CARTA AO MEU PAI

São Paulo, 02/02/1979

Oi pai,

Estou aqui em São Paulo começando o internato. Hoje tenho aula de clínica médica e me lembrei de você e dos últimos dias de férias que passei aí. Fiquei com você no consultório. Pai, os médicos daqui pedem exames demais. Não sei, mas parece que têm preguiça de conversar com o paciente. Fiquei pensando nos seus atendimentos: você tem paciência, conversa com o doente, faz uma anaminese bem feita, um rigoroso exame físico e dá o diagnóstico na mosca. Claro que a tecnologia ajuda, mas tenho notado que os profissionais se esquecem da parte humana da medicina. Acho que esses dias que passei com você e pude ver seu modo de trabalhar serão decisivos na minha formação. Olha pai, estou iniciando uma fase nova da minha vida. São Paulo, cidade grande, terra de ninguém. O hospital em que estou trabalhando é enorme, mas foi bom esse nosso tempo, porque estou podendo entender como o seu jeito de fazer medicina é gostoso. Um jeito caipira e cheio de tesão. Olha, espero, um dia, ter um filho que estude medicina pra eu poder ensinar a ele tudo que você tem me ensinado. Nossa, como ia ser legal você saber que tem um neto médico. A gente até podia montar uma clínica, não é?

Pai, mudando um pouco, e o São Paulo, heim? Não anda bem das pernas, né? Liga não, vai melhorar. A gente ainda chega lá. O Armandinho me disse dia desses que tem um tal de Zé Sérgio começando no São Paulo, que é bom demais. Quem sabe a gente fatura esse campeonato, né? Se formos campeões, vamos estourar um caixa de foguete na casa do Aníbal. Já pensou a cara dele? Você tem amolado muito o Muchacho? Quando a gente perde, ele quase te deixa doido. Um pouco antes de vir embora encontrei o tio Aparecido e ele acha que a gente chega lá. Tem muita confiança no Serginho Chulapa. Bom, linha de zaga a gente tem e de sobra, né?

Olha, o pessoal chegou aqui e tá te mandando um abraço. O Eugênio não liga pra futebol, mas vai torcer pelo São Paulo por minha causa. Jovitão é corintiano da gema, não dá pra brincar. O Giba disse que ultimamente torce pela seleção da Rússia. Ah pai, ontem à noite a gente estava tocando violão e a Edmiriam cantou Gente Humilde. Pensei em você na hora porque sei ser essa a sua música preferida. O Chico realmente é dose. Aliás, dose é tudo o que acontece no país, não é? Eu sei que você não gosta de política e te incomoda o fato de eu participar do movimento estudantil. Mas quer saber? Você com o seu jeito de trabalhar é o maior comunista do mundo. Só não se deu conta disso. Mas fica sossegado que eu não vou ser preso. Um dia, viveremos uma democracia e você vai entender que essa luta não foi em vão. Mas voltando ao Jovito, ele me deu um livro do Darcy Ribeiro, chamado Maíra. É muito bom esse livro. Quando eu tiver uma filha quero dar a ela o mesmo nome. Achei bonito.

Voltando à nossa querida medicina, ainda não vi a escala de plantão, mas se der tudo certo, acho que dá pra ir para Orlândia no próximo fim de semana. Estou enrolado com um caso clínico e queria a sua opinião. Você pode discutir esse caso comigo? Juro que não levo a lista de exames que me mandaram pedir. É um caso de dispnéia a esclarecer. Ei, por falar em dispnéia, você bem que podia parar com esse cigarro, né? Isso vai acabar te fazendo mal. Faz uma forcinha, vá? Você não pode ficar doente. A gente ainda tem muita coisa pra fazer junto. Eu disse que quero ter um filho médico e montar uma clínica só pra nós três, mas se você ficar doente vai atrapalhar os meus planos. Então pense em nós, pense nos seus pacientes e em tudo que temos a fazer para diminuir as diferenças sociais, afinal essa ainda é a nossa bandeira, não é? Pense bem.

Olha pai, já é tarde e eu tenho que levantar cedo. O hospital é muito longe de onde estou morando e começo às sete horas. Mal posso esperar pelo fim de semana pra ir embora e acompanhar você no consultório. Um beijão e saudações tricolores.

Carlucho.

PS: Fala pra mamãe que tô mandando um beijão e quero comer gnoche de espinafre, no almoço de domingo.

Nota: Este texto foi escrito no dia 02/02/2004, quando se completaram vinte anos que o meu pai mudou de lugar.

Carlucho
Enviado por Carlucho em 04/10/2008
Reeditado em 06/10/2008
Código do texto: T1210891
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.