Educação, cognição e subjetividade: contribuições psicopedagógicas e humanísticas.

Educação, cognição e subjetividade: contribuições psicopedagógicas e humanísticas.

Prof. M.Sc. João Beauclair

“Tudo caminha, tudo flui, nada está imóvel.

O universo é com um rio:

ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”.

Heráclito

Desde os meus primeiros estudos e escritos sobre Psicopedagogia, minha atenção sempre está voltada à constituição do sujeito cognoscente. O sujeito que conhece nasce com, ou renasce com (cognoscere = nascer com). Muitas são as questões que se entrelaçam na construção da subjetividade humana, oriundas dos diversos campos do conhecimento que privilegiam o ser humano, tais como a Psicologia, a Psicanálise, a Sociologia, a História, a Antropologia e a Filosofia, que trazem complexas contribuições ao nosso tema.

Conhecer é um aspecto fundamental na constituição do sujeito humano e este processo ocorre nas interações que este sujeito estabelece com os outros e com o mundo. Quando se conhece, o sujeito de faz outro, mesmo sendo o ser único que é. O sujeito vai se estruturando como tal na medida em que vivencia estas interações, num movimento permanente e dialético originado no início de sua própria vida e que ocorre gradativamente a partir do desenvolvimento do seu pensamento.

Sem o pensamento, o sujeito não pode buscar soluções para os problemas a serem enfrentados. Com o pensamento, o sujeito enfrenta a vida, busca de alternativas, propõe soluções, vislumbra novas possibilidades. Na constituição do sujeito enquanto ser pensante é vital que o cérebro seja utilizado em sua plenitude para que este sujeito, de fato, pense.

De acordo com as pesquisas mais recentes, sabemos que nosso cérebro possui zonas e áreas com funções distintas, mas que interagem entre si. Para que haja o pensamento, as diversas dimensões do cérebro devem estar interligadas e funcionando de modo simultâneo, objetivando a construção estruturada do pensamento.

Sara Paín, no seu livro “A função da ignorância” chama nossa atenção para a questão aqui levantada. Segundo esta autora, nossos mecanismos de pensamento são estruturados em duas dimensões distintas, mas complementares: a primeira é a dimensão da objetividade, fundada no campo do possível e vinculada pelos movimentos da ação e da lógica, instaurada na realidade - no que pode ser considerado como real-, mas que esta fora de cada sujeito.

A segunda dimensão é a subjetiva, fundada no campo do afeto e do desejo: desvinculada da lógica pura e voltada à nossa diferenciação como sujeitos únicos e singulares, é elemento fundamental para a constituição de nossas subjetividades e de nossas identidades.

É ainda Paín que nos lembra que precisamos

“nos dar conta de que estamos situados na encruzilhada entre duas formas de construção de pensamento. Há um sujeito que deve aprender e, na aprendizagem, constituir-se como sujeito. Ele conta como um aparelho para elaborar pensamentos sobre a realidade e com um aparelho para fabricar fantasias, que, embora cindidos, interpenetram-se”.

Assim, posso afirmar ser essencial que a Educação, como um todo, se perceba neste contexto: o humano se constitui na pluralidade de suas subjetividades e as instâncias objetivas e subjetivas devem estar inerentes nos processos comunicacionais onde se pretende transmitir e construir conhecimentos. A construção e a transmissão do conhecimento vinculam, de modo inconteste, estas duas dimensões. SCOZ (2000) corrobora com este pensar quando afirma que a “transmissão do conhecimento também é a transmissão de nossas formas de ser e de crer, as estruturas simbólicas transmitem-se ao mesmo tempo que o conhecimento científico”.

A objetividade e a subjetividade se constituem, portanto, como dois modos através dos quais o nosso pensamento funciona, de modo simultâneo e independente, como afirmei acima. De modo funcional e integrado, na construção do pensamento, objetividade e subjetividade devem estar ligadas, para facilitar a aprendizagem do sujeito. De acordo com PAÍN (1999), é fundamental a que se tenha uma separação nestes processos: objetividade e subjetividade acontecem paralelamente e de modo independente, para que a aprendizagem se efetive, se estruture. É necessário que objetividade e subjetividade existam de modo paralelo, mas sem se misturarem.

Se porventura essas duas dimensões se confundirem, ocorre o que esta autora denomina de estado confusional, um impeditivo ao ato de aprender, sendo decorrente deste processo o aparecimento das chamadas “dificuldades de aprendizagem”. Para que este estado confusional não aconteça de modo demasiado, é necessária a construção de um novo cotidiano escolar, espaçotempo em que as diferenças devem ser respeitadas e valorizadas. Em trabalho recente, ressaltei que, no campo educacional, a proposta é a de fazer

“ com que cada sujeito valorize o seu percurso e valide positivamente a sua experiência e a do seu grupo, percebendo que cada um de nós é portador de uma unicidade vivencial diferenciada e que, por isso mesmo, deve ser considerado como elemento de crescimento para si mesmo e para o próprio grupo. São as diferenças que fazem com que o movimento das experiências vividas seja incorporado como conhecimento efetivo. A construção da subjetividade humana é processo contínuo, sem interrupção, permanente. Nossa aprendizagem acontece de fato quando, diante do novo e do desconhecido, nos posicionamos de forma aberta e receptiva. Mas para tal, é preciso estarmos animados, motivados, desejosos de assimilarmos novas informações, de transformá-las em conhecimento, nos apropriando de seus conteúdos e com isso, elaborarmos construções de novos saberes.”

Com Paulo Freire aprendi que a Educação é “uma situação gnosiológica” , é espaçotempo de ”comunicação, é diálogo, é um encontro de sujeitos interlocutores que procuram à significação dos significados.” Objetividade e subjetividade são dois lados de uma mesma moeda, que se integram, num movimento dialético onde ensinantes e aprendentes estão em comunhão na busca de suas integridades humanas. Para Freire, uma educação autêntica “não se faz de ‘A’ para ‘B’ ou de ‘A’ sobre ‘B’, mas sim de ‘A’ com ‘B’ mediatizados pelo mundo”.

Nesta mediação, o mundo de um pode ser percebido e apropriado pelo outro, com as diferentes percepções de cada um complementando a busca de sentido para o humano existir de todos. Com as experiências educacionais que venho desenvolvendo ao longo dos últimos anos, constato, a cada dia, como tudo isso é real: da educação básica aos cursos de pós-graduação que atualmente ministro, a busca é sempre a possibilidade de crescimento, enquanto ser humano inserido no movimento do conhecer. Para Fromm, este processo “significa penetrar através da superfície, a fim de chegar às raízes e, por conseguinte, às causas; conhecer significa "ver" a realidade em sua nudez”.

Nos processos de objetividade e subjetividade, elos entre o lidar consigo mesmo e com os outros se constituem como problemática a ser vivenciada. O sujeito humano deve interagir com os objetos e com as regras do meio, mas deve também interagir com suas próprias limitações, com suas possibilidades e impossibilidades, com suas carências, afetos, com sua incompletude enquanto ser vivente. Se educar é buscar o bem estar do humano em todo este contexto, o espaçotempo educativo deve priorizar construções de processos harmônicos com as condições da vida humana, em interação com a natureza do próprio homem e da própria vida planetária. Enquanto espaçotempo para ser vivenciado em sua cotidianidade, a escola dos sujeitos em processos de interações permanentes deve-se voltar à compreensão de que todo conhecimento é, na verdade, “conhecimento do outro”.

Constituímos-nos como sujeitos a partir do desejo e do conhecimento dos outros, mas é no processo de conscientização de nossas limitações e de nossas conquistas que nos tornamos humanos. A escola, enquanto lócus social criado na modernidade, necessita com demasiada urgência rever suas funções e estabelecer vínculos maiores com o tempo presente que ora vivenciamos, repleto de novas conquistas em todos os aspectos da atividade humana. Novos modelos de se pensar a realidade e a vida surgem na ciência e na tecnologia, mas podemos observar que toda esta movimentação tem pouca apropriação no âmbito educacional. A necessidade de mudanças significativas se faz presente quando a escola se vê como um espaço de distanciamento desta evolução. Se os paradigmas científicos mudam, se evolui a tecnologia e o pensamento filosófico, a escola também deve acompanhar todo este processo, visto sua importância como instituição social construída para ser espaço privilegiado de transmissão da herança cultural acumulada pela humanidade através de sua história.

A importância da educação na formação da subjetividade humana é imensa. Cada ensinante e cada aprendente são diferentes porque são únicos e possuem sua própria carga de valores, conceitos e preconceitos. Conviver com estas diferenças é tarefa complexa, que exige formação permanente e continuada. Enquanto humanos, somos seres aprendentes na grande viagem da Vida, na espaçonave Mãe Terra, nossa casa comum, com nos ensina Leonardo Boff. Aprendentes em nossos imensos desafios, vivenciados na cotidianidade relacional que estabelecemos com o mundo, com os outros seres humanos e com nossa própria dimensão existencial, necessitamos compartilhar, estarmos enredados na trajetória do conhecer, do ser e do saber.

De acordo Juan Deval os “humanos não só aprendem, mas também o fazem sistematicamente e dedicam a isso boa parte se sua vida.” Desta forma, devemos fazer com que esta ação humana essencial ocorra de modo a ser significativa e que contribua para nos apropriarmos da objetividade da vida, sem perder nossa dimensão subjetiva. Informações e conhecimentos só podem ser validados quando apropriados e transformados em sabedoria.

Enquanto educadores, então, que principal desafio se configura a partir do que até aqui está exposto? Diante minha compreensão, é o desafio da autoria de pensamento que se faz presente. Objetividade e subjetividade convivem no espaço do ensinar e do aprender onde sejam privilegiados aspectos interacionais que possibilitem o sujeito humano compreender os dilemas de nosso tempo e os grandes problemas por eles gerados. Sermos autores de nossa história, única e singular, é termos consciência deste tempo, sabedores de nossas responsabilidades, é sabermos que somos

“o que somos porque fomos historicamente produzidos. Somos seres históricos materializados por marcas emocionais, afetivas, econômicas, sociais, culturais, religiosas e políticas, recebidas pelo ambiente exterior, pelo grupo social no qual estamos inseridos".

A Psicopedagogia, enquanto campo de conhecimento e área de atuação, contribui sobremaneira a esta compreensão por ser “interdisciplinar em sua epistemologia e transdisciplinar em sua evolução, terreno fértil para a construção, reconstrução e ressignificação” e, ainda, por ser também importante movimento de inserção dos nossos processos de pesquisa e autoria de pensamento. SILVA (1998), afirma que é “o homem enquanto ser em processo de construção do conhecimento, ou seja, enquanto ser cognoscente” o foco central da pesquisa, estudo e aprofundamento no campo psicopedagógico.

Assim, podemos observar que a Psicopedagogia hoje aponta novos caminhos para a educação do século XXI, principalmente quando considera que a ação educativa escolar é apenas uma das muitas possibilidades construídas socialmente para que o ser humano aprenda. Aprender implica um amplo conjunto de ideais, processos, atitudes, pessoas, que em movimento de interação se transforma em processos cognitivos que geram novas observações sobre a vida, o mundo, enfim, sobre cada um de nós, sujeitos aprendentes na complexa teia da vida.

Enquanto seres aprendentes e ensinantes, nossas humanas ações formatam nossas potencialidades de irmos adiante, construindo novos significados e sentidos para nossa própria vida. Aprender, então, é a própria vida, que deve ser vivida na reflexão, no diálogo, na interação. A construção de processos subjetivos em educação é uma necessidade urgente a ser vivenciada: os espaçostempos de ação da escola hoje, em sua cotidianidade, devem contar com apoio e suporte psicopedagógico para fomentar movimentos de discussão sobre o próprio papel da escola em nossa contemporaneidade e, ao assim fazer, ressignificar movimentos e rotinas cotidianas, compreendo, como já sinalizei em outros trabalhos, a importante tarefa da educação, que é a de humanizar o humano.

Neste movimento permanente pela humanização do humano, as contribuições oriundas da Psicopedagogia são relevantes e essenciais por estarem sendo possibilitadoras de um redimensionamento da própria práxis educativa, construindo referenciais teóricos e práticos que facilitam a compreensão da própria complexidade presente no ato de ensinar e de aprender.

O convite que aqui faço, depois de desenvolver as idéias presentificadas neste escrito, é que se busque conhecer mais sobre a própria Psicopedagogia, pesquisando, lendo autores psicopedagogos, inserindo-se em processos de formação que fomentem nosso desejo de compreender as diferentes subjetividades humanas e agir sobre a “complexidade dos diferentes desafios que atualmente se colocam à escola, de um modo geral, e aprendizagem em particular” .

Mestre em Educação, Conferencista e palestrante sobre temas educacionais e psicopedagógicos em diversos eventos, congressos e fóruns nacionais e internacionais; professor em cursos de Pós-graduação em Psicopedagogia Clínica e Institucional de diferentes instituições nacionais, presentes nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro; Psicopedagogo pela UCAM - Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro; autor do livro Psicopedagogia: trabalhando competências, criando habilidades, publicado pela Editora WAK, Rio de Janeiro, em 2004. Autor de diversos artigos sobre Psicopedagogia, Educação, Meio Ambiente, Ecologia Humana, Direitos e Valores Humanos publicados em revistas especializadas e em sites brasileiros e europeus. e-mail: joaobeauclair@yahoo.com.br homepage: www.profjoaobeauclair.net

Referências bibliográficas:

PAÍN, Sara. A função da ignorância. Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 1999.

PAÍN, Sara. Subjetividade e objetividade. Relação entre desejo e conhecimento. São Paulo: CEVEC, 1996.

SCOZ, Beatriz J. L. Histórias de aprendizagem: a objetividade e a subjetividade na formação de educadores e psicopedagogos. In: SCOZ, Beatriz J. L. (org.) (Por) uma educação com alma: a objetividade e a subjetividade nos processos de ensino e aprendizagem. Editora Vozes, Petrópolis, 2000.

BEAUCLAIR, João. Oficinas Psicopedagógicas e Subjetividade: movimentos de vida situados no ser e no saber. Publicado no site www.psicopedagogia.com,.br em fevereiro de 2006.

FREIRE, Paulo. Extensão e Comunicação. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1979, p. 90.

Idem, p. 77.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1978, p. 98.

FROMM, Erich. Ter ou Ser? Editora Zahar, Rio de Janeiro,1979, pág.56.

Sara Pain, citada por GROSSI, Esther Pillar. A coragem de mudar em Educação. Editora Vozes, Petrópolis, 2000, pág.19.

DEVAL, Juan. Aprender na vida e aprender na escola. Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 2001, p.12.

Neste sentido, conferir: BEAUCLAIR, João. A construção do ser e do saber: os necessários movimentos psicopedagógicos nos processos de “aprendências e ensinagens”. Publicado no site português www.gabpsicopedagogia.com em fevereiro de 2006.

PEREIRA, Francisco Donizete. Ensino de Filosofia e Problematização da concepção Pragmática da Realidade. Revista UNIFIEO, Ano I - nº2, Osasco-SP, 1999, p.107.

BEAUCLAIR, João. Tornar-se psicopedagogo: uma questão instigante. Publicado no site http://www.psicopedagogia.com.br em 12/06/2004.

Neste aspecto, conferir: BEAUCLAIR, João. Psicopedagogo/a pesquisador/a: aprendendo outras lições, buscando novos caminhos. Publicado em abril de 2004 no site http://geocities.yahoo.com.br/simaiapsicopedagoga e BEAUCLAIR, João. Autoria de pensamento, aprendências e ensinagens: novos modelos e desafios na produção de conhecimento em Psicopedagogia. Publicado no site da ABPP www.abpp.com.br , em abril de 2004.

SILVA, M. C.A. Psicopedagogia: em busca de fundamentação teórica. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1998, p.60.

BEAUCLAIR, João. Oficinas Psicopedagógicas e Subjetividade: movimentos de vida situados no ser e no saber. Publicado no site http://www.psicopedagogia.com.br em fevereiro de 2006.

BEAUCLAIR, João. Tornar-se psicopedagogo: uma questão instigante. Publicado no site http://www.psicopedagogia.com.br em 12/06/2004.

Joao Beauclair
Enviado por Joao Beauclair em 04/10/2008
Código do texto: T1210632