UMA FACA SÓ SIGNO: Apontamentos fugidios do poema de João Cabral de Mel Neto.

UMA FACA SÓ SIGNO: Apontamentos fugidios do poema de João Cabral de Mel Neto.

O livro-poema de João Cabral de Melo Neto foi lançado em 1956 no livro Duas Águas, que incluía toda a obra do poeta até então. Uma Faca Só Lâmina é de 1955, mesmo ano em que conclui Paisagens com Figuras. É, portanto, posterior ao Cão Sem Plumas e anterior a Quaderna. Este panorama ordinário das obras do poeta é significativo para aqueles que pretendam ver e seguir uma linha temática e formal na poesia deste autor. Há alguns trabalhos importantes que tentam traçar um paralelo nesse sentido, e que citaremos oportunamente, como é o caso de A Imitação da Forma de João Alexandre Barbosa e Poesia com Coisas de Marta Peixoto. Porém, nosso objetivo não é análise da obra do poeta como um todo, mas somente um poema, melhor dizendo, um livro-poema, em razão de sua extensão e constituição. Sendo assim podíamos tentar ver em que segmento se inclui o poema dentro dessa perspectiva de modificações sucessivas que a obra do poeta veio incorporando, mas ainda não será esse nosso propósito. O que pretendemos nesse pequeno trabalho é fazer tão simplesmente uma leitura do poema em questão, apontando aqui e ali elementos que consideraremos importantes para a confirmação de nossa leitura, sem nos preocuparmos se tais elementos são significativos dentro da obra do poeta, ou se são somente restritos a esse poema. Esse procedimento não é resultado de nenhuma falta de fôlego para propor relações mais amplas dentro da obra do autor, nem alguma metodologia defensiva com vistas a evitar pisar em ovos; antes e principalmente é uma proposta de leitura de poesia pelo que ela pode oferecer enquanto leitura tão somente, e as relações e citações que aqui fizermos serão retiradas de nossas lembranças imediatas, de nosso repertório mais vivo, querendo com isso propor uma leitura fundada apenas no gosto pela poesia e não tendo por incentivo alguma intenção acadêmica mais formal a delimitar campo e plano de ação crítica.

O poema se compõe de dez seções ou partes, sendo que a primeira não recebe nenhuma designação e as demais levam por título letras de A até I. A seção I tem extensão um pouco maior que as demais, sendo mesmo subdividida em duas por intermédio de um * (asterisco). As estrofes são quadras de seis sílabas em média, com uma rima toante entre os versos segundo e quarto de cada quadra.

Chama-nos logo a atenção a figura do símile, da constante tentativa de comparação, onde o primeiro termo parece oculto, encoberto, ausente: "Assim como uma bala/ (...)/igual a um relógio/(...)/assim como uma faca"(estrofes I-VI).

Os três elementos: bala, relógio e faca são o segundo termo da comparação, e entre eles logo instaura-se uma hierarquia:

"Por isso é que o melhor

dos símbolos usados

é a lâmina cruel

(melhor se de Pasmado):"

(A, est.V)

E também a ausência do primeiro termo da comparação é referida já na parte A do poema:

"Seja bala, relógio

ou a lâmina colérica,

é contudo uma ausência

o que esse homem leva."

(A, est.I)

"porque nenhum indica

essa ausência tão ávida

como a imagem da faca

que só tivesse lâmina,"

(A, est.VI)

Portanto, as imagens da faca, da bala e do relógio são símbolos que se metamorfoseiam a todo momento, voláteis como as idéias, como as palavras. Uma vez que lhes falta o primeiro termo da comparação esses elementos estão como que livres para serem testados em novas figuras:

"que a imagem de uma faca

entregue inteiramente

à fome pelas coisas

que nas facas se sente"

(A, est. VIII)

"Cuidado com o objeto,

com o objeto cuidado,

mesmo sendo uma bala

desse chumbo ferrado"

(C, est. I)

"Mas cuidado porém

quando for um relógio

com o seu coração

aceso e espasmódico"

(C, est.III)

Notemos nessa estrofe III da seção C como o relógio também se apresenta sob metaforizações, é um relógio com um coração a ditar-lhe o ritmo, um ritmo espasmódico.

Para João Alexandre Barbosa esses elementos acham-se inscritos num espaço interior humano, num estar dentro ou íntimo ao ser humano, como se representassem mesmo características de uma relação humana com uma realidade intangível:

"Por outro lado, a localização interiorizada das imagens, 'bala/enterrada no corpo', 'relógio/submerso em algum corpo', '...faca íntima/ ou faca de uso interno', para a qual a dependência de um homem, ou corpo de homem, é básica, confere à objetividade das estrofes iniciais um espaço que, na senda de George Poulet, poderia ser chamado de humano. Mas é um 'humano' para o qual a existência prévia de uma redução pongeana, ou fenomenológica, do objeto tivesse permitido o uso da linguagem."

(BARBOSA, João Alexandre. A Imitação da Forma, p.148)

Os elementos faca, bala, relógio vão se alternando numa tentativa constante de definição de alguma coisa que não sabemos bem o que é, uma vez que o poeta esconde de nós essa coisa. Esconde não por um simples capricho ou intenção de fazer um jogo, mas o objeto de que pretende falar é que coloca esse jogo em prática, em razão de sua própria natureza. O poema parece mesmo uma meditação apreensiva e tensa sobre a relação do homem com a realidade através da linguagem. Essa insistência na definição, essa meditação já se fazem sentir no subtítulo do poema: "serventia das idéias fixas".

Marta Peixoto argumenta que o poema de João Cabral de Melo Neto apresenta-se sob a forma de um enigma, em razão dessas definições baseadas em comparações:

"Trata-se de uma definição que utiliza uma predicação com o verbo 'ser' para descrever, em termos paradoxais ou inesperados, a atividade de um objeto ou conceito escondido, lembrando a adivinhação (que geralmente começa com: 'o que é o que é?'). Assim, o enigma é uma definição que evita a definição para melhor definir, por meio de uma formulação que capta um aspecto imprevisto de um objeto ou conceito. A surpresa do ouvinte estimula a sua receptividade. Neste poema, a forma de adivinhação é logo sugerida pelo título: 'uma faca só lâmina' não é afinal, um objeto útil, e as perguntas como 'Por quê?' e 'O que isso significa?' se tornam necessárias."

(PEIXOTO, Marta. Poesia com Coisas. p.126)

Concordo com Marta Peixoto quanto ao aspecto de enigma e de adivinhação. Ao final da leitura o leitor vê-se diante de um conjunto de versos que lhe propõem um esforço de interpretação, de desvelamento. A pergunta 'O que isso significa' passa a ser aqui uma das facas multiplicadas:

"cujo muito cortar

lhe aumenta mais o corte

e vive a se parir

em outras, como fonte"

(Seção B, est.VII)

Para Marta Peixoto tal esforço de interpretação proposto ao leitor é um "jogo complexo e divertido" ; eu, porém, estou mais propenso a ver o poema como uma tarefa difícil a ser cumprida pelo leitor, cuja única recompensa, se houver, não será a resposta última a esclarecer as analogias. O poema se propõe como enigma cuja capacidade de repropor-se a cada leitura vê-se aumentada em complexidade, de modo que, ao fim e ao cabo dessas tentativas de entendimento, se olharmos ao redor, notaremos que estaremos determinados a enveredar por uma filosofia da linguagem que articula o fragmentário e o paradoxal como elementos constitutivos de sua tese.

Essa faca cabralina que pode ser também bala ou relógio, pode transformar-se na obra do poeta, não como faca, mas como flor: "flor é a palavra flor", que mais adiante se transforma em fezes:

"Poesia, te escrevo

agora, fezes, as

fezes vivas que és.

Sei que outras

palavras és, palavras

impossíveis de poema."

(Antiode, seção E)

Observa Décio Pignatari como essa palavra cabralina se metaforiza constantemente, fugidia como qualquer enigma:

"Começa tudo de novo, único modo de poder saber diferenciar novamente as palavras que, se são coisas, são também signos que transferem sentido. Da flor passa à faca. E vai descascando a realidade sub specie de paisagens e fatos, selecionando suas opções na medida mesma em que as descreve e organiza."

(PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. p.105)

É como se o que organiza o texto do poeta não fossem as articulações das figuras ao compor imagens, mas antes, a capacidade de se criarem figuras. O poeta nos engana ao falar da faca, da bala, do relógio, quando o que ele quer falar é das palavras e suas capacidades poéticas .

"Das mais surpreendentes

é a vida de tal faca:

faca ou qualquer metáfora,

pode ser cultivada."

(Seção B, est. I)

Se Marta Peixoto vê uma espécie de jogo no poema, João Alexandre Barbosa vê aí uma lição e uma tentativa de aprendizagem por parte do poeta da dinâmica da linguagem poética:

"Dizendo de outro modo, aquilo que a faca é capaz de ensinar ao poeta não está antes nem depois da existência da imagem: o que se diz pela linguagem da faca é a imitação de um objeto (ausência) a que somente aquela linguagem dá acesso. (...)

Para dizer tudo: a sua [forma de imitar] é antes uma imitação da forma do que de conteúdos dados pelo real."

(BARBOSA, João Alexandre. A Imitação da Forma. p.152-153)

Parece-me, em conseqüência das leituras de Marta Peixoto e João Alexandre Barbosa que o poema de João Cabral de Melo Neto é daquele tipo que se pode dizer de um tom neobarroco, de um Neobarroco no sentido que lhe dá E.M. de Melo e Castro:

"Da idéia de barroco se guardará o que for pertinente para a metodologia da desmontagem e de revelação das relações subliminares entre autor, obra e leitor(es). Não se propõe, assim qualquer revivalismo, atingindo-se um núcleo de relações dinâmicas antiestáticas e polissemicamente entendidas num contexto mutável e em mudança (...)"

(CASTRO, E.M. de Melo e. O Fim Visual do Século XX. p.271)

Mais um pouco adiante o crítico português observa que esse novo barroco tem inclusive uma posição política antípoda do barroco dos séculos XVI, XVII e XVIII, colocando-se agora como elemento crítico e desorganizador da ordem estabelecida:

"Por isso nem a idéia do barroco como degenerescência do classicismo, nem a de período histórico recorrente, como síntese cultural de uma época de instabilidade e de transformação, são agora aplicáveis. É, isso sim, como função textualmente pertinente que o barroco caracteriza a impertinência da prática poética da segunda metade do século XX, tanto quanto agente capaz de desmontar os discursos dos poderes ditatorialmente instituídos (...)"

(CASTRO,E.M. de Melo e. O Fim Visual do Século XX. p.284)

João Cabral de Melo Neto produziu, pois, um poema em que o leitor se vê convidado a um processo contínuo de desmontagem de suas analogias na tentativa de entender a mensagem oculta de que fala o poeta, que não parece ser outra coisa que uma reflexão sobre essa própria tarefa dada ao leitor como forma de dialogar com a realidade:

"por fim a realidade,

prima e tão violenta

que ao tentar apreendê-la

toda imagem rebenta."

(Seção I, última estrofe)

Haroldo de Campos também vê um neobarroco emergente na literatura latino-americana da segunda metade do século XX:

"'El barroco, [que] es lo que interesa de Espãna en América...', - exclama José Lezama Lima pela boca de José Cemí (Paradiso, p.256-257), personagem em que há muito de autobiográfico (além, talvez, de uma voluntária anagramatização onomástica: Lezama Lima/ EZ - IM/ CE - MI). E será, quem sabe, justamente no barroco, em seu transplante ibero-americano - quando, a par do fusionismo próprio desse estilo, se dá a mestiçagem peculiar a um confronto de culturas e raças diferentes -, que se poderá encontrar, no embrião, essa atitude de não conformidade à partilha clássica dos gêneros e suas correlatas convenções literárias, de parte do escritor da América Latina."

(CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana. p. 34-35)

Mais adiante Haroldo de Campos insere a obra de João Cabral nesse contexto neobarroco através da característica metalingüística de sua poesia; citando inclusive o poema em questão:

"De Oswald de Andrade a Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto no Brasil, de Huidobro a Octavio Paz e a Nicanor Parra na Hispano-América desenha-se essa linha do poema sobre e/ou contra o poema (...)

Em Cabral, que descende de Drummond, é a própria máquina do poema que é montada e desmontada incessantemente, com uma precisão rigorosa de geômetra (O Engenheiro, 1945; A Psicologia da Composição, com a 'Fábula de Anfion' e a 'Antiode', 1947; 'Uma Faca Só Lâmina', 1995, etc.)"

(CAMPOS, Haroldo de. A Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana, p.42-43)

Uma faca que seja só lâmina é uma imagem barroquizante da linguagem, da luta entre palavras e coisas, linguagem e realidade. O poeta constrói seu poema-jogo, seu poema-enigma, num aparente moto contínuo de analogias, de transformação, como aquelas inebriantes iluminuras que davam vertigem em Adso . Uma faca que seja só lâmina, se bem utilizada, e há muitos riscos de corte ao segurar tal engenho, é um instrumento para cirurgias na tensa relação entre linguagem e realidade.

"De volta dessa faca,

amiga ou inimiga,

que mais condensa o homem

quanto mais o mastiga;

(...)

e daí à lembrança

que vestiu tais imagens

e é muito mais intensa

do que pode a linguagem,"

(Seção I, est.XI e XIV)

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.

BARBOSA, João Alexandre. As Ilusões da Modernidade. São Paulo, Perspectiva, 1986.

________. A Imitação da Forma. São Paulo, Duas Cidades, 1975.

CAMPOS, Augusto de. Poesia, Antipoesia, Antropofagia. São Paulo, Cortez & Moraes, 1978.

CAMPOS, Haroldo de. Ruptura dos Gêneros na Literatura Latino-Americana. São Paulo, Perspectiva, 1977.

________. Metalinguagem & Outras Metas. São Paulo, Perspectiva, 1992.

CASTRO, E.M de Melo e. O Fim Visual do Século XX. São Paulo, Edusp, 1993.

NETO, João Cabral de Melo. Antologia Poética. Rio de Janeiro, José Olympio, 1979.

PEIXOTO, Marta. Poesia Com Coisas. São Paulo, Perspectiva, 1983.

Jayro Luna
Enviado por Jayro Luna em 04/03/2006
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