O Compromisso Do Poeta

O COMPROMISSO DO POETA

Pouco importa o que dizem os doutores, os formadores de opinião, os chefes das escolas literárias, a mídia: o único compromisso do artista é consigo mesmo, com a beleza, e com a sua verdade.

O resto é decorrência, importa, tem sentido, mas não é essência.

Os doutrinadores se realizam definindo, delimitando os horizontes, impondo regras. É válido, uma vez que toda arte se relaciona com um espaço e um tempo, diria melhor, talvez, com o espaço-tempo, porque o artista vê numa dimensão que os simples mortais não vêem.

Esta é uma regra geral, aplica-se a todas as artes.

Mas vamos considerar prioritariamente a literatura, que é o campo de nosso interesse. Afinal, estamos no Recanto das Letras.

Muitos consideram que a missão do artista exige um comprometimento. O escritor seria, antes de tudo, um agente de transformação. Se assim não fosse, para que seria útil o escritor? O escritor, em princípio, deve sempre estar na vanguarda, na ponta da flecha do tempo.

Segundo este ponto de vista, caberia ao escritor transformar sonhos em realidades.

Isto tudo é muito bonito e correto e realmente pode ocorrer e diria mesmo que é necessário. Grandes escritores eram e são comprometidos com as idéias de seu tempo e alguns, mais raros, lançam idéias novas, que vão além do seu tempo. Henri Thoreau, o rude e bucólico escritor que se isolava numa cabana às margens do lago Walden, na Virginía, para criar seus textos admiráveis, lançou a idéia da desobediência civil, totalmente inusitada à época, mas muito bem aplicada por Ghandi, na sua luta contra o Império Britânico. Poderia citar ainda, como exemplo, as obras de Tolstoi, Victor Hugo, Ernest Hemingway, Jean Genet e entre nós, particularmente, Jorge Amado. Cada um a seu modo, naturalmente. No entanto, não diria o mesmo de Dostoiesky e de Hermann Melville, cujos focos foram a existência do mal, no caso do primeiro, e da luta entre o Bem e o Mal, no caso do segundo. É evidente que estes exemplos são arbitrários e limitados, pois não se pode definir em duas ou três palavras a obra de um autor. É claro que tudo é bem mais complicado do que isto.

De um modo geral, os escritores são rebeldes e livres atiradores.

Um escritor não pode ser entendido fora do contesto em que viveu, e querendo ou não, atua no seu tempo, mesmo que seja à revelia de sua visão do mundo. Mas isso é uma verdade comum a todos os artistas, e mesmo a todos nós – escritores ou não - e por isto é pobre o seu significado. Só o louco vive fora do seu contexto.

Também é bastante inócuo dizer-se que alguém vive alheio a qualquer comprometimento, porque o fato de não se comprometer já é um comprometimento. Ainda que apenas consigo mesmo.

O que importa já foi dito acima: o artista vive numa dimensão diversa.

E cada um no seu universo próprio.

Há no ato de criação uma projeção do que há de mais profundo no ser do criador. Tudo o que ele diz está impregnado dele. Por mais objetivo que queira ser. O estilo é próprio, a concepção da obra é própria, a ordem interna da obra é própria, a perspectiva é própria, as ilações são próprias, os personagens são próprios.

Como penetrar no mundo interior do escritor? Para quem tem olhos para ver, pelos seus escritos.Neles as palavras são como que impressões digitais da alma. Nelas estão não só uma concepção da vida, do homem e do mundo, mas um sentimento do mundo.

O escritor pode se distanciar dos seus escritos de um modo tal que nada haja dele no que escreveu? Diria que num plano sim e noutro não – e que estes planos se comunicam através de uma linha sinuosa e oculta. Esta linha invisível e imperceptível é a ponte que vai do inconsciente inconsistente e anárquico para o consciente consistente organizado, nutrindo-o, em níveis e formas diversas, com o que chamamos de razão, o que dá ordem e forma à criação ou inspiração.

A criação artística é sempre uma racionalização. Ela se concretiza neste nível.

Entendo que no ato de criação artística em geral sempre se coloca a velha questão da substância e da forma. A substância vai se elaborando num processo que se traduz na matéria do escrito, ou seja, na projeção de algo de profundo que foi captado em seu interior pelo artista. A forma lhe dá a expressão adequada, o necessário brilho, o elemento de comunicação. Se a substância pode emergir na mente de qualquer pessoa que se dê ao trabalho de atentar para as suas vozes interiores, a forma é essencial para a sua caracterização como arte e é um privilégio do artista. Conta-se que Maomé sofreu duras críticas de opositores que o consideravam um farsante porque se dizia inspirado pelo arcanjo Gabriel, que lhe ditava as palavras do Alcorão. É reconhecido nos países de língua árabe , que o texto do Alcorão é o que de mais maravilhoso foi produzido naquela língua. A beleza e a peculiaridade de suas palavras são tais que os tradutores reconhecem que já é tarefa bastante indigesta não trair o texto, pois atingir em outra língua os pináculos daqueles versos é impossível. Confrontado por seus opositores, Maomé respondia que se suas palavras não fossem inspiradas, porque alguém não se propunha a dizer melhor o que ali estava dito? Como era possível a um simples condutor de camelos expressar-se daquela maneira? Claro que nunca ninguém se prepôs a aceitar o desafio. A excepcional beleza daquele texto sagrado nunca foi igualada, muito menos superada. Pergunto: o que seria o Alcorão não fosse a força, a beleza, a sonoridade e o brilho daqueles versos inspirados? Provavelmente teria caído no esquecimento, uma vez que foram concebidos para serem decorados, e as rimas, a musicalidade e a força daqueles versos é que possibilitavam a dura tarefa de memorização.

Existe no ato de criação uma certa ambigüidade, que é da natureza do ser humano. Ora, é natural que assim o seja, uma vez que a obra de arte nada mais é do que uma expressão do humano. Não somos pretos ou brancos, mas simultaneamente pretos e brancos. Somos a contradição, e uma contradição em permanente estado de transformação. A ambigüidade é uma decorrência natural deste fato. Fernando Pessoa, que era uma ambigüidade em pessoa (aqui cabe o jogo de palavras), retratou esta situação em versos que se tornaram célebres(Autopsicografia): “O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente.”

Há um fingimento (transposição de uma realidade interna que se apresenta mascarada) sobre uma base real de dor (essência da vida, da existência, por força desta realidade), despertando no leitor a sua dor própria, que não é a do poeta, e que pode não ser a do leitor , mas que o desperta do marasmo onde geralmente vive. O poeta, antes de tudo, revela algo que nunca vem à luz.

Não sei se traduzi bem o que quis dizer, mas o essencial é que se trata do verdadeiro e do ambíguo, esta milonga que dançamos quando fazemos poesia.

Sonhamos, pensamos, criamos, recriamos, escrevemos, traduzimos, confessamos e traímos.

Exemplifico.

William Faulkner, por exemplo, mergulhou num mundo que se fora com a Guerra Civil Americana. No seu condado imaginário de Yoknapatawpha as suas personagens se debatem em suas vidas trágicas e miseráveis, o que de modo semelhante muitos autores fizeram, mas a grandeza do seu talento, que o torna um dos ícones da literatura americana é, sem dúvida, a forma especialíssima como o fez. Na verdade, quaisquer que fossem as suas intenções, Yoknapatawpha era ele. Um mundo interior, evidentemente relacionado ao seu tempo, vinculado com a “realidade”, mas transposto por uma visão subjetiva e um olhar próprio e, mais importante, com uma forma personalíssima de descrevê-lo. Poderia me referir também ao mestre Garcia Marques. Macondo é ele.Na sua cidade imaginária a América Latina desfila diante de nós, como o Sul dos Estados Unidos, quando lemos Faulkner. Mas em ambos os casos, não se trata do que chamaríamos de um mundo objetivo, mas sunjetivo, portanto, imaginário. E a identificação desses mundos imaginários com os mundos de cada um, e o peculiar modo de estabelecer esta ponte, é que os tornaram uma expressão de sua terra e de seu tempo, imprimindo às suas regiões uma personalidade que antes deles não tinham.

Falkner revelou seu mundo interior, ainda que descrevendo o exterior, com a mesma intensidade que alguns pintores pintaram um mundo que inspirando-se no que chamamos de "real", só existia na cabeça deles. Quando vemos determinada paisagem dizemos: “parece Van Ghog”, e ao nos depararmos com uma determinada técnica de redação, intimista e ocorrendo em diversos planos, às vezes simultaneamente, diremos: isto é Faulkner. Ou, “parece Faukner”.

O mesmo poderíamos dizer das “nom fiction novels”, que baseando-se em fatos reais, descrevem um mundo interior que abre novas dimensões ao homem, mesmo que seja a da maldade. Truman Capote é um bom exemplo. A intensidade do seu texto, descrevendo um crime realmente ocorrido no seu A Sangue Frio, colocaram-no no patamar dos grandes escritores do seu tempo. Provavelmente outras descrições de crimes foram narradas por outros autores. Mas quem são eles? Porque Capote é Capote? Porque muitos escrevem e escreveram, mas só Capote foi capaz de criar um modo de dizer que o torna único: um forma de dizer que parece, no exercício de sua arte, no caso a reconstrução de um crime brutal, a um biólogo examinando uma borboleta.

Poderíamos dizer o mesmo de talentosíssimo, contestador e contestado Normam Mailer, autor da Canção do Carrasco, que trata da execução de um criminoso americano. Aqui o autor não se debruça sobre o crime, mas sobre o criminoso.

Capote, Falkner, Mailer foram grandes escritores não só em função do sentido de suas obras que foi importante para eles e para nós, mas antes de tudo, pela maneira como as escreveram. Foi a sua peculiar maneira de equilibrar a substância e a forma, de criar e escrever que fizeram deles os monstros sagrados que foram.

Toda vez que pensamos na Guerra civil espanhola nos lembramos do “Por quem os sinos dobram” de Ernest Hemingway, ou do imenso afresco “Guernica”, de Picasso. Entre nós, o sertão nordestino assumiu uma nova dimensão depois que Euclides da Cunha escreveu Os Sertões. Este texto tornou-se um clássico de nossa língua e um documento humano notável. Euclides da Cunha é um exemplo de como uma reportagem ( nom fiction novel, já naquele tempo), cheia de descrições geográficas e humanas, se transforma numa obra de arte contundente: o estilo forte, claro e conciso, denunciador de uma situação social extrema, elevou o jornalista e engenheiro, mesmo quando grandiloqüente, ao nível de grande escritor. A Guerra de Canudos e Antônio Conselheiro, desfilam, inesquecíveis, diante de nós, imortalizados pelo talento de um escritor incomum. E toda uma região brasileira foi incorporada por ele à consciência coletiva. Outro exemplo, este realmente singular, de como a forma de dizer pode ser a essência da literatura está em Guimarães Rosa do Grandes Sertões, Veredas. Neste caso, trata-se de uma invenção que não pode ser seguida por ninguém, sob pena de ser tachado de imitador, uma vez que o grande escritor mineiro não só criou um mundo, mas uma língua. O seu português é português, mas também é Guimarãesrosês. E mais ainda, nenhum texto que conheço é mais ambíguo.

Caso semelhante ocorre-me apenas o de James Joyce, o criador de Ulisses.

As escolas vêem e passam. Assim caminham as concepções e modismos humanos, assim caminha até a ciência, cujas verdades são sempre aproximativas.

Algumas décadas depois, a moda, ou o entendimento dos escritores já não se voltava tanto para as desigualdades e injustiças sociais; a violência da sociedade moderna e o que ela faz dos homens passou a ser um tema mais presente. Hoje, os alvos já são outros, há uma certa fixação na delicadeza e beleza das palavras. Diria que o mago Carlos Drumond de Andrade seria um precursor desta tendência, como também o pouco lembrado escritor alagoano Gracialiano Ramos, apesar de sua obra ser profundamente comprometida com uma visão específica do mundo. Poucos autores atingiram tal nível de economia de palavras em frases magníficas. Citaria ainda , também como precursor, o hoje meio esquecido poeta pernambucano Ascenso Ferreira, autor de Catimbó; apesar de seu regionalismo, que alimenta a sua escrita, e que poderia soar com uma limitação, sua arte de depurar o verso é tão notável, que se torna universal e contemporânea. A ingenuidade de seus versos capeia uma arte superior na inventiva e uso das palavras.

Amanhã, os objetivos serão diversos. Mas o que está por baixo, a verdadeira força motriz é o ambíguo processo que tentei descrever. Digo tentei porque se trata de algo que se passa num plano muito profundo, abissal, onde a luz não existe e a tentativa de descrição do processo é muito mais uma representação que uma realidade.Aliás, neste contexto, vale perguntar: o que é a realidade?

Muitos escreveram e escrevem, através do tempo. Mas quantos ficaram? Ficaram os verdadeiros artistas.O resto afundou-se na voragem do tempo e do esquecimento.

Pablo Neruda, o maior poeta das Américas, e o mais popular de todos, tem o seu lugar como grande poeta não porque foi atuante, notório comunista que era: seu nome é grande e sua obra persiste porque ele foi um poeta inigualável, e qualquer que fosse o seu objetivo, quando escrevia, este dom estaria sempre presente. Realmente inseriu-se na luta pelos oprimidos do mundo e do seu Chile querido; mas a sua grandeza vem da força extraordinária de sua poesia. A sua obra da juventude, Os Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada é, na essência, romântica, e no entanto– e até por causa disto - é a mais lida e conhecida. A força do amor daquele jovem e o seu desespero por não ser correspondido, o consagraram. Isto então quer dizer que a poesia romântica, ou que trata dos afetos e sentimentos de cada um é maior que as outras? Certamente não. Mas também não é menor.Maior ou menor é o poeta em função de sua força poética, da grandeza de sua arte. O resto é leit motiv. Teoricamente um poeta pode tecer um incrível poema e não estar sentindo nada. O que precisa é de “engenho e arte”, como implorou Camões à sua Musa. E cada um de nós pode estar vivendo uma intensa paixão e fazer um poema fraco.

Jean Coctau dizia que o poeta é uma antena. Ele capta a poesia das coisas, como a antena capta as ondas de rádio e hoje de TV. A capacidade da antena está na sua competência para converter o sinal, ou seja, traduzi-lo em beleza. Trata-se de um dom, no ser antenado; na maioria das vezes, um fardo. O único compromisso do poeta é com este dom e esta capacidade, de converter núcleos profundos do seu ser em beleza, através de suas palavras.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 05/09/2008
Reeditado em 07/09/2008
Código do texto: T1163678
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