer. Segundo ela, ‘minha mãe é brega’, tem ‘m... na cabeça’ e ‘eu tenho bom gosto. E, ainda, afirma: ‘minha mãe é paralítica, mas faz dos filhos os braços e as pernas’. Casa-se com um homem rico, compra roupas compulsivamente – chegando a ter sessenta calças jeans no armário, mas usa poucas delas. Além disso, ela compra manuais, aparelhos e utensílios – com o dinheiro do marido – para abrir uma loja, sem jamais efetivar esse projeto de independência e desperdiça dinheiro dele com isso. Não consegue trabalhar, continua insatisfeita e dependente do dinheiro dele e sem ter qualquer gratidão para com ele.

2- Família patológica e negação do poder materno

Examina-se, a seguir, uma família marcada pela negação do poder materno e do valor do trabalho da esposa – junto com o marido – para a construção do patrimônio e a geração do dinheiro nesse grupo. Esse processo inconsciente se revela no discurso de seus membros. Trata-se de uma família esquizoide, com tendência ao distanciamento de seus membros, que se forma a partir da vinda de seu patriarca para o Brasil.

O patriarca da família é um self made man que constrói grande patrimônio em nosso país. Paradoxalmente, ele se constitui como protetor e guardião moral da família, mas ele é dono e frequentador de uma casa de prostituição – bem afastada do local de convívio da família. Ele promove uma espécie de re-fundação da família no novo país, ao trazer membros da família de seu país de origem para cá. Formam-se, então, sub- grupos dessa família – com várias características em comum. A primeira geração é formada por pais imigrantes e seu corpo é direcionado para o trabalho, sendo que seus casamentos conturbados com conterrâneos favorece o sexo com prostitutas. A segunda geração é constituída pelos filhos dos imigrantes, cujo corpo é direcionado para estudo e trabalho. Igualmente, seus casamentos conturbados propiciam relações com amantes, que geram separações. Nessa família, o valor da construção de patrimônio, do trabalho árduo e da economia de dinheiro se articula ao valor da pessoa que o constrói e à desvalorização da pessoa que o herda. Nesse estatuto psíquico de restrição de prazeres do corpo, o prazer oral é permitido em parte, mas, em parte, é recriminado – visto que os filhos – induzidos a comer pelos pais – são chamados de gulosos e gordos, depois. De modo geral, o prazer sexual é proibido dentro dessa família – favorecendo o prazer sexual ‘sujo’ fora da família – com amantes e prostitutas desvalorizadas. E, mais, as confusões mentais da família com dinheiro envolvem acusações de roubo entre os pais, deles para com filhos e entre os irmãos. Observa-se a repressão do desejo envolvendo amor e sexo, aliada ao fato de que a expressão de emoções delicadas é vista como fraqueza por eles.

O patriarca e sua esposa tem um primeiro filho, que fez um curso muito caro e foi reprovado por dois anos. Desiste dele quando o pai/patriarca morre e passa a assumir os negócios da família. A esposa do filho é uma ex-modelo bastante bonita, que usa roupas insinuantes e que provoca sexualmente os funcionários do marido, sob o pretexto de recorrer a seus serviços – como na troca de uma lâmpada. Suas amantes ocasionais são sempre trocadas por outras. O segundo filho é um típico Don Juan ávido por mulheres – a quem destrata e substitui rapidamente por outras. O terceiro filho se torna um ermitão completamente afastado do convívio familiar.

Dentre os sobrinhos do patriarca trazidos ao Brasil, certo homem/pai é um suposto self made man que tenta dominar e diminuir a esposa – fato que gera muitas brigas entre eles. Ela é muito trabalhadora, muito econômica e bruta no trato consigo mesma e com os outros, em geral. Essa grande trabalhadora é paradoxalmente incansável- esgotada, no sentido de que vive se queixando de não aguentar mais, mas continuar trabalhando. Todavia, ela não assume o valor e o mérito de seu trabalho para a construção do patrimônio e do dinheiro do casal. Pelo contrário, ela afirma o poder econômico do marido junto aos filhos – ‘ele paga tudo’, ‘ele que te deu o carro’.

3- Família patológica: triangulações na família e cisão do eu de seus membros

Para se estudar essas questões no campo da psicanálise, parte-se de um trabalho consagrado do mestre Freud (1923).

O triângulo amoroso típico do Complexo de Édipo, segundo Freud, seria revivido na fantasia das crianças, geralmente antes dos cinco anos de idade, quando elas experimentariam o desejo erótico em relação ao genitor do sexo oposto, além de rivalidade e hostilidade em relação ao genitor do mesmo sexo.

Com base nisso, pode-se pensar suas consequências na vida psíquica das pessoas adultas.

As triangulações na família podem ocorrer na relação de longa duração do homem com uma namorada/esposa ‘feia’ – segundo seus padrões – e sua atração por mulheres bonitas, favorecendo a traição a ela. Esse homem tende a exibir o falo intelectual, profissional, econômico ou sexual para a mulher bonita. Certamente, há casos de mulheres envolvidas em triângulos amorosos – mas, talvez, isso ainda seja menos comum.

Dentre as versões dos triângulos amorosos, certo homem chama uma mulher bonita de ‘gata’ e ‘gostosa’, nomeando sua namorada – de longa data – de ‘gorda, feia’, ‘cara desbotada’. Outro homem acompanhado da esposa – mal humorada – se estende em explicações sobre propriedades de certo produto para uma mulher bonita. Esta tenta se esquivar dele, mas ele continua explicando e diz: ‘minha mulher não me deixa falar com mulher feia’. Um terceiro homem – casado, acompanhado da esposa e dos netos – reencontra uma mulher bonita e lhe diz: ‘ eu segurei você no colo’. Estende-se em explicações teóricas sobre seu trabalho e fala sobre o fato de ele ser um expoente em sua área de atuação. A hora do jantar interrompe esse intercâmbio e quando a mulher bonita vai se despedir do casal, ele puxa a cadeira e insiste para ela sentar, enquanto sua esposa lhe diz: ‘ela tem que ir’. Sua oposição à fala da esposa implica a desvalorização dela na frente da mulher bonita. Em sua negação do amor pela mulher e a suposta valorização da mulher bonita, revela-se sua profunda desvalorização do feminino. A ironia e o paradoxo dessa situação é que ambos são psiquiatras cultos e bem situados profissionalmente, mas aos quais falta fazer análise.

Um caso clínico visa apresentar as triangulações, as alianças, as exclusões e as pragas proferidas numa família. Os pais da paciente tiveram três filhos, sendo que a paciente é a filha mais velha do casal. Segundo ela, sua mãe é muito inteligente, mas não pôde estudar como a filha. Além disso, ela foi impedida de continuar trabalhando fora pelo marido, ao casar. Contudo, ela é uma boa administradora do dinheiro do casal.

A paciente é a filha preferida do pai: bonita, inteligente e com grande destaque como aluna, segundo ele. Seu irmão é o filho preferido da mãe, tendo cursado três faculdades, sem terminar nenhuma delas. No discurso materno dirigido a ela, ela ouviu, reiteradas vezes, ‘você é como seu tio: muito desorganizada’. Esse tio é um profissional de destaque em sua área, que já teve muito dinheiro, mas que perdeu tudo, inclusive porque sua esposa gastava mais do que ele ganhava. Esta esposa é irmã da mãe da paciente, tendo sido a preferida de sua mãe/avó da paciente. Outros fragmentos desse discurso materno dirigido à paciente incluem: ‘você vai cair e não vai mais levantar’, ‘você não vai ter nada’, ‘você é trouxa dos outros’, ‘os outros te fazem de boba’. Na realidade, a mãe da paciente, empresta dinheiro para os irmãos, que não a pagam. Outro fragmento de seu discurso – com relação a gastos dos filhos com a faculdade – é: ‘você gastou mais que seu irmão’. Na interpretação da paciente, ressalta-se: você não merece o dinheiro que recebeu. Portanto, nesta família, os ganhos afetivos da paciente com o pai se misturaram às perdas afetivas com a mãe. De modo geral, a paciente foi bastante desvalorizada pela mãe – exceto intelectualmente. Essa desvalorização abarcava desde sua capacidade como dona de casa – ‘você vai ser devolvida’ – até como profissional – ‘você não vai ter nada’.

Discussão dos casos clínicos

Nas famílias estudadas, o patrimônio, o dinheiro, a comida e os estudos fazem parte da provisão material oferecida pelo(s) pai(s) aos filhos. Dado o discurso e os afetos investidos neles pelos pais, essas provisões materiais adquiriram uma intensa carga emocional negativa e, posteriormente, são usadas como formas de compensação dessa herança psíquica de sofrimento, pelos filhos. Do descompasso entre a provisão econômica e a provisão emocional destrutiva – ódio, raiva, desejo de vingança, desejo de ser ressarcido – resulta um herdeiro falido/fracassado em termos psicológicos e financeiros.

A esse respeito, Bion (2004) aponta que o impulso do bebê em busca de provisões pode ser cindido, havendo uma divisão entre satisfações materiais e psíquicas. A internalização dos elementos brutos dessa experiência aumenta a necessidade de comodidade material em detrimento da psíquica e se converte em voracidade, que, por sua vez, incrementa a destrutividade e a inveja. Em outras palavras, esse herdeiro gasta dinheiro – de forma voraz, destrutiva e invejosa – com roupas, cursos, empreendimentos e atividades que não leva adiante, voltando a depender do dinheiro do(s) pai(s), mas continua a se sentir fracassado ou falido. Desse descompasso, pode, ainda, derivar compulsões com comida, sexo, compras e trabalho, dentre outras. A compulsão por comida pode apresentar variações: comer até passar mal; sofrer por ser gordo e continuar comendo descontroladamente; consciência de ter forte tendência a mesma doença de seus pais e avós – colesterol e triglicérides altos, gordura no fígado, diabetes – mas não ter controle disso, fazer cirurgia estética cara com dinheiro do marido/pais e engordar novamente.

Em todos os casos clínicos, observam-se a rede de representações e afetos que entrelaça todos os membros da família. A questão do dinheiro - como elemento essencial de poder neurótico - favorece a impotência psicológica e financeira de seus herdeiros. As compulsões são outro tópico a ser pensado nessa sucessão familiar: compulsão por comida, por sexo, por compras e por trabalho. Como se sabe, as compulsões escamoteiam os vazios emocionais dos sujeitos.

Em quaisquer dos casos clínicos, há uma série de conflitos com dinheiro que abarcam questões de poder, de controle e de domínio sobre o outro – permeadas por impotência e onipotência. Além disso, sentindo-se lesados pelos pais, buscam ser ressarcidos por meio do uso descontrolado do dinheiro. Suas relações são marcadas por desconfiança e deslealdade, bem como pelo desequilíbrio entre dar e receber – no plano emocional e financeiro. Essas relações contrapõem-se à formulação de Boszormenyi-Nagy e Spark (2003) acerca da ética relacional na família, pautada em confiança e lealdade, equilíbrio de direitos e deveres junto com o equilíbrio do dar e receber.

Ao se pensar as compulsões nessas famílias, no caso 1, em que vigora a negação do poder paterno, observa-se a compulsão por comida e compras na filha e compulsão por sexo no filho, enquanto no caso 2 em que ocorre a negação do poder materno, há a compulsão por trabalho na esposa. No caso clínico 3, ao lado das triangulações, alianças e exclusões de um membro ao longo das gerações, chama a atenção as pragas/maldições enunciadas pela mãe da paciente. Afirma Eiguer (1997) que o ‘mal-dito’ evoca a maldição proferida por um avô, a palavra mal-dita, sem estatuto de palavra, mas que atua no inconsciente. Parecem exemplificar a incorporação destrutiva – por parte do herdeiro – da provisão material proporcionada pelos pais, mas carregada de desvalorização do filho, que favorece seu fracasso na vida.

Considerações finais

Como sobejamente conhecido, a família constitui o primeiro grupo de formação do eu do sujeito. Sua importância psíquica fundamental implica a construção de sujeitos mais ou menos saudáveis. Para tanto, tal como afirmado pela psicanálise, o predomínio da pulsão de vida/amor sobre a pulsão de morte/ódio propicia a saúde mental do sujeito. Em contraposição a isso, os casos clínicos revelam gradientes maiores ou menores de ódio, destrutividade e inveja.

Frente a isso, a psicanálise – mediante seus conceitos e técnica de trabalho com a psique – pode contribuir para que o sujeito tenha mais saúde mental, mais prazer de viver e, nessa medida, contribuir para a construção de um mundo melhor.

Referências

Bion, W. R. (2004). Elementos de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.

Boszormenyi-Nagy, I.; Spark, G. (2003). Lealdades invisibles. Buenos Aires: Amarrotu.

Eiguer, A. (1997) Transgénérationnel et temporalité. Revue Française de Psychanalyse, 61(5), 1855-1862.

Faimberg, H. (2001b). A telescopagem das gerações: a propósito da genealogia de certas identificações. In: Kaes et al. Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 71-93.

Freud, S. (2006). O ego e o id. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1923).

Freud, S. (2006). A dissolução do complexo de Édipo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1924).

Kaës, R. (2001a). Transmissão da vida psíquica entre gerações. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Zimerman, D. E. (2004) Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, Técnica e Clínica. Porto Alegre:Artmed.

Maria Emilia Sousa Almeida
Enviado por Maria Emilia Sousa Almeida em 29/04/2021
Reeditado em 03/10/2023
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