Rinhas no asfalto

Os cães são adestráveis. Podemos fazê-los dóceis cães-guia e cães de companhia ou ferozes e assassinos cães de guarda e cães-policiais. Ou podemos treiná-los para tarefas e respostas programadas, como os farejadores, os de circo e os de laboratórios pavlovianos. Moldamos o comportamento e as reações dos cães, basta adestrá-los com suficiente insistência. Os exemplos mais extremos talvez sejam os cães de rinha; odeiam-se sem se conhecerem, mas, confrontados, engalfinham-se até a morte.

E os seres humanos? São assim também tão adestráveis? Se aos cães falta-lhes capacidade de reflexão e autodeterminação para escaparem da sina que lhes é impingida, parece que os humanos não são muito diferentes. O aforismo “dividir para dominar”, aplicado pelos impérios para conquistar suas colônias, mostra a força do condicionamento que faz irmãos se odiarem e se matarem, abrindo livre caminho para os invasores. Tem sido assim em todos os impérios coloniais, na Ásia, na África, na América Latina. Até na Europa e América do Norte conhecem-se as históricas manipulações que incitaram o ódio entre religiões, raças e castas, atiçando guerras, perseguições, fanatismos e atentados.

Nós, seres humanos, não somos tão racionais quanto julgamos ser. Desdenhamos a irracionalidade que nos faz reagir como cães raivosos. E os adestradores de humanos, usando recursos sofisticados, fazem de nós o que bem querem: ou nos amansam submissos, ou nos fazem odiar até nossos irmãos, compadres e vizinhos.

Vejo isso no Brasil hoje. O ódio está sendo fomentado e as pessoas não têm discernimento sufoiciente para perceber que estão sendo treinadas para reações violentas, descabidas: o velho conservador odeia a jovem progressista; o policial odeia a professora grevista; o cristão católico odeia o cristão evangélico; o branco da zona sul odeia o negro do morro; a dona de casa de verde e amarelo odeia o pai de família de vermelho; o taxista odeia o uberista; o porteiro do prédio passa a odiar o antes amado compositor popular; os torcedores dos times rivais sempre se hostilizaram, mas agora se odeiam; a professora grevista também odeia o policial; a jovem progressista odeia o velho conservador; até um adesivo no vidro do carro com opinião desperta ódio.

Entre os humanos, sempre houve aquela parcela mais próxima dos cães, que é mais fácil de adestrar e de incitar ao ódio, para semear o ambiente de rinha. Tanta raiva ainda não conseguiu fazer que despertássemos para o fato que estamos sendo doutrinados para o ódio, para nos debilitarmos e autodestruirmos. Uma guerra ideológica que só interessa a quem quer ver-nos sempre como o país do futuro, a colônia do passado e do eterno presente.

Mas, felizmente, se por um lado desdenhamos nossa canina herança irracional e manipulável, por outro já temos sim alguma racionalidade. É o “eu superior” que já viceja em nós. Já somos capazes de refletir, de compreender e de escolher por nós mesmos quem somos: se sujeitos controlados pelos reflexos condicionados, ou se indivíduos lúcidos e livres.

Não é tarefa fácil libertar-se do condicionamento que nos domina no dia a dia, pela TV, rádio, jornais, revistas, cinema e agora as poderosas mídias sociais. Mas se não formos capazes de exercer nossa racionalidade, e nossos sentimentos e solidariedade, para neutralizarmos o perverso adestramento que nos é imposto, logo estaremos banalizando nas ruas a mesma sangrenta violência das rinhas, que hipocritamente declaramos foras da lei.