Polícia em necrose

Mais dois acontecimentos envolveram diretamente a ação histriônica da polícia. E como falar em polícia é falar de Estado, é sempre bom deixar na memória dos leitores os acontecimentos, sabendo de início que é cultural em solo brasileiro, o esquecimento.

O primeiro caso foi o da jovem Rafaele Ramos Lima, 20 anos. Ela foi morta durante uma desastrosa e inconseqüente ação policial no município de Porto Amazonas no Estado do Paraná. Na madrugada do dia 13 de julho, a jovem teve a infelicidade de estar no interior de um automóvel confundido por policiais militares. A questão era simples: a Polícia Militar do Paraná, em uma atividade espetacular, estava no encalço de um Celta ou de um Palio preto que havia passado por três bloqueios feitos em cidades próximas daquela na qual Rafaele estava. Os “fugitivos” foram confundidos assim que um Gol colidiu com a viatura. A PM, treinada em tiros, não pensou outra coisa senão a de alvejar o automóvel que poderia pertencer aos recalcitrantes. Bons de pontaria, a PM não deixaria de acertar a cabeça de Rafaele.

O outro caso, que teve maior ressonância no cenário midiático, ocorreu no dia 14 de julho no Rio de Janeiro. O administrador Luiz Carlos Soares da Costa, 36 anos, tornou-se refém de um seqüestrador. No próprio carro, logo ele se transformou em “suspeito” ou em cúmplice, porque não havia outro motivo para que - depois de uma acalorada e espetacular perseguição - a Polícia Militar alvejasse o seu automóvel com cerca de 10 tiros. A PM simplesmente achou que se tratava de bandidos fortemente armados. O caso foi ostensivamente mostrado na TV, os policiais militares literalmente modificaram a cena do crime, tiraram - tal como sacos de mandiocas - os corpos e jogaram dentro de uma ambulância antes de seguir com a viatura. Não vou entrar em detalhes em respeito aos familiares, pois as imagens mostraram mais do que deviam, inclusive, a retirada do corpo de Luiz, o qual até aquele momento ainda parecia se tratar de um “suspeito” - creio que até mesmo pelo SBT - rede de TV, a qual, não sei o por que, estava muito bem localizada na cena.

Dois casos e uma questão novamente levantada por todos: o treinamento e a necessidade de uma “nova polícia”. Autoridades no assunto, políticos, administradores de polícia, defensores e não defensores dos direitos humanos, por incrível que possa parecer, assumiram o mesmo discurso: a nossa polícia além de despreparada é mal treinada, não ganha bem e está acostumada a combater a criminalidade no varejo, aquela do roubo da galinha, do assalto à mão armada ou desarmada e da mulher que troca tapas com o marido. Talvez, mais que isso, é a polícia que atua em prol da seleção social, própria de uma sociedade elitizada, hierárquica e para poucos. Os fregueses da polícia, na maioria das vezes, são os mesmos: negros, pobres, jovens e a população que pareça de alguma forma estar em atitude suspeita.

Esta é a verborragia nacional que, em larga medida, não está de todo errada. Mas é curioso o silêncio em torno dos grandes investimentos e mudanças institucionais que as autoridades disseram ter feito no Brasil a partir dos anos 90. Em meio às atrocidades cometidas pela PM e pela PC, é possível supor de duas, uma: 1) ou os investimentos não chegaram, e, se chegaram foram mal utilizados ou 2) as mudanças porque passou o campo da segurança pública no Brasil foram de pouca ou reduzida serventia, sendo mais um golpe de marketing no campo da política e maiores privilégios para aqueles responsáveis e, necessariamente, responsabilizáveis pelo uso legítimo da violência.

Não vou me alongar por aqui, mas é sabido que já no Governo Fernando Henrique Cardoso foi levado a efeito o Decreto de 01/06/1999 que criou o Fórum Nacional dos Ouvidores de Polícia. Muitos estados aderiram a idéia; outros deram de costas. A iniciativa não deixou de ser um passo importante para a responsabilização e controle das agências policiais. No entanto, o funcionamento efetivo deste órgão é outra questão a ser pensada, pois, como se sabe, é pouco o poder que ele possui e está longe o dia em que deixará de ser usado como moeda política e corporativismo das autoridades políticas e policiais.

O mesmo governo FHC, na esteira de importantes intelectuais da USP (Universidade de São Paulo) publicou e levou a efeito em 2000, o Plano Nacional de Segurança Pública. Para os que se derem o trabalho de ler o documento, verão que trata-se uma ótima peça acadêmica e, caso fosse realmente levada a efeito (pelo menos a metade do que está escrito), a polícia não estaria da forma tal como se apresenta.

Seguindo as mudanças, é de crucial importância a Lei nº 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, a qual instituiu o Fundo Nacional de Segurança Pública, o famigerado fundo de investimentos que, em muitas metrópoles brasileiras, foi utilizado para cursos, compra de viaturas e equipamentos para as forças coercitivas do Estado.

Na esteira do FNSP, o governo ainda criou a Força Nacional de Segurança Pública, atualmente com cerca de 7 mil policiais militares e bombeiros. Ela foi criada em agosto de 2004 no intuito de dar suporte às polícias dos estados em tempos de crise. É composta por policiais de todos os Estados e, vale dizer, nada mais foi que uma resposta governamental às greves dos policiais militares que se abriram pelo país no final dos anos 90.

O governo Lula, acostumado a envernizar políticas prontas, lançou o Pronasci (Programam Nacional de Segurança Pública com Cidadania). Este projeto é interessante, pelo menos em tese, pois fala em “repressão qualificada”, controle da criminalidade e, sem exageros, “articulação entre União, estados e municípios para o combate ao crime”. Deste programa, creio que os governos estaduais pouco podem reclamar no que se refere a treinamentos. Nunca tivemos tantos policiais “em treinamentos”, “em formação”, “treinados” ou “formados”. Alguns, em técnicas de abordagem (inclusive, no exterior), “combate ao crime organizado” ou mesmo atuação em zonas quentes de criminalidade; outros apostaram em estudos estatísticos, dados geoprocessados, aprenderam as teorias da criminologia e se entupiram de cursos de pós-graduação e, atualmente, só podem estar fingindo que estão adaptados e entrosados com as novas mudanças organizacionais e institucionais dos programas estatais.

Obviamente, uma polícia com tantos cursos e treinamentos, bancados pelo erário público, não pode sair por aí matando inocentes ou mesmo deixando a criminalidade sair do controle. O paradoxo é evidente: falar em falta de recursos, treinamento e despreparado policial é o mesmo que dizer que nada se fez até o momento. E mais curioso ainda, autoridades no assunto, políticos e administradores de polícia que viveram e vivem o cotidiano da segurança pública novamente estão atirando no mesmo alvo, sem perceber que estão apontando para o próprio pé. É fato que mudanças ocorreram. Em alguns estados, pelos menos na aparência, a PM está trabalhando em conjunto com a PC. Em outros, sabemos da implantação da filosofia do policiamento comunitário, da criação de pelotões especiais e da emergência de um imaginário social no qual a polícia é da população e não do Estado. É neste campo que se torna revoltante os acontecimentos como o de Rafaele, haja vista que o governo não se cansa de mencionar que os recursos foram fartamente repassados aos estados. O que estão fazendo com eles é que parece ser o problema. Se pouco foi o efeito dos recursos e do trabalho na mudança das mentalidades, é melhor esquecer o campo da segurança pública como prioridade e deixar o estado hobbesiano fazer o seu próprio ninho. O que não dá para suportar é o gasto exacerbado por parte do Estado sem nenhuma garantia de que as coisas estejam realmente melhorando. Um ponto que revela mais do que o mal-estar da população e dos estudiosos são os poucos dados disponíveis (confiáveis e não manipuláveis) referentes à segurança pública no Brasil. Estamos lidando com instituições sem controle, que vivem dos nossos impostos, mas não mostram porque existem e qual é o sentido e continuidade de sua existência. Tudo indica ser de pouca validade mais e mais cursos para “preparar” policiais que, há anos, preferem a prática. Também não compensa “formar” policiais que deixarão a organização após alguns anos. O problema “polícia”, na realidade, encontra-se em proporções incomensuráveis, a ponto de respeitados intelectuais falarem que acabaremos acreditando mais nos bandidos do que na polícia.

O problema é complexo, mas sempre o foi. O senso comum é que está distante dos acontecimentos. Policiais há muito matam nas favelas e nos morros e, “destreinados” têm deixado rastro na classe média. Não é por acaso que somente nos últimos anos a coisa tem ficado feia. A criminalidade e a violência, tal como o país, vem se democratizando, mas outras forças institucionais não estão seguindo o mesmo caminho. A polícia sofre de uma necrose e merece rapidamente um forte tratamento. Falem o que quiser, mas ainda (e por natureza no caso brasileiro) é a polícia a primeira - e talvez a única - instituição que passa na cabeça dos cidadãos em momentos de conflito, crise ou desorientação. Não podemos deixar essa polícia matar, todavia, também é importante não deixá-la morrer.