Sociedade em Capítulos?

A guerra frenética por minutos de nossa atenção faz com que redes de televisão e, agora, o cinema resolvam olhar para o real não compreendido: Vivemos sob a ditadura caricata da favela!

Crise de criatividade? Até a  Globo rendeu-se a esse argumento assemelhando-se às concorrentes: glamorizar o estado famélico como recurso catártico.

A catarse, nos idos do teatro grego, era o que hoje podemos mal comparar à audiência. Sentimento que invadia a platéia provocando torpor e curiosidade pelo movimento dialógico do enredo.

Antes mesmo de estratégia cênica, uma ferramenta utilizada para compor a identidade ética e moral de seu povo. Entender a tragédia e suas conseqüências era o meio mais eficaz para evitar atitudes desmedidas, a criminalidade, o excesso.

Sob esse pilar nasceu a Sétima Arte. O cinema, e, mais recentemente a teledramaturgia, enquanto produtos culturais de massa, devem inexoravelmente causar surpresa, torpor, medo; fazer tremer os alicerces idiossincráticos de seus espectadores.

A polêmica é calculada, pedagógica, uma forma de fazer a platéia refletir a realidade por determinada ótica de raciocínio. Afinal, todo o tempo, como sabemos, a arte imita a vida e não o contrário.

Similar estratégia utilizada pela Literatura para entreter seus leitores. A verossimilhança, “o ficcional tão detalhadamente descrito como real que ao leitor assim o pareça”, como nos lembra Fernando Pessoa em seus versos autopsicografados: “o poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor... que deveras sente”. Esse estilo foi abusivamente utilizado por romancistas da Escola Romântica, berço das rádio e telenovelas.

A técnica na composição da verossimilhança, sobretudo em roteiros de época adaptados, fez a Rede Globo de Televisão tornar-se a Vênus Platinada: a Maior Contadora de Estórias das Américas e, porque não dizer, do Mundo. Através dela exportamos nossa brejeirice, nossa melodia lingüística, nossa malandragem emergente para os quatro cantos da Terra. Aprimoramos a criação artística de tal forma que refundamos a nação.

Nossas novelas passaram a inaugurar e matar sofrimentos, amores, personagens, arapucas e soluções possíveis para problemas históricos. A teledramaturgia exerce magistralmente o quarto poder, haja vista, contemporaneamente, nossos enredos transformarem-se em projetos de lei envolvendo mudança nos costumes e regras sociais. Invertemos, pois, a ordem natural das coisas: A vida passou a imitar a arte.

Sem dúvida, nosso grande erro. O recurso catártico havia sido corrompido pelo apelo mercadológico, havíamos preferido vender a fantasia e viver a mentira que educar através da cultura. Os enredos ficaram menos ficcionais, a arte passou a representar o real, os personagens mais próximos do homem comum e a população mais ávida pela próxima realidade a ser consumida.

A moral vigente é fracionada em capítulos diários no horário das dezenove horas em diante. O galã das nove já não precisa ser mais tão honesto e ético, afinal, como um cidadão comum agiria daquela forma diante da tragédia cotidiana?

O Entretenimento, esse Império de Sentidos, agora refeniza-nos a uma vida sem significação na qual emoções foram estigmatizadas como comerciais de cigarros ou carros importados adquiridos com uma riqueza de plástico.

Ao apagar das luzes de uma novela, descobrimos que pretos, pobres e nordestinos são culpados pela desigualdade social do Sudeste, a miséria é a mãe da pedofilia e da prostituição; a solução da a segurança está em carros blindados e condomínios com cercas elétricas. Mães e filhas podem ser amigas, confidentes e transarem com o mesmo namorado, pois limite é coisa que causa trauma. Metralhamos nossa consciência. Suicidamos a angústia ingerindo pílulas da felicidade. Outra novela já se inicia como a vida: cíclica.

Somos felizes, afinal!
Arsenia Rodrigues
Enviado por Arsenia Rodrigues em 26/06/2008
Reeditado em 07/07/2008
Código do texto: T1052206
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