ReLer ITALO CALVINO

ReLer ITALO CALVINO *

A Modernidade revela um mundo sempre sujeito ao fluxo, em que nada é durável. Um mundo em que “tudo que é sólido desmancha no ar” — frase tomada de empréstimo do vocabulário marxista —, para ficarmos com o título de um dos estudos de Marshall Berman (Companhia das Letras, 1986). Nesse sentido, é próprio da Modernidade, regida pelo signo da novidade, expulsar o antigo continuamente.

Nesse caso, a Modernidade define-se, então, pelo distanciamento que toma em relação ao passado. Noutras palavras, pela vontade obsessiva em aprofundar a dicotomia entre o velho e o novo ou entre o antigo e o moderno.

Como tal fato repercute na esfera da literatura?

“O que parece estar em questão é a existência da poesia, esta arte integral da palavra, enquanto força semântica capaz de detonar significados novos, formas novas do ‘dizer’ que interfiram no mundo real procurando despertá-lo de seu automatismo, cada vez mais celerado via tecnologia...” enfatiza Carlos Ávila (1993) ao resenhar a série das Conferências Americanas proferidas pelo escritor cubano-italiano Italo Calvino. E é precisamente, neste ponto, que a nossa questão, no presente ensaio, se instala, ou seja: é possível entender o nosso tempo, lendo os clássicos? Ou indo a níveis que procuram atingir a própria linguagem e parafraseando Calvino: “Por que ler os clássicos em vez de concentrar-se em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?”

Em livro composto de 35 ensaios —o título é “Por que ler os clássicos” (Companhia das Letras, 1993) e, paradoxalmente, veio a tornar-se um clássico sobre a crise da literatura neste final de século XX e início do XXI —, cuja finalidade é reforçar os eixos de referência literários, antigos e modernos, uma, dentro de um elenco de brilhantes respostas aventado pelo escritor e crítico literário Italo Calvino, destaca-se a de que cada sociedade está edificada sobre um poema. Tomemos, como exemplo, a apresentação que Calvino faz da “Odisséia”, de Homero, no ensaio “As Odisséias na Odisséia”. Por conseguinte, pensamos tratar-se, também, de uma pergunta típica do historiador que se permite ir além das limitações impostas pelos cânones da historiografia, na medida em que não exclui a visão literária do seu horizonte histórico. Como bem observa o historiador Paul Veyne (1985): “... em nossos dias, os raros estudiosos que, como Pound, se interessam por um Propércio, fazem-no por razões que são as do nosso século e não pelas da poética antiga...”, com a finalidade de ir mais longe na beleza e na realidade. Neste ponto, conferimos legitimidade ao olhar interdisciplinar do historiador Walter Benjamin que, em suas consagradas teses “Sobre o conceito da história” (1940), concebe a história literária como um momento da história geral ou como uma disciplina histórica. Portanto, é do interior da configuração de uma historiografia, que permite o auxílio da imaginação literária para ampliar a busca da realidade histórica, que devemos lançar as perguntas do nosso tempo para os textos clássicos. Outras finalidades? Não só para anuirmos com Calvino em algumas de suas propostas para a definição da problemática, como, por exemplo, quando o referido escritor afirma, em bom tom, que “Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘Estou relendo...’ e nunca ‘Estou lendo’...”; mas também na tentativa, que isso implica, de recuperar os elementos perdidos ou reprimidos da cultura ocidental; perdas estas, aliás, provocadas pela recusa do passado no contemporâneo. E mais: para entender o nosso tempo, e também para desafiar os discursos predominantes construídos mediante o culto ritualístico do futuro, característica fundamental da nossa mais presente Modernidade. Nesse caso, entendemos, junto a Calvino, que somente a forma poética possui a propriedade de liberar a linguagem, redescobrindo, desse modo, a figura do mundo na dispersão dos fragmentos do passado.

Tomando os antigos gregos como modelo, Cornélio Castoriadis, pensador contemporâneo, no primeiro volume de “As Encruzilhadas do Labirinto” (Paz e Terra, 1987), sublinha: “A Grécia é o ‘locus’ social-histórico onde foram criadas a democracia e a filosofia e onde se encontram, por conseguinte, nossas próprias origens”. No entanto, não seria exato afirmar que os antigos só se preocuparam com a liberdade política, na medida em que eles conheceram, também, a liberdade de ser na política pelo viés da literatura. Com efeito, o mundo grego reconhecia na narrativa mitológica uma força de sabedoria que curava e restaurava os feridos. Os deuses gregos participavam dos destinos da pólis em comunhão com os mortais. Nesse sentido, a razão não eliminava a religião na antiga Grécia. A Antigüidade conheceu tentativas desse tipo. E nós, modernos? Becos sem saída? Ouçamos o que tem a dizer o antigo filósofo grego nas páginas da “Poética”: “Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) — diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.” (Aristóteles).

Do fundo dos tempos até a Modernidade, propõe o escritor Italo Calvino — que manteve a fé na palavra escrita — na introdução das suas fundamentais propostas para os próximos mil anos: “O sinal talvez de que o milênio esteja para findar-se é a freqüência com que nos interrogamos sobre o destino da literatura e do livro na era tecnológica dita pós-industrial (...) Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar...”. Com essa declaração de confiança na poética, e com certa dose de ironia, inicia-se o derradeiro livro de Italo Calvino: “Seis propostas para o próximo milênio” (Companhia das Letras, 1990).

Na primeira conferência, sobre a ‘Leveza’, Calvino argumenta que a leveza é uma conquista. Se tudo no mundo nos leva para baixo, então a leveza é o ato de dizer não ao peso. Noutras palavras, devemos enfrentar o peso com dureza, além de combatê-lo. Na verdade, Calvino, nas páginas deste belo ensaio, procura “aliviar” o verbo, eliminando os acidentes que o obscurecem. Nesta exemplar conferência, Calvino contrapõe a leveza ao peso, ou seja, devemos considerar o mundo sob uma outra ótica, que busque a redescoberta do “dizer”, em oposição ao excesso sígnico da linguagem banalizada do dias atuais, a qual silencia, emudece o poeta. Calvino repõe, belamente, Paul Valéry, nos seguintes termos: “É preciso ser leve como o pássaro, e não como a pluma”. Falando ao homem que virá e também ao homem que é, após preludiar sobre obras de ficção — além da literatura universal, interessa, também, a Calvino: a filosofia, a ciência e a religião — e sobre as qualidades da escritura literária alcançáveis por meio da ‘Rapidez’, da ‘Exatidão’ e da ‘Visibilidade’, prossegue Calvino em sua derradeira conferência, isto é, ‘Multiplicidade’: “No momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo.”

Ao finalizar a série desse autêntico Testamento Literário, ainda na derradeira conferência, ‘Multiplicidade’, Calvino enfatiza que “Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia.”

A sexta conferência que Italo Calvino havia preparado, isto é, ‘Consistência’, não foi completada, pois o escritor foi surpreendido pela morte.

* Trata-se de reedição de texto(de 2000)já editado on-line em site atualmente desativado.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

verão de 2006