Crise de leitura?

Os tempos mudam. Temos de nos adaptar. O ser humano não gosta de mudanças, mas vejamos:

A primeira vez que me lembro de ter lido e escrito o meu nome, tinha apenas 3 anos. Sentada no tapete da sala de piano da casa de meus avós, arrumava letras e números que saltavam de um jogo de cubos muito coloridos e que pareciam querer dizer-me muitas coisas. Minha mãe ensinou-me a reconhecer as letras, as quais eu ia montando enquanto ela tocava piano. Montava castelos, pontes e sonhos com o lego dos anos 50. Associei letras a notas musicais. O “R” era o ré, o “O” era o dó, o “S” era o si e o “A” era o fá. Punha repunha e tornava a repor letras que tinham sons de Chopin. Talvez por isso aprendi a ler tão cedo.

A vida continuou e eu não conseguia estudar ou me concentrar sem ouvir música. Nos anos 70, uma amiga ofereceu-me um livro gravado em três cassetes. Ouvi essa obra vezes sem conta. Cheguei ao ponto de a saber de cor. Hoje, na minha biblioteca podem ser encontrados muitos livros em áudio, muitos em cassete, incluindo a obra de J. K. Rowling, Harry Potter.

Nas tardes frias, chuvosas e ventosas de inverno, o meu maior prazer é deitar-me num sofá, coberta por uma manta e saborear um bom livro. Quando é impresso, o cheiro do papel, junto com o tato, adicionam mais prazer à leitura. Mas o que sinto quando ouço um livro em áudio? a imaginação alonga-se ainda mais, porque a visão não tem a âncora das linhas, podendo transbordar em horizontes que só eu posso criar, fazendo-me sentir mais unida aos autores. Nesses momentos, volto aos cubos da infância, adicionando as minhas próprias pontes e notas musicais, as quais me ensinam e ajudam a enriquecer-me cada vez mais. Dizem que o livro impresso tende a desaparecer para dar lugar ao eletrônico e de áudio, devido ao preço do papel e à necessidade de cuidar do meio ambiente. Os cubos da minha infância também desapareceram, talvez porque eram feitos de madeira. Contudo, o encanto pela leitura tende a aumentar.

Erasmo de Roterdã, no século XVI, estava satisfeito por sua obra ter sido lida por 2.000 pessoas. Devido à tecnologia e à informação, o gosto pela leitura aumentou como Erasmo nem em sonhos poderia imaginar. No presente, se ficarmos amarrados aos cubos da percepção, mistificando um passado sem futuro, passaremos a ter uma visão sem futuro. Temos de reconhecer a necessidade da revolução de hábitos e transitar para outros níveis sensoriais. O maior inimigo do livro é a estagnação, que pode levar à morte da leitura. Na vida moderna, poucas pessoas têm o privilégio de se deitar numa tarde chuvosa e fria lendo um livro. A maior parte está presa no tráfego, arrumando a casa, passando a ferro, malhando na academia e em muitas outras situações que não as deixam ler. A dinâmica da vida nos obriga a abandonar hábitos, enquanto criamos outros que nos ajudem a sobreviver da melhor maneira possível. A meu ver, essa é a razão porque o futuro de livros em áudio é tão promissor. Não existe crise de leitura, apenas de tempo e de papel.

Rosa DeSouza
Enviado por Rosa DeSouza em 29/05/2008
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