O MÉDICO DE FAMÍLIA ESTÁ DOENTE...

Esse artigo foi escrito em resposta a uma pergunta de um amigo articulista - Dacio Helene Jr - sobre a razão do “Médico de Família” estar desaparecendo. Então aí vai a resposta:

O Médico de Família (MF), também chamado Generalista, ainda habita a memória ideológica dos médicos formados há 15, 20 anos ou mais, assassinado pelas operadoras de Planos de Saúde (PS), e enterrado por políticas de Saúde ineficientes, insuficientes, irresponsáveis.

A boa Medicina não pode dar lucro. Então, em termos políticos, adeus a ela.

Para quê construir hospitais modernos, bem equipados, com hotelaria de primeira, médicos bem treinados e satisfeitos com o salário? Para o povo? Para ter que refazer pinturas e fachada, ter que fazer contratos milionários com empresas de manutenção de equipamentos, ter que financiar cursos de reciclagem de toda a equipe, uma vez que a Medicina é a única profissão onde NUNCA se pára de estudar, porque o que era verdade ontem, já não o é hoje. Então para quê gastar todo um orçamento anual da União com a Saúde, se o povo acaba dando seu jeitinho? Melhor terceirizar. Melhor entregar para as operadoras de OS (Planos de Saúde), para que elas sejam as responsáveis pela exploração do médico e equipe, que elas sejam as causadoras dessa Medicina torpe, para que elas preencham porcamente os espaços que o governo insiste em fingir que não há.

Médico não é sacerdote, não é eunuco, não é deus, não é máquina. Ele é de carne e osso, anseia por família, para vê-los bem e protegidos, seguros, e precisa manter seu padrão de vida para poder adquirir livros e revistas bem caros, para sua atualização; precisa participar de congressos (do próprio bolso), para sua reciclagem anual; precisa fazer projetos, pesquisas, trabalhos científicos. E, com os míseros R$1.200,00 que o governo paga para o médico em fim de carreira pelo MPAS (leia-se SUS), fica impossível dedicação exclusiva e qualidade, pois sequer pagam os dois volumes do Harrison’s, que é a “bíblia” da Medicina Interna.

O MF vê seus sonhos de faculdade ludibriados e marginalizados, e acaba por sucumbir ante o poder mercantilista de uma sociedade consumista.

O que as operadoras de Planos de Saúde fazem? Já viram as sedes e filiais das operadoras? Alto luxo, em contraste com as emergências dos hospitais públicos, sem acomodações decentes, sem higiene, sem material básico. O que elas fazem? Oferecem Planos de Saúde tentadores para empresas, custo baixo, com a garantia de seus empregados não entrarem em licença prolongada. Por outro lado, com esse custo tão baixo, não podem pagar pela boa Medicina. Então, impõem ao médico um atendimento “fast food”, onde mal dá pra olhar no rosto do paciente, com os demais lá fora aborrecidos com qualquer acréscimo do horário, não podendo errar e, pior de tudo, sendo obrigado a receitar! Sim, porque o paciente não entende e nem aceita um médico que só prescreve medidas preventivas, ou receita simples elevação da cabeceira da cama e dieta diferenciada. Cadê o remedinho, doutor?

A Medicina evoluiu muito, a expectativa de vida subiu, e muitas doenças que antes não preocupavam, pis o homem não viveria o bastante para sofrer intensamente suas mazelas, agora assolam a vida das pessoas e aumentam sobremaneira o número de médicos necessitando conhecimento sobre elas. Assim, surge o especialista – uma necessidade do próprio MF – que a sociedade não entendeu.

O especialista é o médico que detém seu conhecimento especificamente num órgão ou num sistema orgânico, com o compromisso de atualização constante naquele alvo. Naturalmente, espera-se que aquele profissional tenha expertise no assunto. Até aí, tudo bem, só que o paciente passou a preferir ir direto ao Papa, entendem? O MF foi perdendo terreno para o especialista, constituindo-se, então, uma verdadeira rivalidade interprofissional.

O MF passou a ser visto, até pelos colegas, como um “bundão”, que não resolve nada. E os pacientes, no fundo, sentem falta do carisma e da amizade do MF, mas preferem pagar mais caro e ir direto ao que “vai resolver”. É tolice? É. É atropelar, passar o carro à frente dos bois? É. Mas como reverter isso? Não há interesse do governo em reverter tal situação (e o governo seria o único capaz disso, provendo a rede pública de generalistas), até porque o MF, o generalista, tem um apelo político muito forte, sempre interferiu na história política do país, de maneira diretamente influente.

Quando alguém cita a indelicadeza do médico em preencher papéis, enquanto o paciente fala, e frisa “consulta paga”, você enterra o punhal bem fundo na ferida. Afinal, porque discriminar a consulta paga de outra qualquer? Por acaso, no serviço público, a consulta não foi paga? Infelizmente, a carga tributária é tão alta, e a receita para a Saúde é cada vez mais tão vilipendiada, que você nem lembra que pagou por cada atendimento na rede púbica, não é verdade? Mas pagou, e paga bem. O preço é alto, razoável, só que não é empregado ao que se destina, como a CPMF. Como você mesmo colocou, “não somos peças ou mesmo algo desprezível fora da condição de faturamento”. Mas o governo não vê assim, e tenta colocar nos ombros dos médicos o fardo que é dever do Estado.

Quanto ao procedimento de exames para poder montar um diagnóstico, não é de todo “furado”, porém não se deve esquecer que os exames são “complementares”, ou seja, servem para fazer diagnóstico diferencial entre duas patologias semelhantes clinicamente. Não é questão de insegurança, mas de cobrança. O próprio paciente chega no consultório exigindo uma ressonância, uma ultrassonografia, uma tomografia, sem entender que, na grande maioria das vezes, a história clínica e o exame físico já fecham o diagnóstico.

Para pedir exames complementares, o médico precisa aplicar ali todo o seu conhecimento trazido da faculdade, para não embaralhar ainda mais o que já parece confuso.

Em sua simulação, o paciente com dores violentas no ouvido, não seria suspeito de enxaqueca, mas deveria ter seu pavilhão auricular todo verificado, na busca de uma otite média, uma perfuração de tímpano, ou corpo estranho. Nesse caso, especificamente, a história daria o diagnóstico, sem necessidade de exame complementar. Tumor no cérebro é raridade, não causa dor lancinante no ouvido. Uma dor de cabeça crônica, essa sim, dá dor de cabeça ao médico, porque pode ser tudo.

Tentam extinguir o clínico geral, para o bem do bolso da União, mas não vão conseguir. O especialista continua sendo necessário, mas é a população que o procura.

Para seu governo, os “velhos clínicos” não acertavam sempre coisa nenhuma! Erravam como qualquer mortal. Só que ninguém ficava sabendo. Não existiam os exames para mostrar os erros. Até as técnicas da Medicina Legal eram bem menos modernas, não se permitindo saber a causa mortis da maioria das pessoas. O que eles, os velhos clínicos, possuíam era a lábia bem desenvolvida, a postura de amigo da família e de conhecedor de todas as doenças e suas curas. Era aquele sujeito que fazia o parto, acompanhava a criança, tratava do adulto e voltava a fazer o parto dos filhos daquele que ele ajudou a nascer. Isso criava um vínculo de segurança, de confiança, de fé.

Por outro lado, não penso que “saber pouco” sobre muito seja mais interessante para se diagnosticar com rapidez e conseqüentemente salvar. O importante é ser honesto consigo mesmo e humilde para reconhecer seus limites. Se atendo a um paciente onde já esgotei meus recursos e não cheguei a um diagnóstico, devo ser humilde para reconhecer isso e encaminhá-lo a um centro especializado, que poderá dar continuidade de onde parei. Não tenho a obrigação de saber tudo, embora deva saber muito e me atualizar, mas tenho a obrigação de ser coerente com minha consciência.

Quando você era criança, você adoecia de doenças de criança. Não tem muito como errar. Qualquer médico acerta. Não precisa ser especialista ou bam-bam-bam. A facilidade dos exames não acabou por criar incompetentes, mas auxiliou a se descobrir doenças que antes nem eram diagnosticadas, e vou lhe dar um exemplo dentro de uma das minhas especialidades: gastrite bacteriana. Antes da era da endoscopia, eram tratadas como “gastrite nervosa” e os pacientes estavam condenados a sofrer para o resto da vida com aqueles sintomas horrorosos! Até que, com a endoscopia e as biopsias, descobriu-se que, de fato, não havia “gastrite nervosa”, mas uma bactéria que nunca havia sido descoberta. Hoje tratamos dessa doença com 7 dias de antibiótico e fim do sofrimento! Muitos clínicos gerais, MF, ainda tratam de gastrites nervosas...

Concordo com você que os médicos novatos exageram, e não conseguem diagnosticar uma apendicite pelo exame clínico, nem diagnosticar uma tuberculose, não pela cor do catarro, que é falso, mas pela história (que chamamos anamnese) e pela ausculta do pulmão, que gera ruídos característicos em muitos casos. O Rx tórax faz a suspeita clínica ficar mais ou menos forte, e a cultura confirma o bacilo, selando o diagnóstico. São inúmeras as doenças, hoje em dia, com quadro clínico semelhante, haja vista as viroses.

Pioramos sim, não pelo avanço técnico-científico, mas pelo desprezo e desrespeito aos direitos do cidadão. Não pelo excesso de exames, mas pela falta de condições dignas de trabalho aos profissionais. Não pela nova Medicina, mas pela velha demagogia populista.

O médico não é a “causa mortis” da Saúde do povo, é mero veículo de inseminação da incompetência do governo em administrar a Saúde, e a passividade da população de não fazer valer seus direitos, o retorno de seus impostos e a constituição, que diz, em seus primeiros artigos, que a Saúde é dever do Estado e direito do cidadão”.

Se você deseja vínculos de amizade com seu médico, não pode esperar que ele receba apenas R$25,00 por consulta de Plano de Saúde, se em seu consultório ele sabe que precisa de pelo menos 5 vezes isso, para ter alguma dignidade em sua vida pessoal e seu investimento nos estudos contínuos. Assim, se eu cobro R$120,00 por uma hora de minha consulta, para fazer isso em termos de Plano de Saúde, preciso dividir a minha hora em cinco, certo? Matemática simples. Só que o paciente não é número, vai daí o conflito. Eu sempre me recusei a ter convênios, atendia somente particular, levava ao menos 1 hora com cada um, conhecia a todos pelos nomes, sabia seus empregos, os nomes de sues familiares, até seus hobbies. Freqüentei a casa de muitos. Há 2 anos fechei o consultório, por falta de pacientes, já que todos tinham Plano de Saúde...

O velho médico de família era “um” amigo, formado, também estudioso, mas as operadoras de PS trataram de mostrá-lo como um incompetente caduco, um ultrapassado, acompanhado por um séqüito de hipocondríacos e mal agradecidos.

Era um médico. Hoje é um assalariado de empresas ricas, dirigidas por administradores que se consultam no exterior.

Desculpe pelo texto longo, mas cortei mais de 10 folhas do que tinha para dizer, e espero ter elucidado a verdadeira doença dos dias de hoje.

Beijão,

Lílian Maial