Os conflitos internos na Ilha da Assunção em Cabrobó - Pernambuco: uma história ainda não revelada

Não há oportunidade melhor para falar dos índios de Cabrobó. O Diário de Pernambuco e o Jornal do Commercio de hoje trazem matérias sobre a manifestação de ontem, dia 24 de setembro de 2008, no Recife. Integrantes da tribo Truká reivindicaram providências das autoridades quanto ao assassinato do candidato a vereador naquela cidade, um dos líderes indígenas, Mozenir Araújo de Sá, morto a tiros, há 32 dias.

Em maio de 2006, estive naquela cidade para fazer um levantamento histórico do município. De cara, chamou-me a atenção a tribo indígena dos Trukás. Conversei com muitas pessoas da cidade e da tribo. A realidade lá é bastante diferente do que é comunicado pelos nossos veículos de comunicação. Espero que, com este post, colabore um pouco com o entendimento dos leitores sobre a tribo Truká.

Um pouco da história de lutas dos Trukás

Historicamente, a região é mesmo habitada por povos indígenas desde o século XVII, como informa o coordenador nacional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Saulo Feitosa, na matéria do DP. No entanto, a história é mais complexa, e não pode ser resumida dessa forma, pois legitima uma etnia que não tem a uniformidade que parece ter.

A tribo que habita a Ilha de Assunção já passou muitas transformações ao longo do tempo. A mais recente, e, talvez, mais importante, aconteceu entre os de 1960 e 1980, durante o regime militar.

Desde séculos passados, os índios que ocuparam a Ilha sofrem de perseguições por parte dos fazendeiros da região. Durante a a década de 60, a usurpação das terras dos Trukás passaram a ocupar também a agenda do governo do Estado de Pernambuco. Uma das ações mais fortes, no entanto, se deu durante a década de 1970.

A Companhia de Sementes e Mudas de Pernambuco (Semempe) realizava ações estratégicas de pesquisa nessa Ilha, ocupando as terras e interferindo negativamente na vida dos indígenas. Em 1981, os índios Truká iniciaram uma grande reação contra a Semempe, A reação por parte do Polícia Militar e da empresa estatal foi drástica, e morreram alguns líderes da tribo, como Antonio Bingô.

No ano seguinte, uma nova onda de reações, dessa vez mais contundente, agregando pessoas que nem sequer faziam parte da etnia truká, e com certo apoio da Funai. É quando se tem início o processo de demarcação das terras Truká. Durante esse processo, a violência do poder constituído pelas forças militares do Estado praticou uma grande ofensiva contra os povos que ocupavam a Ilha. A prática de seqüestros, torturas e assassinatos foram constantes - de acordo com relatos que ouvi, e com os materiais pesquisados.

Cerca de uma década depois, em 1994, os povos da Ilha iniciaram novo processo de retomada das terras, cansados das “vistas grossas” do governo brasileiro para a problemática da região. No ano de 1994, foi invadida a fazenda do “Rei da Cebola”, Apolinário Siqueira (conhecido como Xinxa) - um dos últimos coronéis da região. No ano seguinte, os Trukás tomaram mais um pedaço de terra, que pertencia ao fazendeiro Cícero Caló.

Não participaram de todo esse processo de lutas apenas indivíduos da etnia Truká. O processo de mobilização foi extenso, e agregava participantes de várias regiões. Em 1999, a retomada da Ilha se deu de forma definitiva, sendo expulsos os gados que ocupavam as fazendas.

Desde então, as perseguições aos membros da tribo tem sido freqüentes. Em 2005, um fato grave aconteceu durante uma festa na Ilha. Alguns policiais militares invadiram as terras e assassinaram um dos líderes, Adenílson Vieira e seu filho Jorge. Uma das testemunhas oculares dos homicídios foi o candidato a vereador, morto há cerca de um mês, Mozenir Araújo de Sá.

Os conflitos internos na Ilha da Assunção em Cabrobó: uma história ainda não revelada

Mas, a história não para por aí. Existem nuances que não constam dos registros “oficiais”, nem dos discursos dos líderes da tribo. Essas “nuances”, escutei quando fiz minha viagens à região do vale do São Francisco, e conheci alguns integrantes marginalizados pela própria tribo, além do povo “branco” da cidade - que repugna toda a tribo Truká, certamente por causa da difusão de certa propaganda negativa, sobretudo por causa das lutas das décadas de 70,80 e 90.

Além dos problemas externos, da tribo com o povo da cidade de Cabrobó, existem problemas internos na Ilha, que devem ser investigados mais profundamente pelo Ministério Público. A questão é que a etnia Truká não tem mais a unidade étnica que tinha séculos passados.

Como eu disse lá atrás, o processo de retomada das terras da Ilha de Assunção agregou indivíduos que não faziam parte da tribo, e que também reivindicaram terras para si, após a retomada definitiva do território, em 1999.

Existe mais de uma família na Ilha. A família que tive maior contato, inclusive freqüentando as humildes casas deles por alguns dias, foi a família Borges. Eles me narraram muitas histórias que não constam da versão “oficial” da família majoritária - que ocupa as terras mais férteis da Ilha.

O conflito interno entre as famílias é grave, provocando muitos problemas que não são relatados nos veículos de comunicação (sem acreditar em má-fé por parte da mídia, creio que por desconhecimentos mesmo. Tentarei esclarecer um pouco desse conflito aqui, para os leitores do Acerto de Contas, preservando apenas os nomes daqueles que me narraram).

Como se sabe, o governo federal repassa verbas e outros recursos capitais (como insumos para produção local, tratores, fertilizantes e sementes) para os moradores da ilha através da Funai.

Logo ao chegar ao município, eu e os que me acompanharam na viagem fomos ao posto da Funai, na entrada da Ilha. A primeira coisa que me chamou a atenção foi que logo ao entrar na ilha pela ponte de acesso, a estrada se dividia em duas: uma à esquerda e outra à direita.

A estrada que ia para a esquerda era asfaltada até certa altura da ilha (à época, homens do Exército brasileiro trabalhavam asfaltando o restante), enquanto a da direita era de barro, esburacada e precária (vocês podem verificar na foto no início deste post).

Chegando ao posto da Funai, conhecemos um funcionário do posto, que era integrante da tribo. Perguntamos a ele se os índios eram favoráveis ou contrários às atividades turísticas na ilha. Ele respondeu negativamente, que os índios eram contrários às atividades turísticas. Sendo assim, não tínhamos mais o que fazer na ilha.

Uma dúvida ficou em mim: será mesmo que não?

Insatisfeitos com a resposta negativa do funcionário, fomos andar pela ilha, sob a ressalva dada por policiais da Rocam, que estavam no local, de que seria um passeio um tanto perigoso. Mas, fomos mesmo assim.

Desse passeio inicial ficaram-nos estranhas impressões de que algo ali não ia bem. Tínhamos que descobrir o que ali estava errado. Embora ainda não soubéssemos dessa “missão”. Voltamos ao hotel em que estávamos hospedados. Neste mesmo dia, já à noite, saímos pela cidade para fazermos mais um “passeio”.

Durante este passeio noturno, conhecemos um índio Truká. Vou chamá-lo aqui de X-Borges. Ele dissera que havia nos visto conversando com o funcionário da Funai, e que queria nos contar sua história. Aceitamos sua proposta e abrimos nossos ouvidos.

Para nossa surpresa, o tal funcionário da Funai era um ex-cacique dos índios Truká. X-Borges nos fez uma denúncia, na qual acusava o ex-cacique de desviar recursos para a sua família. Descobrimos que este ex-cacique era membro da família que morava à esquerda da ilha - o lado asfaltado, cujas terras são mais férteis.

Como eu disse acima, o Governo Federal repassa verbas e outros recursos para os moradores da ilha através da Funai. A denúncia era de que esse ex-cacique estava “infiltrado” no posto da Funai com o único objetivo de desviar recursos, além de “manipular” a polícia, estando ele mancomunado com outros grandes fazendeiros do município de Cabrobó.

Além disso, a família Borges acusava esse ex-cacique e sua família de ter-lhes expropriado as terras mais férteis da Ilha de Assunção, que estão localizadas no lado esquerdo dela.

Podemos dizer que existem duas famílias principais na Ilha, além de outras menores, dependentes das maiores. De um lado, a família do ex-cacique da tribo, e funcionário da Funai à época; de outro, a família Borges.

X-Borges nos fez também o relato de uma perseguição policial que sofriam alguns membros de sua família, já há algum tempo. Segundo X-Borges, os policiais da Rocam já haviam matado dois dos seus familiares, e estava com uma lista de mais oito, entre eles, o próprio X-Borges.

Não se fazendo de “santo”, X-Borges assumiu que andava fortemente armado. Assumiu também que plantava maconha para seu consumo e para venda, além de praticar assaltos a bancos e carros-fortes, na BR-428, que atravessa o município.

Disse ainda que estava ali disposto a tudo: a morrer e a matar também.

Para X-Borges e os seus, o que nos foi afirmado é que eles eram extremamente favoráveis às atividades turísticas na ilha. Quem não as desejava era o ex-cacique e sua família.

Para X-Borges, as visitas de turistas na Ilha trariam não apenas movimentação econômica, mas principalmente, visibilidade aos problemas políticos e econômicos instaurados na tribo. E que essa seria uma forma de solucionar os conflitos que vivenciavam.

X-Borges ainda nos narrou uma história de um infeliz dia vivido por ele, em que um grupo de policiais saiu “à sua caça” e foi até sua casa para lhe matar. Um primo de X-Borges antecipara-se e veio até ele, informando-o da operação, o que lhe deu tempo de pegar seu pequeno filho de cinco anos nos braços e fugir para dentro do mato.

X-Borges deixara seu filho com sua família, e arribou-se por mais de um ano escondido em meio à caatinga da região. Estando de volta, sabia que estava na lista negra da polícia militar.

Outra nuance do discurso de X-Borges foi quanto ao processo de elegibilidade do cacique da tribo. Segundo nos narrou X-Borges, era realizada uma espécie de “processo democrático” interno para eleição do cacique.

O problema, segundo X-Borges, é que a família de seu rival era bem mais numerosa que a sua - que girava em torno de cinqüenta a sessenta indivíduos. X-Borges reivindicava um outro tipo de processo para eleição do cacique.

Sugeria um processo de nomeação externa. X-Borges não sabia bem como seria este processo. Sabia apenas que aquilo tinha que mudar. Algo precisava ser feito. Não sabia o quê. Só tinha certeza de que as coisas como estavam não eram justas.

Lembro-me bem da frase dita por X-Borges, a cada duas dúzias de palavras pronunciadas, em meio a lágrimas ou grunhidos, sempre olhando para o céu: “É nóis cum Deus e Deus contra eles.”

Essa história estava nesse ínterim quando deixei o município de Cabrobó, seguindo nossa viagem pelo sertão do Vale do Rio São Francisco, em maio de 2006.

Se há algo que eu possa fazer ainda, é solicitar ao Ministério Público de Pernambuco e às demais instituições de autoridade do Governo Eduardo Campos, que busquem apurar com maiores detalhes todas essas histórias e os conflitos que existem na região.

Não devemos nos pautar apenas pelo que a grande mídia nos revela. É pouco. Muito pouco. Se um dos coordenadores regionais do Movimento Nacional dos Direitos Humanos, Gustavo Magnato, e o secretário executivo de Defesa Social, Claudio Lima, estão realmente dispostos a apurar a situação dos índios em Pernambuco, começar pelos Trukás de Cabrobó é um bom caminho.

O assassinato de Mozenir Araújo de Sá, ex-candidato a vereador naquele município, deve ser a partir de agora encarado pela população pernambucana como um marco histórico para o início de um processo que busque de fato dignificar o povo que habita aquela Ilha.

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Leiam também, um artigo meu sobre a história da ocupação do sertão de Pernambuco, neste link, que vocês podem copiar e colar no navegador:

http://acertodecontas.blog.br/artigos/breve-historia-do-sertao-pernambucano/

André Raboni
Enviado por André Raboni em 26/09/2008
Reeditado em 26/09/2008
Código do texto: T1197815
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