O QUE É UM HOMEM?

O que é um homem senão a soma de tudo que ele viveu até então? (atentemos para o machismo do nosso idioma ao eleger o gênero masculino para designar os demais seres da nossa espécie). Um homem é o somatório das experiências vividas: sejam elas boas ou más, edificantes ou frustrantes.

Heráclito, filósofo pré-socrático, definiu que um homem nunca se banha num mesmo rio duas vezes: na segunda vez que o homem volta a se banhar nem ele nem o rio serão os mesmos – os dois já passaram por mudanças: as águas do rio já serão outras e o homem volta com pelo menos a experiência de um banho a mais (lei do vir-a-ser contínuo). Há quem diga que Heráclito exagerou em relação à essa “metamorfose ambulante” (como no dizer do Raul) e que o ser humano é e será sempre o que ele foi no passado, acrescido das novas experiências vivenciadas a cada momento.

Concordo que o passado não deixa de existir apesar das mudanças que o presente nos provoca – os efeitos do passado sobre o comportamento do indivíduo é que podem sofrer mudanças e até deixar de existir, mas ele, o passado em si, continuará existindo como uma ponte para o presente (o instante presente é uma ponta do instante passado). Mas, e quando o passado deixa marcas negativas profundas, é possível retomar a vida sem se deixar influenciar por elas? É importante lembrar que as marcas ficarão, mas é sempre possível “dar a volta por cima”.

São detalhes delicados que têm que ser levados em conta, especialmente, ao se promover a reeducação para a reinclusão social dos marginalizados. Quem foi menino de rua, por exemplo, nunca deixará de ser aquilo que a sua realidade o ensinou a ser; igualmente o será quem teve a sua infância explorada como mão-de-obra gratuita ou quase gratuita nas lavouras e nas carvoarias, quem foi maltratado, etc. É preciso, então, que o excluído aprenda a ser cidadão com toda a sua bagagem de experiências (por mais dolorosas que sejam) e tirar delas o que possam oferecer de útil – imaginar que tais experiências serão apagadas é uma fantasia, é utopia.

Entretanto, é possível tirar proveito das circunstâncias ruins e dolorosas (sem qualquer apologia ao masoquismo): todo sofrimento que é suplantado pela coragem de um enfrentamento frente-a-frente torna-se um fortificante para o espírito. Nietzsche já dissera que “aquilo que não nos mata, fortalece-nos”.

E por falar que um homem é a soma de suas experiências vividas desde o nascimento até a morte, vejamos um trecho do poema “Viagem pelas costas do mundo” de Pablo Neruda: “Tudo vai fundindo dentro da gente, fora da gente, as vidas e os nascimentos, fazendo um círculo de folhas, de lágrimas, de conhecimento, de lembranças. E a vida de um homem é como a existência de um dia: a poeira treme à passagem da luz central, a vegetação acumula o seu misterioso alimento feito de atmosfera e de profundidade, passam cantos de crianças, de bêbados, de coveiros, soam as cozinhas do mundo, transportam os feridos pelo mar, por intermináveis trens, as máquinas de escrever, as prensas, os motores vão se fundindo num crepúsculo de onde o dia vai desaparecendo, como um pequeno ciclista num longo caminho, e não fica senão a noite permanente, as infinitas estrelas, a solidão imensa.”

Respondendo à pergunta, título deste texto: um homem é o produto da vida. E a vida, o que é? A vida é este maravilhoso laboratório, em cujo interior estamos a nos reconstruir a cada instante, reciclando, incansavelmente, o mesmo material que sempre nos pertenceu.