Noite Incauta, Véu Bisonho!

Não sou crítico de cinema nem de coisa alguma e o meu telhado não é de outra matéria, senão de fragilíssimo vidro. De há muito sei que a obra de arte, uma vez tornada pública por meio de exibição formal, deixa de pertencer unicamente à placenta criativa que a gerou, para torna-se parte de quem a contempla, e sobre a qual, se tem realmente interesse, reflete. Daí decorre que tal apropriação pelo outro, seja de uma poesia, de uma pintura, de uma escultura ou de um filme, resultará inevitavelmente na formação de opiniões e impressões diversas, já que é típico na obra de arte, quando esta designação lhe cabe, a sua natureza eminentemente polissêmica. Feita esta constatação, não seria um equívoco, e é até desnecessário afirmar, dado tantos exemplos de análises díspares feitas por balizados críticos em relação a um mesmo objeto artístico, que assim foi, é, e sempre será. Portanto, não tenho pudor ou receio de manifestar a minha honesta opinião, repito, de “não expert” em linguagem cinematográfica, sobre as impressões que tive do documentário “Noite Auta, Céu Risonho” apresentado nesta terça-feira, (16/08/08), às 20h, no salão nobre do Teatro de Cultura Popular. A obra é uma produção conjunta da UFRN, através da TVU e do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses, com financiamento na ordem de 20 mil reais, bancado pelo Programa BNB de cultura 2008.

Antes de adentrar propriamente nas impressões estético-semânticas do filme, necessário se faz reconhecer a importância de uma obra desta natureza, que se insere num projeto mais amplo, que visa continuar a produzir documentários de relevância e referência para a história de nosso estado. Diga-se ainda de passagem, que Auta de Souza é, pela qualidade de sua obra e pela fortuna crítica que amealhou ao longo de mais de 100 anos, merecedora do pioneirismo deste projeto. O público, que lotou a casa de espetáculos, formado por gerações distintas, decerto que ratifica esta assertiva.

Passemos pois aos comentários, e digo a bem da verdade, respaldados apenas por uma única visualização, o que sem dúvida, dá aos mesmos uma certa precariedade analítica, que outras visualizações ou opiniões, há de, quem sabe? redimir.

Chamou-me a atenção, de início, a opção pela inversão cronológica dos fatos, indo-se da morte (tema recorrente em sua poética) para a vida de Auta, subtraindo-se com esta opção, ao meu ver, a possibilidade de clímax narrativo ou carga dramática que o drama real de sua existência ensejou. Intercalando as imagens idílicas (Auta saltitante e sorridente na relva) ou religiosas, quase não há imagens que representem o sofrimento da poetisa, senão pela apresentação rápida, de uma Auta tristonha, travestida num vestido de noiva que jamais tivera. É o tal manto da “licenciosidade poética”, que tudo justifica, que tudo acoberta. Parece que tem sido esta a tônica estética dos documentários feitos na terra de Poti, ou seja, o documentário-ficcional, que ao fim e ao cabo não se realiza bem, nem como uma coisa nem como outra.

Sendo a sua principal realizadora, pertencente ao departamento de Ciências Sociais, esperava uma análise mais profunda do tríade: vida - obra de arte - sociedade, todavia, é a superficialidade biográfica em clima de exaltação mítica e laudatória que perpassa a obra, e mesmo no sentido espacial: Macaíba-Recife-Natal, mostra-se precária. (mas é preciso dar o devido desconto, afinal, os recursos não foram muitos e, limitado, o tempo de sua duração). Longe de polêmicas ou questionamentos como: Teria sido Auta, apesar da família influente, rejeitada por seus aspectos físicos, por sua doença? Disso decorreria a gênese criativa de sua poesia? Que poetas a influenciaram ou sua obra é absolutamente original? Que papel teve Henrique Castriciano na difusão da obra de sua irmã, ele que, influente, fora o responsável pela solicitação do prefácio de Olavo Bilac e pela edição do livro? Por que a mudança do título Dhalias para Horto?, nada disso, para ficar apenas em alguns questionamentos, vêm à baila. Ficou, no entanto, bem demonstrado, principalmente através da evocação às modinhas e hinos religiosos, a capacidade geradora da obra de Auta, no passado e no presente, até sob a faceta da questionável psicografia.

Os documentos apresentados e obtidos de fontes originais, fotografias e depoimentos vão dando à narração feita pelo escritor Tarcísio Gurgel, especialista em literatura potiguar, o tom didático-biográfico, apresentando pontos importantes da curta vida de Auta e servindo bem como intróito ao estudo sobre a poetisa macaibense, digo intróito porque são muitas as lacunas não preenchidas, como por exemplo: tempo passado em Macaíba-Recife-Natal, relacionamentos sociais nestas cidades, sequer há menção ao fato dela freqüentar à casa de Cascudo, amicíssimo de Castriciano. Se teve namorados? Como enfrentou a doença? Onde foram seus últimos dias e com quem?

Gostei da sobreposição de imagens dos manuscritos com a atriz que a representava, mas não posso deixar de lamentar o papel simplificado da atriz Marinalva Moura, que atravessa toda a obra sem que ouçamos-lhe a voz, como um fantasma mudo, já que a opção estética dos diretores foi pelo timbre de Josemay Costa, aliás, de voz maravilhosa para declamações. Com isto, quero dizer que se pela aparência física da atriz estreante, o documentário ganhou força plástica, pela usurpação de sua voz, em detrimento de outra, o filme perdeu no que poderia ter de realismo sonoro. Para matar a curiosidade, aproximei-me de Marinalva e perguntei-lhe se durante o processo de filmagem, ela não tivera vontade de declamar os poemas de Auta. Respondeu-me que sim, que tivera muita vontade e que até decorou alguns poemas. Ainda quanto ao som, uma pena que o depoimento de Diva Cunha não tenha tido, na edição, o devido tratamento sincrônico, mas acho que isso ainda pode ser sanado. Quanto ao figurino, aplausos para o trabalho de Kátia Dantas, que convincente, consegue nos transportar para fins do século XIX.

Estas são apenas algumas observações de um receptor ativo do que entra pelos meus sentidos provocando minha sensibilidade, e esta, quando quero, se traduz em apreciação manifesta, sem no entanto, nenhuma preocupação de ser a verdade absoluta. Outros, de mais experiência e com mais capacidade haverão de lançar também os seus olhares e sensibilidade sobre “Noite Auta, Céu Risonho”.

Marcos Cavalcanti

Marcos Cavalcanti
Enviado por Marcos Cavalcanti em 18/09/2008
Código do texto: T1183684
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