A ditadura militar brasileira e a abertura dos arquivos secretos

Não precisamos de heróis nem de vítimas. Precisamos estrangular o conservadorismo

No último dia 13 de agosto, fez 41 anos que foi iniciada a construção do Muro de Berlim. Mas, que importa isso? Não é desse muro que eu quero falar. É de um outro muro, invisível, embora não menos denso. O muro do silêncio que alguns insistem em conservar no Brasil.

Tenho lido de tudo que se possa imaginar na imprensa e também nos comentários do blog Acerto de Contas (www.acertodecontas.blog.br), sobre a Lei de Anistia e sobre os arquivos da ditadura militar. A impressão (cada vez mais intensa) que tenho é a de que realmente existem indivíduos que não têm a menor noção do que significa o Direito à informação e à verdade. E, para além do aspecto jurídico, não fazem a menor idéia da necessidade do conhecimento histórico para a vida prática - senão como ferramenta para que as forças conservadoras mantenham o status quo vigente.

Para alguns, como parece ser a visão do nosso Presidente Luís Inácio Lula da Silva, a história deveria ser apenas um livreco de fábulas para se cultuar heróis. As declarações dadas ontem pelo presidente me deixaram realmente insatisfeito. Em uma de suas frases, disse que “Esse martírio nunca vai acabar se a gente não aprender a transformar os nossos mortos em heróis, não em vítimas.”

Sinto que o Presidente não apenas está equivocado, como também demonstra uma ingenuidade tamanha, que me causa assombro. A história não precisa de heróis, nem de mitos. Destruí-los é uma das funções dos estudos históricos. “We don’t need another hero”, dizia Tina Turner, na trilha de Mad Max. Sim, não precisamos de outro herói, nem muito menos de vítimas. Precisamos é dar vazão aos movimentos da história, para que não fiquemos paralíticos dentro de uma bolha de alienação e apatia.

Precisamos de acesso. Acesso às informações documentais. Precisamos quebrar o sigilo dos arquivos do período militar. Para quê? Para erguer templos e estátuas para os nossos pseudoheróis revolucionários? Não. O acesso aos arquivos sigilosos tampouco servirá como aporte para punição dos torturadores do Estado, ainda que a prescrição dos crimes possa vir a ser contornada juridicamente. O que está em jogo é o direito à informação e à verdade; o que está em jogo é a paralisia ou o movimento do processo histórico.

Há quem pense também que é “hora de virar a página” (como o cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Odilo Scherer), mas, esquece-se que uma página não pode ser simplesmente virada, nem quando estiver esclarecida (o que está longe de ser o caso do período militar), pois cada geração tem o direito e o dever de reinterpretar o passado, à luz de suas novas perspectivas, exigências e complexidades.

A verdade não paira no ar, nem muito menos os documentos falam sozinhos. É papel dos historiadores e cientistas sociais realizarem pesquisas e dar voz aos documentos.

Mas, que voz será dada a um objeto que não se tem em mãos? Nenhuma. Permanecerá o silêncio. E, esse parece ser o desejo de muitos. Pois, quando as coisas indicam destinos perigosos, as forças conservadoras sempre saem de suas malocas para entrarem em ação.

E, a história é processo. É movimento. É mudança - embora também permanências. E, tal movimento de suas placas tectônicas é imprescindível. A memória ocupa, aqui, lugar de destaque, pois um povo sem memória é um povo idiotizado.

É contra essa idiotia que nós historiadores e cientistas sociais buscamos como objetivo de luta contra o silêncio. E, penso que essa luta não deve ser apenas abraçada pelos tecnólogos do conhecimento, mas por toda a sociedade brasileira.

Esse momento em que estamos, no qual os ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) polemizam sobre a Lei de Anistia, não poderia ser mais oportuno para a retomada ainda mais incisiva das reivindicações pela abertura total dos arquivos sigilosos da ditadura militar.

Polêmicas à parte, o que buscamos é um direito fundamental de toda sociedade brasileira (pois os ministros devem passar, mas o passado não: este deve estar em constante movimento, por paradoxal que pareça essa assertiva). O discurso de que se está criando uma “instabilidade política” no país não passa de engodo para os arautos do silêncio manterem o status quo em voga. Se se está criando uma instabilidade, que ela seja tão visceral a ponto de provocar uma ruptura na ordem estabelecida.

Essas polêmicas em torno da Lei de Anistia (que alguns chamam de “factóide”) é o primeiro momento desde o fim daquele regime em que se tornam de fato mais fortes e necesserárias as reivindicações pela abertura dos arquivos.

Os pensamentos conservadores sem dúvida estão operando nesse momento. Mas, é preciso que os pensamentos de ruptura também entrem nesse campo minado. Pois se eles querem o silêncio e o sossego, digo que precisamos é de conflitos e de polêmicas - negá-las é compactuar com a idiotia que essas forças conservadoras pretendem manter.

Se existe uma utilidade prática da História para a vida, que ela não seja útil para os manipuladores de pensamento; que seja útil para a destruição de heroísmos; que cause rupturas e reescrituras; que revire os escombros do passado, escovando a história a contrapelo e dando plena capacidade de reconstruí-la a partir de seus cacos.

Não precisamos de muros de nenhuma sorte: nem de concreto nem de silêncio. Há que se destruir tanto os heróis quanto os muros. De outra forma, não haverá estado de direito democrático que se sustente.

André Raboni
Enviado por André Raboni em 27/08/2008
Reeditado em 27/08/2008
Código do texto: T1149227
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