“Fé cega, faca amolada”

Desde a primeira vez que ouvi a música “Fé cega, faca amolada”, no início da adolescência, não consegui entender bem o que quiseram dizer Milton Nascimento e Ronaldo Bastos com esse título. Mesmo hoje não vejo uma relação direta entre ele e a letra, a não ser na sugestão de que o “brilho cego de paixão e fé” seja como uma faca amolada.

O que me motivou a dar o mesmo título a esta crônica foi uma das muitas correntes que circulam pela internet ou de mão em mão em sua forma impressa ou manuscrita. Uma, que me chegou às mãos recentemente, despertou a minha curiosidade por ter se espalhado da forma mais antiga e convencional: manuscrita de maneira rude, “xerocada” e espalhada provavelmente por quem a copiou.

Em um pedaço de folha de caderno estava escrito o seguinte (já corrigidos os vários erros ortográficos): “Nossa Senhora Aparecida te escolheu. Quem encontrar esta corrente terá que fazer 4 cópias e terá tudo que pedir a Nossa Senhora Aparecida. Tenha fé. Um representante precisava de 30 mil reais, e logo conseguiu em menos de 60 dias. Um dono de supermercado, por não acreditar, quebrou a corrente e logo perdeu sua filha. Não duvide desta corrente; faça 4 cópias todos os dias durante 60 dias! Jogue nas ruas, calçadas e orelhões. A original, guarde na sua carteira ou bolsa; reze um Pai Nosso, uma Ave Maria, uma Santa Maria, um sinal da cruz.”

As pessoas não só acreditam nessas correntes, como as copiam e levam a sério todas as suas etapas (até mesmo aquela antiecológica de jogar cópias em ruas e calçadas). Tudo certo em existirem correntes de fé, já que existem outras manifestações dela ainda mais intrigantes, como as romarias e promessas pagas com sacrifícios físicos. As pessoas se impõem imolações de toda ordem, acreditando que castigar o corpo é sinônimo de libertação para o espírito. O que intriga nesse tipo de corrente é alguém crer que Deus ou os santos – que são referências de amor, bondade e misericórdia – são capazes de impor algum castigo aos seres humanos.

Dizer que um dono de supermercado perdeu sua filha porque quebrou uma corrente é o mesmo que atestar que ele foi amaldiçoado. Este é um exemplo claro de contradição no pensamento de certas pessoas que se dizem de fé – sejam elas católicas, protestantes ou de qualquer outra linha religiosa.

O princípio da punição divina sempre esteve presente na história das religiões, desde que elas passaram a fazer parte do contexto social da humanidade. Deus pune os ímpios e presenteia os crentes. Por essa lógica, crer em Deus (de preferência através desta ou daquela religião) é se livrar de punições e obter recompensas.

Penso que essa visão tirânica de Deus seja oriunda da compreensão que os próprios seres humanos têm de si próprios. As noções de vingança, de ira, de perversidade são humanas, não divinas. Só uma mente doentia para criar a expressão “guerra santa” ou para usar fundamentos religiosos ou espirituais como desculpas para massacrar seus semelhantes.

A fé cega é, sim, uma faca amolada, pronta para cortar. Em nome dessa fé houve na Idade Média uma intensa caça às bruxas e uma verdadeira carnificina aos considerados hereges. Em nome deste mesmo tipo de fé homens-bombas espalham ódio e terror nos quatro cantos do planeta.

A fé mais profunda pode até se dar por intermédio das religiões – que nada mais são do que meios, instrumentos, mas não precisa delas para existir. Uma conversa com Deus começa no sentimento puro de amor a Ele, a si mesmo e ao próximo; continua no pensamento voltado para materializar o que advém deste amor; e termina na paz interior que se sente após tê-lo praticado.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 15/08/2008
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