O estranhíssimo e dificílimo labor de sermos coerentes

Por José Manuel Barbosa

Concordaremos o leitor e eu em que a cultura é um bem precioso e prezado que numha sociedade civilizada devemos gerir com arrumo, respeito e cuidado, e concordaremos em que a cultura é a minifestaçom humana de aquilo que fai que o homem se diferencie dos animais, quer dizer, a manifestaçom da inteligência. Seguramente também estaremos de acordo em que aquelas pessoas que se chamam artistas, que cultivam qualquer aspecto da arte, poderám ser consideradas cultas, e que a cultura dum país surge da criaçom popular mas enobrece-se, refina-se e enriquece-se com o trabalho intelectual do que nom todo o mundo participa por razons mui mundanárias; já o diziam os latinos “primum vivere, deinde filosofare”. Em fim, nem todo o mundo pode, nem todo o mundo quer. Darám-me provavelmente a razom se suponho que um pintor instruído nas belas artes tem o dever moral, como pessoa culta que é, de conhecer certos aspectos básicos da literatura, como o literato de conhecer as manifestaçons mais salientáveis da pintura ou do conhecimento científico. Da mesma forma dou por suposto que um músico, cultor da música galega, e portanto, por definiçom, galeguista, tem o dever de conhecer certos aspectos básicos da cultura da nossa terra, úteis para o seu trabalho, como por exemplo a língua na que tem de criar, para além de certos aspectos formais com os quais apresentar-se em público. [+...]

Bom, pois foi o passado dia 29 de Agosto num concerto de Luar na Lubre em Barbadás, concelho vizinho do de Ourense, onde ouvim cantar num galego “a-normal”, quer dizer, etimologicamente sem norma, onde se cantou umha cançom dedicada ao Berzo, concretamente aos Ancares em espanhol -suponho que por respeito a umha terra que legalmente nom é Galiza-, e onde se representou umha cançom de Afonso o Sábio apresentado como “Rei da Espanha”.

Nom nos confundamos, nom pretendo ir de radicalóide e intolerante, nom. Vamos deixar dito que podo compreender e mesmo aceitar -embora nom partilhar- toda a legalidade vigente em matéria lingüística e histórica, mas nom podo partilhar o facto de um grupo musical que vende cultura, usar um veículo de comunicaçom e criaçom como é a língua dos galegos sem qualquer norma. Acho que as pessoas ilustradas, as pessoas cultas -e incluo por razons óbvias aos músicos de Luar na Lubre nessa definiçom-, devem sachar na leira da língua para que esta dê as suas flores que é do que se trata como parte das suas obrigas profissionais, e nom estou arrimando a sardinha à minha brasa, nom estou a insinuar que tenham de usar A MINHA NORMA, estou reclamando que usem umha, algumha norma –embora me parabenize e os parabenize se é na norma reintegracionista-, da mesma forma que usárom um espanhol totalmente acadêmico quando cantárom nessa também extensa e prestigiosa língua, e nom na variante dialectal de Ribera de las Hurdes, com todo o meu respeito para essa variante popular. É o dever do grupo musical apresentar um mínimo de cultivo na língua, estám cara o público e som “cultores” nom só da música, mas também da língua ou das línguas nas que escrevem as suas cançons, a nom ser que só se dedicarem à música instrumental.

Por outra parte, também nom vou dizer que tenham a obriga de cantar em galego a umha comarca como o Berzo que embora administrativamente nom-galega, tem como umha das suas línguas naturais a língua de Rosalia e Camões, falada justamente nos Ancares que é a zona concreta do Berzo à qual dedicavam as suas letras com todo o amor e toda a sua arte musical que ainda é muita. Vamos aguardar com boa fe a algum artista de Astorga, ou de Leom, ou Samora, ou de Ovedo, que cantem em galego às regions ou comarcas e ao público das zonas limitrofes por respeito a aqueles asturianos, leoneses ou samoranos que do Návia, do Cua ou da Seabra para cá falam a nossa língua. Pode ser que algumha vez vejamos a essas pessoas assumirem a responsabilidade de luitar, trabalhar e viver para dar-lhe luz, culto, uso e dignidade a umha língua que nom é a deles, mas vamos aguardar, melhor sentados porque temos mui boa fé, embora também podemos aguardar que isso o cheguem a fazer os próprios músicos do grupo aos quais o seu compromisso com a cultura do país lho reclama directamente.

Aliás, nom quero acabar este artigo sem deixar de afirmar que ninguém tem a obriga de sabê-lo todo, nem ninguém tem de saber que Afonso o Sábio nom era rei da Espanha, entre outras cousas, porque a Espanha como reino ainda estava um pouco longe de existir como tal. O Rei Sábio era apenas rei de Toledo e Castela que era todo um, e de Galiza e Leom que também era todo um, mas também nom vamos exigir-lhes a exactidom e a meticulosidade do sério professor que exige dos seus alunos um mínimo de rigor e zelo, nom, também nom, chegava com que digessem simplesmente que era Rei de Galiza. Se isso digerem nom contavam nengumha mentira, embora fosse rei legítimo de outros territórios peninsulares, estariam dando umha boa imagem de pessoas ilustradas e dignas, cultoras das artes e das letras e comprometidas com a cultura, e com a cultura deste país, em fim, de galeguistas de pró.

Jomaba
Enviado por Jomaba em 29/08/2008
Código do texto: T1151620