Sobre "O veredicto", de Franz Kafka

Nas suas histórias mais conhecidas, uma característica marcante do estilo narrativo de Franz Kafka é a firmeza de sua direção. Concentra-se em ir desenrolando os fatos, numa objetividade concisa que não pretende dar muitas coordenadas ao leitor e que toma como ponto referencial as manifestações externas de personagens que encontram-se muitas vezes imersos num conflito interior, de modo que o plano psicológico é exposto de forma discreta. Em situações que a muitos podem parecer desesperadoras, a expressão do autor tende a simplificar fatos extraordinários, de modo a exercitar o poder de imaginação do leitor, como, por exemplo, nas descrições rápidas da ocorrência de uma morte. Exatamente como nos contos tradicionais, a preocupação principal é narrar, sem espaço para muitas explicações. Mas, no entanto, a sobriedade da linguagem não se cristaliza por completo, deixando expostas, no ar instável, imagens grosseiras nunca revestidas por eufemismo. Pode-se dizer que Kafka fica num meio-termo, não chegando nunca à inquietude do dramalhão, mas mantendo de certa forma o sentimento de humanidade nas margens de sua maneira de relatar.

Com esta compreensão do estilo conciso e objetivo do autor, a dimensão dilemática do conto O veredicto é mais facilmente sentida. A cena clímax envolve uma tensa discussão entre Georg Bendemann e seu pai, e a imparcialidade do narrador, mais interessado em transcrever o calor do embate, acaba por dificultar o veredicto do próprio leitor: o pai profere acusações terríveis e, no entanto, o filho não parece ter sido tão horrivelmente leviano como é apontado. É preciso enxergar os fatos além da superfície, medir por si próprio as palavras proferidas, sem o auxílio do juízo absoluto de um narrador onisciente; usar a reflexão, em suma, tal como na audição de uma seção de tribunal. E isso não demanda um julgamento muito contundente por parte do leitor, pois Kafka critica justamente a prepotência do juízo totalizante e definitivo, sobretudo nas mãos daqueles que se arrogam mais importância por pertencerem a um nível superior de uma hierarquia: neste caso específico, a supremacia paterna.

Georg é, para início de conversa, um jovem ainda inseguro, mas que começa a alcançar certo sucesso em sua vida civil, tanto no empreendimento comercial do seu pai quanto na vida amorosa, na qual concretizou o noivado. Contudo, sente a opressão paterna, que se exercia especialmente antes da morte da mãe, ocorrida dois anos antes da fatídica manhã narrada: "Talvez o pai, enquanto a mãe ainda era viva — por querer deixar valer apenas sua própria opinião na firma —, tivesse impedido uma atuação verdadeira da parte dele; talvez o pai, desde a morte da mãe, embora ainda continuasse a trabalhar na firma, tivesse se tornado mais reservado; (...) em todo caso, no entanto, a firma havia progredido muito, e de um modo totalmente inesperado, nos dois últimos anos; (...) e sem dúvida estavam diante de um progresso ainda maior" (tradução de Marcelo Backes). Essencial notar como o filho — somente quando consegue se libertar parcialmente do peso do pai — chega finalmente, então, à plena liberação de sua força natural e, mais ainda do que isto, supera os sucessos do próprio pai na firma.

A outra figura chave do conto é o amigo de Georg, não nomeado, que imigrara havia alguns anos para a Rússia em busca de melhores oportunidades. Ocupara-se no gerenciamento de uma firma em São Petersburgo, mas os negócios acabaram por declinar e ele teve de se ver lançado à miséria. Além disso, não logrou estabelecer uma verdadeira ligação na colônia de seus compatriotas e quase nenhum contato com as famílias nativas, de modo que se via fadado ao celibato. Encontra-se, portanto, numa situação radicalmente oposta à de Georg, que hesita em escrever-lhe francamente, receando despertar no amigo sentimentos de fracasso e inveja e mantendo, assim, uma relação superficial. Tal como os outros heróis das histórias de Kafka, Georg dá de cara com o absurdo de sua situação como com um espelho que reflete a superficialidade de uma vida sem grandes vínculos profundos e harmoniosos. A própria relação com a noiva é desigual: a carta destinada ao amigo — escrita naquela manhã para ser exposta à opinião do pai — é resultado da vontade intransigente dela de colocar todo o mundo a par de suas futuras núpcias, sobrepujando a discrição do noivo.

O crítico Marcelo Backes assinala: “O amigo é o passado de Georg, seu eu artístico, seu parentesco com o próprio autor. O amigo é o ideal kafkiano do celibato, a única condição que permite uma vida intensa de artista e que estava a perigo na própria vida do autor desde que conhecera Felice (Bauer)”. Esta afirmação é importante, embora esquemática. De fato, a vida de Georg, bem-sucedida nas aparências e no ponto de vista do que espera a sociedade, sustenta um bocado indubitável de hipocrisia. Entretanto, o amigo é também um homem de negócios, que partira para o exterior com sólidas ambições financeiras. Se, portanto, esta exaltada situação de celibato não fora objeto de sua vontade, restaria a imagem do artista como um frustrado, tendo sua vocação nascida não de sua inspiração, mas da desilusão da vida prática. No conto, o ascetismo do amigo aparece como uma condição forçada, sendo assim desmitificada. E para reforçar esta idéia, pode-se tomar a figura do jejuador no conto O artista da fome, no que ele diz: “(...) eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode acreditar, não teria feito nenhum alarde e teria me empanturrado como você e todo mundo.”

Na verdade, a reação que Georg teme de seu amigo acaba se concretizando na boca do pai, que, em meio a um diálogo sereno, subitamente se levanta contra o filho no ponto alto da história, julgando que este o abandonou — como a seu amigo e mesmo a mãe — em favor do seu orgulho. De fato, o pai tem sua saúde bastante debilitada e usa roupas sujas, apontando para um desleixo do filho em enxergar sua má condição. Curiosamente, sua fraqueza não transparece diante de Georg: o pai mostra-se forte e gigante. Assim, o elemento que une o amigo e o pai é o ressentimento. O pai de Georg chegou a uma idade em que vê seu império ruir, pois, como comerciante, sua vida anterior decerto fora mais ou menos como a do filho, que agora o ultrapassou nos sucessos dos negócios. Nada mais natural, então, que culpar Georg por sua própria decadência, anunciada com a morte da esposa. E daí pode-se tirar diversas analogias para outras esferas do julgamento opressivo, o maior tema da obra de Kafka. Este conto, escrito antes de todas suas obras principais, fornece, graças à sua grande força sintética, uma luz para o entendimento das imagens, idéias e vida do autor.

wsdafae
Enviado por wsdafae em 29/06/2008
Reeditado em 04/03/2009
Código do texto: T1057182