PATINHO FILHO

Patinho Filho

Quando eu era criança, sentia uma profunda empatia (e simpatia) pelo Patinho Feio, não que eu me considerasse um pequeno monstrinho, mas por – quem sabe – não me reconhecer tão acolhido quanto desejava. Sempre achei que eu fosse, e às vezes acho, confesso, que não sou o filho que meus pais idealizaram. Porém, quem deve ser, de fato?

Conforme afirmam Diana e Mario Corso, em “Fadas no Divã” (Artmed, 2006), somos todos “adotivos”, visto que laços sanguíneos não são garantia de nada, pois não asseguram o sentimento de pertença, de nos sentirmos amados, ficando-nos essa sensação de sermos estranhos no ninho. Entre o feto que se forma no ventre e o rebento que vem à luz há diferenças expressivas que vão se misturando entre aquilo que era ilusão e a nova forma de enxergar o indivíduo que veio ao mundo e sobre o qual os pais julgam ter controle.

Num primeiro olhar, o filho é perfeito, talvez melhor do que imaginavam. Com o tempo, é preciso coragem para reconhecer isso, percebe-se que às vezes a vontade é de sentar e chorar, como se o arrependimento da concepção tocasse forte, em especial as mães. Sim, estas que constantemente a sociedade idealiza como sendo aquelas incapazes de abandonar os filhos e sempre dispostas a nutrirem por estes um amor incondicional.

Admiro muito as mulheres que conseguem confessar para si mesmas que sua maternidade não teve e não tem as características estigmatizadas por um discurso romântico, que desconsidera as jornadas exaustivas para minimamente cuidar de um ser humano, quando muitas vezes é a própria pessoa que clama por cuidado. Ela está desmoronando, mas precisa ser a fortaleza.

E por isso – não raro – existem mulheres (e homens também) que passam a vida inteira sem conseguir criar vínculo com seus filhos, estão alheios, desconexos. Às vezes, em sofrimento por não serem capazes de compreender o porquê de não desenvolverem um sentimento que para muitos é tão natural, o amor. Todavia, a metáfora do Patinho Feio remonta a um tempo em que era normal os pais abandonarem os filhos “defeituosos”, os que fossem fora do “padrão”. E até hoje pode-se inferir quem são os indesejados.

Assim, por temermos revelar o feio, vivemos em função de validar o amor dos nossos pais, estendendo esse filho ideal para diversos cenários sociais, para que dessa forma haja uma espécie de manutenção afetiva. Não obstante, se não há um eu, na medida do possível autêntico, estarão nossos pais amando um personagem modelado a partir de um desejo demasiadamente egocêntrico, desconsiderando a alteridade. Nesse sentido, será mesmo uma cria, uma extensão de si que vive para satisfazer as vontades de quem misturou os gametas.

Evidentemente que essa forma de conduzir os afetos é danosa, causando malefícios para a autoestima da pessoa que ainda não se permitiu construir uma subjetividade que a faça olhar no espelho e se reconhecer como alguém livre para fazer suas escolhas sem depender da validação, capaz de suportar uma cara feia – seja do pai, da mãe, do chefe, seja de quem for. Desse modo, apesar do olhar reprovador do outro, estará bem consigo, porque a pessoa estará conciliada com as suas escolhas – não se verá como o Patinho Feio, ainda que o julgamento alheio pense diferente.

Quem sabe assim o Patinho Feio se tornará um Dumbo, cujas extensas orelhas funcionarão como asas para condução de novos horizontes de sentido e autoaceitação. Pode não ter se tornado um belo cisne, mas é alguém de cuja identidade pode se orgulhar, reconhecendo no espelho um reflexo único, como um mosaico em que as múltiplas peças conferem uma unidade plural e singular.

Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.

(Texto publicado no jornal A União em 22/03/2024)

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 22/03/2024
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