Criança, polícia e sociedade: a que ponto chegamos...

No dia 07 de julho de 2008, durante uma perseguição espetacular da Polícia Militar do Rio de Janeiro, uma senhora, mãe de duas crianças encostou o seu Palio Weekend para que a polícia militar pudesse prosseguir a perseguição. Ela tinha acabado de pedir ao seu filho para se abaixar. Em instantes, muitos tiros ela ouviu. Acordada pelo pavor, pode perceber que o seu carro fora literalmente metralhado por mais de 15 tiros.

A atabalhoada ação policial resultou na morte do pequeno garoto de 3 anos, João Roberto Amaral que estava no carro com seu irmão, milagrosamente salvo por Deus. A desculpa, sempre existe uma, é que dois policiais “confundiram” o Palio Weekend - com duas crianças e uma mulher no volante - com o carro dos recalcitrantes em fuga. A confusão foi o bastante para os policiais militares descarregarem sobre a mãe e as duas crianças as armas que tinham em punho. Há dias, tanto o pai como a mãe, tem lamentado o corrido e pedido justiça para o caso. É no mínimo lamentável o ocorrido, mas ele tem que ser sempre lembrado e, no caso em tela, destaco três questões relacionadas ao triste episódio.

Em primeiro, ficou clara o abuso, a discricionariedade imbecil e o despreparo da polícia militar do Rio de Janeiro, a qual, guardadas as devidas proporções, é o espelho das outras polícias no Brasil. O uso da força letal não é para qualquer instituição e não é por acaso que ela é delegada ao Estado de Direito que, por consenso possui o uso legítimo da violência. Esta questão é fato, mas fugir deste enredo para ações nas quais pode-se “abrir fogo” em qualquer momento é outra história. É de causar ojeriza a defesa intransigente de muitas autoridades que desejam armar a polícia com armamentos pesados para que eles possam lutar contra o inimigo do tráfico. Pensemos bem, numa destas, um policial, mal remunerado, que vive a maior parte do tempo perto da impunidade e da corrupção, sedento de sangue e “justiça”, o que ele não vai fazer diante de um automóvel ou um ser humano considerado “suspeito”? O caso do belo garoto João Roberto Amaral - de 3 anos - é lapidar. Revela uma polícia mais do que despreparada, fora de controle e histriônica. Mostra uma polícia caçadora e carente de técnicas e limites próprios da profissão. Esta conjuntura se arrasta há anos e, com possibilidades de exagero, ela tem por conivente o próprio Estado.

A segunda questão, inevitavelmente, aponta para a necessária e obrigatória responsabilização dos agentes. É bom e salutar o secretário estadual de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, pedir desculpas e se lamentar pelo ocorrido. O mesmo espero do Governador do Rio, Sérgio Cabral (PMDB). Contudo, o próprio secretário chamou de “desastrosa” a ação dos policiais militares e tem a ciência de que pedir desculpas é pouco para sossegar o espírito arregaçado do pai e o coração dilacerado da mãe. Realmente foi uma fatalidade, mas o que o secretário não revela é que os policiais, obviamente retirando os corruptos, não podem atuar à deriva. Constitucionalmente, cumpre à Polícia Militar as ações ostensivas de garantia de segurança e paz social. Sabemos que se trata de uma instituição alicerçada na hierarquia e na disciplina, logo, são inaceitáveis tais ações. Curioso, mas há muito, inclusive no Rio de Janeiro, os Estados vem recebendo verbas e mais verbas para a implantação do policiamento comunitário e treinamentos em avançadas técnicas de abordagem policial. Logo, dizer que a política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro é assentada no famoso “atirar primeiro e perguntar depois”, é pouco. A ação dos dois PMs é o reflexo da macroestrutura governamental, onde se percebe as diretrizes voltadas à intensificação da "violência legítima" contra os menos desfavorecidos e ai daqueles que, por coincidência, estacionarem seus automóveis ou mesmo parar em frente dos suspeitos.

Por último, convém ressaltar que algo deve ser feito, há anos a segurança pública tornou-se problema neste país. No final dos anos 90 e início da década seguinte, aparentemente, as taxas de criminalidade abaixaram conforme os interesses e projetos das autoridades políticas. A partir do momento que este problema se revigorou com a roupagem da política, não há dúvida que, em qualquer momento ele pode surgir. O assassinato de João Roberto Amaral é um caso exemplar disso. O Estado é fraco no campo social e se fortalece rapidamente no campo policial, a ponto da polícia se tornar um “tema” de envergadura nacional. De tudo isto, resta a certeza de que a responsabilidade é estatal. Em outras palavras, ela é dos agentes políticos tomadores de decisão e, por ressonância, dos seus subordinados. João Roberto Amaral, de três anos, não pode ter morrido em vão. Sua morte vem a se somar a uma estatística séria de letalidade oriunda das instituições coercitivas do Estado. Se uma criança é entendida somente como um ponto nas estatísticas criminais é sinal de que algo na sociedade não vai bem, a começar pelas autoridades, cuja função primordial é o controle e a manutenção da harmonia social.

Estes são os pontos que gostaria de ressaltar. Obviamente, encontraremos outros e eles não deixam de mostrar a mesma face suja e hipócrita do Estado. É necessário mudar a polícia, apostar na criatividade, mudar o perfil da política no campo da segurança pública e, no limite, modificar o perfil de Estado que se desenvolve distante do olhar do senso comum. Dentre tantas mudanças possíveis, vou me silenciar e deixar espaço para o lamento do pai do pequenino João: “Tiraram a vida de um inocente. A sociedade tem que gritar, não é a punição que vai dar o conforto de ver dois bichos presos. A proposta é de as pessoas poderem sair de suas casas. As pessoas vivem presas com medo de balas perdidas. As crianças não brincam mais nas ruas, nos parques. Eu, com cinco anos, comprava pão pra minha mãe. A gente não tem mais isso. Acabou nossa liberdade. Tem que ser mudado. A gente vê o preparo da polícia. Eu vi na TV, o preparo dos policiais. Teve um que teve a coragem de falar que o primeiro tiro que deu foi numa incursão na favela. Meu filho não pode ter morrido em vão. Tem que ter mudança nesse sistema. Cabe ao governador e ao presidente trazerem o melhor pra gente".