O Discurso da Servidão

O discurso da Servidão

A obra O discurso da servidão voluntária escrita no século XVI por Étienne de La Boétie é referência para a discussão no campo teórico político sobre o tema liberdade. O debate está associado às questões referentes à psicologia social, aos relacionamentos dos indivíduos no seio da coletividade e às relações de poder e submissão.

La Boétie apresenta como centro de sua discussão a questão de como os homens, as comunidades, as cidades e os Estados se subordinam a um tirano, que só pode fazer-lhes algum mal enquanto optam em se manterem subordinados[4]. Para o autor, a questão causa indagação:

Digno de espanto, se bem que vulgaríssimo, e tão doloroso quanto impressionante, é ver milhões de homens a servir, miseravelmente curvados ao peso do jugo, esmagados não por uma força muito grande, mas aparentemente dominados e encantados apenas pelo nome de um só homem cujo poder não deveria assustá-los, visto que é um só, e cujas qualidades não deveriam prezar porque os trata desumana e cruelmente.[5]

A tomada da Bastilha — Jean-Pierre Louis Houël

La Boétie confirma que são “os povos que se deixam oprimir”. Para libertar-se, basta tomar a decisão de não mais servir aquele que tudo usurpa, tirando-lhe todo o apoio, para conseguir a liberdade basta deseja-la. Nesse sentido, se basta um desejo para conquistar a liberdade, por que é tão difícil conquista-la? De que mal que padece a humanidade a ponto de o “amor à liberdade parecer coisa pouco natural”? já que a liberdade é natural a todos os seres humanos, sendo que todos nascem com ela e possuem condições de defendê-la.

Para o autor, se nascesse um novo povo, este seguramente optaria pela liberdade e ouviria a razão. Qualquer novo povo só serve a outrem por constrangimento ou pela força. Porém, as futuras gerações desse novo povo servem de forma espontânea, sem nenhum esforço. Deste modo, o autor encontra a primeira resposta para suas indagações: é o costume que ensina os homens a servir.

Neste ponto, a natureza, que tem como certa a liberdade, tem menos poder do que o costume. Concluindo, o primeiro motivo da servidão voluntária é o hábito. O segundo é o fato de que sob a tirania os homens se tornam covardes.

Outras questões estão relacionadas com o comportamento daqueles que rodeiam o tirano. Para La Boétie, o tirano não se mantém no poder em razão dos soldados, que garantem sua segurança. A manutenção do poder tirano é efetivada pelas inúmeras pessoas que o rodeiam e que, com sentimentos de ambição, de avareza, de apego ao poder e às riquezas, suportam a tirania do tirano e tiranizam aos outros.

O discurso sobre a servidão consegue, no século XVI, fazer uma análise dos motivos psicológicos que levam os indivíduos, no âmbito social, a aderirem a uma tirania, sendo servos voluntários, renunciando, o que para La Boétie consiste na própria natureza do humano, ao que é o instinto de liberdade para se submeter à tirania, à servidão, de forma totalmente voluntariosa.

Liberdade: Hobbes x Spinoza e Rousseau

No século XVII, Thomas Hobbes, Spinoza, dentro outros protagonizaram discussões sobre a liberdade. Spinoza pode ser considerado um contraponto a Hobbes, principalmente em relação à ideia de sujeito político que no arcabouço teórico de Spinoza desaparece, surgindo em seu lugar a multidão como sujeito.

Para Hobbes, o direito natural é a liberdade consistente na utilização do poder humano, da forma que lhe convém, para a preservação de sua vida. A liberdade é a “ausência de empecilhos externos” às ações consideradas, pelo homem, necessárias para a sua autopreservação.[6]

Mas a condição humana, dentro da visão hobbesiana, é a “guerra de todos contra todos”, onde cada homem governa sua própria razão para a preservação de sua vida.[7] Esse estado natural causa insegurança e o homem busca a paz renunciando, deste modo, à sua própria liberdade. Ao transferir ou renunciar a seus direitos, de forma voluntária, o homem objetiva um benefício que é a sua segurança e os meios para a preservação de sua vida. A transferência mútua de direitos se faz por meio de um contrato, um pacto.

A segurança só é alcançada por meio da instituição de um poder comum, onde se reduzem as múltiplas vontades em uma só, constituindo-se o Estado em uma multidão de homens que pactuam entre si. Esse poder conferido pelo “consentimento do povo” é o poder soberano, que é um poder que transcende os próprios pactuantes, capaz de impor a ordem, a forçar a obediência, evitando sempre a guerra.

Para Hobbes, além da criação de um homem artificial denominado Estado, por meio de pactos, os homens criam “cárceres artificiais” que são as leis civis. Essas leis mantêm os homens aprisionados ao soberano.[8]

A liberdade reaparece em Hobbes, naquilo que não é regrado pelas leis, ou seja, a liberdade reside no silencia da lei. Ela reaparece também juntamente com os direitos naturais que permanecem com os homens e que não podem ser transferidos, como o direito de proteger a vida, a integridade física e a não se autoincriminar[9].

Spinoza é conhecido como o filósofo da imanência, do desejo e da liberdade. Em Spinoza Deus e a natureza são a mesma coisa e Deus é a única substância imanente.

Ele não age com a finalidade misteriosa, separada do mundo, (onipotência e onisciência). A natureza (Deus) é a causa imanente e exprime suas próprias potências[10] sendo expressão de uma atividade infinitamente infinitiva. Como substância, a natureza é uma e única, sendo complexa e constituída por inúmeros atributos. Ela é ser e causa ao mesmo tempo. É ser, porque é a plenitude da existência e, é causa em si e causa livre porque é imanente a todas as coisas. Assim, Deus não é causa que se separa dos efeitos.

As potências agem por sua própria natureza e são atividades plenas e integrais, não existindo, deste modo, distanciamento entre o pensar e o agir. A vontade divina é o efeito de sua potência. Deus é livre porque age por si mesmo, por sua potência. Com essas explicações, Spinoza supera a distinção clássica[11] entre necessidade e liberdade, dado que a liberdade passa a ser a manifestação espontânea da potência.

O homem não é livre em razão do livre arbítrio, mas porque é parte da natureza divina, “é dotado de força externa para pensar e agir por si mesmo”[12]. A liberdade não está na escolha, a partir de um cálculo racional, mas na afirmação de sua potência, sendo um agir.

Assim, para Spinoza, a liberdade nada tem a ver com a vontade. Agir com liberdade é, tão somente, agir conforme a razão, ou seja, agir de forma útil buscando a autoconservação.

No plano político, para Spinoza, regimes políticos violentos se conservam em razão do medo, do castigo, da censura, da utilização de poderes religiosos. Spinoza se insurge contra isto com a multidão.

Spinoza elucida que há um direito comum constituído pelas potências individuais, ou seja, pela potência da multidão que se chama Estado. Por essa razão, o autor considera que:

[…] o direito do estado ou dos poderes soberanos não é senão o próprio direito de natureza, o que se determina pela potência, não de cada um, mas da multidão, que é conduzida como que por uma só mente; ou seja, da mesma forma que cada um no estado natural, o corpo e a mente de todo o estado têm tanto direito quanto vale a sua potência […][13]

O Estado constituído, para Spinoza, é aquele constituído por uma multidão livre. Isto porque, segundo o filósofo:

[…] a multidão livre conduz-se mais pelas esperança que pelo medo, ao passo que uma multidão subjugada conduz-se mais pelo medo que pela esperança: aquela procura cultivar a vida, esta procura somente evitar a morte; aquela sublinho, procura viver para si, esta é obrigada a ser do vencedor, e daí dizermos que esta é serva e aquela é livre[14]

A multidão é um conjunto de singularidades[15]. É na pluralidade das forças e das formas de vida, presentes no âmbito social, que reside a verdadeira força matriz. A multidão não se subordina a mecanismos de representação, mas é a protagonista do espaço público. Não é a representação concentrada na unidade que constitui o sentido da multidão, mas sum, a multidão que constitui o verdadeiro sentido das coisas, do mundo.

Sintetiza Marilena Chauí o pensamento de Spinoza:

Dizemos que um ser é livre quando, pela necessidade interna de sua essência e de sua potência, nele se identifica sua maneira de existir, de ser e de agir. A liberdade não é, pois, escolha voluntária nem audência de causa (ou uma ação sem causa), e a necessidade não é mandamento, lei ou decreto externos que forçariam um ser a existire agir de maneira contrária à sua essência. Isto significa que uma política conforme a natureza humana só pode ser uma política que propicie o exercício da liberdade e, dessa maneira, possuímos, desde já, um critério seguro para avaliar os regimes políticos, segundo realizem ou impeçam o exercício da liberdade[16].

O Estado que persegue a liberdade dos cidadãos não permanece por longo tempo, pois liberdade é agir por si só, exprimindo sua própria potência de uma vida cuja existência está nos afetos, na alegria. Ao Estado cabe prover a alegria, oferecendo aos seres humanos as condições necessárias que tal estado de ânimo ocorra.

As organizações políticas devem ampliar a potência de agir para a preservação da existência. Até mesmo os tiranos não podem se sustentar no poder sem que faça o mínimo desse objetivo. Deste modo, o Estado só existe para a libertação coletiva e individual da potência de agir.

Em Rousseau, diferentemente de Hobbes, a liberdade não está naquilo que não está regrado, a lei é extensão da liberdade[17]. A liberdade pode ser buscada dentro do Estado, visto que, ao trocar a liberdade pelo contrato social há uma renúncia à liberdade que o homem jamais poderia fazer, pois renunciar à liberdade é renunciar a ser homem, assim, tal renúncia é ilusória.

Rousseau afirma que a obediência a lei que prescrevemos é liberdade.[18] O mesmo autor considera que para conquistar a liberdade dentro do Estado, o povo deve ser soberano, sendo que para se assegurar a liberdade de todos, todos devem ser iguais. Em Rousseau, liberdade e igualdade aparecem como necessárias, caminhando juntas.

Davide con la testa di Golia — Caravaggio

O direito como garantia da liberdade

No século XVII, Imanuel Kant entende que a liberdade é a “faculdade de fazer algo sem ser coagido”[19]. Para Kant, existem duas liberdades: Uma moral (interna) e outra jurídica (externa).

A liberdade moral ocorre quando há adequação às leis por meio de nossa própria razão. A adequação é feita eliminando os obstáculos dos desejos (inclinações, paixões e interesses). A liberdade moral é a responsabilidade em relação a si mesmo. Já a liberdade jurídica está relacionada ao outro. É o esforço de alcançar a liberdade sem perturbar a ação do outro. A responsabilidade é caracterizada perante os outros, considerando de forma coletiva e representados pelo Estado.

Com base na liberdade, Kant define o direito como “o conjunto de condições, por meio das quais o arbítrio de um pode estar de acordo com o arbítrio de um outro segundo uma lei universal da liberdade”[20].

Para Kant, é o direito que possibilita a livre coexistência dos homens, a coexistência em nome da liberdade, porque somente uma liberdade regrada pode garantir que a liberdade não se transforme em uma não liberdade.

[1] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 77.

[2] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 77.

[3] FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79.

[4] LA BOÉTIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária. Brasil: L.C.C. Publicações Eletrônicas, 2006, p. 5.

[5] LA BOÉTIE, Étienne. Discurso da servidão voluntária. Brasil: L.C.C. Publicações Eletrônicas, 2006, p. 6.

[6] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 97.

[7] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 98.

[8] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 153.

[9] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 157.

[10] CHAUI, Marilena de Souza. Espinoza: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995, p. 48–50.

[11] A tradição teológico-metafísica estabelece um conjunto de distinções com que pretendia separar liberdade e necessidade. Dizia-se que é “por natureza” o que acontece “por necessidade” e, ao contrário, que é “por vontade” o que acontece “por liberdade”.

[12] CHAUI, Marilena de Souza. Espinoza: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995, p. 10.

[13] SPINOZA, Barcuh. Tratado Político. São Paulo: Ícone, 1994. P. 25.

[14] SPINOZA, Barcuh. Tratado Político. São Paulo: Ícone, 1994. P. 45.

[15] NEGRI, Antonio. Por uma definição ontológica de multidão: cinco lições sobre o império. Rio de Janeiro: Lamparina, 2003.

[16] CHAUI, Marilena de Souza. Espinosa: o poder e liberdade. Em publicación: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. Departamento de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo. 2006

[17] KELLY, Paul. O Livro da política. São Paulo: Globo, 2013, p. 107.

[18] GARCIA, Maria. Desobediência Civil. São Paulo: RT, 2004, p. 30

[19] BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emannuel Kant. Brasília: universidade de Brasília, 1984, p. 59.

[20] BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emannuel Kant. Brasília: universidade de Brasília, 1984, p. 5

Lá Boetie
Enviado por ALMA GRANDE em 04/07/2022
Código do texto: T7552227
Classificação de conteúdo: seguro