VIAGEM PELOS RIOS TOCANTINS E ARAGUAIA(II)

(Meus amigos, o sistema não comportou o artigo todo. Assim, tive de colocar a última parte como VIAGEM PELOS RIOS TOCANTINS E ARAGUAIA(II). Para entender esta parte, é preciso ler a anterior).

Mas não pude vencer a repugnancia que encontrei da parte do sargento de caçadores Antonio José de Azevedo, que havia descido o rio com o Conde de Castelnau(38), do piloto e quasi todos os camaradas e soldados, dos quaes uns me apresentavam uma morte certa entre as mãos dos Carajás, chegando o sargento a dizer que se eu me resolvesse a entrar pelo braço grande, elle com um ou dois soldados, seguiria por terra para São Joaquim de Jamimbú(39). O piloto e outros argumentavam com a esperança que tinham d’agua sufficiente, visto que nos achavamos quasi em meiados de Novembro(40). Cedendo pois, assentei de arrostar os trabalhos que eu antevia.

(NOTA EXPLICATIVA(38). O CONDE FRANCIS CASTELNAU, QUE ESCREVEU O LIVRO RETRATOS DO PARAUPAVA, NOME ANTIGO DO ARAGUAIA, ESTEVE NA REGIÃO DOS MARTYRIOS E FEZ ALGUNS DESENHOS, NO DIA 09.07.1844. ESSAS CACHOEIRAS TINHAM SIDO DESCOBERTAS EM 1673, PELA BANDEIRA DE BARTOLOMEU BUENO DA SILVA, PAI DO ANHANGUERA E REVISITADAS PELA BANDEIRA DE MANUEL DE CAMPOS BICUDO).

(NOTA EXPLICATIVA(39). O PRESIDIO DE SÃO JOAQUIM DE JAMIMBÚ ESTAVA LOCALIZADO NA HOJE REGIÃO DE LUIS ALVES, ESTADO DE GOIÁS).

(NOTA EXPLICATIVA(40). O MÊS DE NOVEMBRO É CONSIDERADO COMO O MÊS DO INICIO DAS CHUVAS DE INVERNO).

Dia 12. Carregaram-se os barcos, e tornou-se a descarregar logo acima.

Dia 13. Carregou-se a carga na igarité de descarreto, e arrastaram-se os barcos.

Dia 14. Trabalhou-se todo o dia da mesma maneira que nos antecedentes, mas nada se adiantou. E continuando as chuvas com muita força, houve um grande prejuizo no sal, por isso que faltavam n’estes lugares as folhas de palmeiras com que elle se podesse cobrir.

Eis pois as tristes circumstancias em que me via. Ou havia de ver anniquilar-se parte do carregamento dos barcos, que tantos sacrificios me havia custado para pôr n’aquellas alturas, ou havia de expor-me aos maiores padecimentos e desgraças, consumindo sem dar um passo, a pouca farinha que me restava!

Não sabendo porem o que era feito da ubá que eu havia mandado ao alcance do socorro, e achando-me cento e quarenta e tantas leguas distante do lugar onde podia achar algum recurso, restando apenas nove alqueires(41) de farinha para cincoenta e quatro pessoas, inclusive minha mulher, cuja resolução de acompanhar-me muito tinha contribuido para achar gente para a tripolação, e que eu vi então em circumstancias de perecer á fome, eu tinha razão de considerar-me nas mais tristes circumstancias!

(NOTA EXPLICATIVA(41). EMBORA NÃO SEJA UMA MEDIDA MUITO CONHECIDA, NOVE ALQUEIRES DE FARINHA CORRESPONDIA A 435 LITROS. COMO A COMITIVA DE RUFINO ERA DE 54 PESSOAS, HAVIA APENAS 8 LITROS DE FARINHA PARA CADA PESSOA. A FARINHA ERA O ALIMENTO BÁSICO NESTAS VIAGENS E SEMPRE SE FAZIA ACOMPANHAR DE PEIXE E CAÇAS).

Então ventilou-se a idea de deixar-se as cargas dos barcos em ranchos, para o fim de evitar-se os perigos que nos aguardavam. Chegando-me isto aos ouvidos, não me achei então com a força moral que tinha tido no dia 19 de Agosto. Todavia animei a gente, dizendo-lhe que o soccorro e as aguas(42) não deveriam tardar, e tratei de pensar no que faria.

(NOTA EXPLICATIVA(42). COM AS CHUVAS, AUMENTAVAM AS AGUAS E O RIO SE TORNAVA MAIS NAVEGÁVEL).

Em uma tal conjunctura resolvi subir para o Presidio de São Joaquim de Jamimbú(43), na igarité do descarreto, afim de procurar soccorros para evitar ao menos uma parte da desgraça a que estavamos expostos.

(NOTA EXPLICATIVA(43). SE ESTE PRESIDIO JÁ EXISTIA EM NOVEMBRO DE 1847, QUANDO RUFINO PASSOU PELA REGIÃO, NÃO PODERIA TER SIDO FUNDADO NA DÉCADA DE 1870, COMO DIZEM ALGUNS. ESTE PRESIDIO FICAVA PERTO DA ATUAL LUIS ALVES, NO ESTADO DE GOIÁS).

Tendo feito pois todas as recommendações que julguei convenientes, deixei os barcos entregues ao piloto e ao meu cunhado Hermenegildo Francisco de Azevedo(43a), que expontaneamente quis acompanhar-me n’esta viagem e no dia 15 larguei para cima. No dia 18 tendo quasi constantemente arrastado a igarité, apezar de vasia, encontrei o socorro que havia sido alcançado pelos meus enviados.

(NOTA EXPLICATIVA(43A). HERMENEGILDO FRANCISCO DE AZEVEDO ERA FILHO DE MANOEL FRANCISCO DE AZEVEDO E LÚCIA DE FRANÇA. ERA IRMÃO, PORTANTO, DE MARIANA FRANCISCO DE AZEVEDO SEGURADO, ESPOSA DE RUFINO. FOI ORDENADO PADRE EM 08.04.1848, PELO BISPO CEGO DE GOIÁS, DOM FRANCISCO FERREIRA DE AZEVEDO, LOGO DEPOIS DE TER VOLTADO DESTA VIAGEM FEITA COM RUFINO TEOTÔNIO SEGURADO. ESTA INFORMAÇÃO É DADA PELO CÔNEGO TRINDADE, EM SEU LIVRO LUGARES E PESSOAS, PÁGINA 190).

Então soube que a causa de tão grande demora havia sido o terem-se estes enganado na entrada do furo, e terem tomado pelo braço grande, onde reconheceram o seu erro depois de chegarem ás aldêas dos indios Carajás, os quaes os informaram da descida do soccorro, dizendo alem d’isto os mesmos indios que por alli não tinham elles voltado.

Soube além d’isto que, em consequencia d’essa informação, haviam os meus enviados regressado para entrar pelo furo, perdendo d’est’arte quatro dias de viagem.

Quanto ao soccorro, pode-se fazer idea do embaraço em que se viram os conductores d’elle, cujo encarregado foi um cabo de tropa de linha, de nome Joaquim Marques de Arruda, á vista da falta de verdade em que estavam comprehendidos, e dos trabalhos e despezas a que dava lugar sua anticipada retirada.

Sem que consultasse o que devia fazer, conheci que era occasião de por em pratica o meu pensamento de subir pelo braço grande, e assim no dia 19 cheguei aos barcos, onde achei tudo em paz.

A minha volta foi realmente um dia de festa. A minha presença, que não pouca confiança inspirava á tripolação, á vista de pessoas, das quaes muitas eram conhecidas, e em fim o socorro, apezar de pequeno, pois que chegou apenas sete saccas de farinha e algumas bagatellas mais, não devia produzir menos effeito. As esperanças renasceram e eu dei ordem para o regresso do furo.

Eu julgo dever notar que ao cabo foram entregues vinte e seis saccas de farinha, etc, mas o fado(a canseira) não permitiu que me chegassem mais do que sete.

Dias 20, 21 e 22. Gastaram-se estes dias em descer pelo furo, e ás onze horas do dia 22 tomei pelo braço grande.

Dia 23. Despedi o cabo para buscar soccorro no presidio de São Joaquim de Jamimbú.

Dias 24, 25, 26 e 27. Naveguei sem novidade, e no dia 27 pousei na primeira aldea dos indios Carajás, cujo numero não passava de cinco cabanas. Estes indios estavam bem medrosos, tanto assim que tinham-se occultado, ficando apenas dois na aldea. Estes a muito custo consentiram que se aportasse na praia em que estavam. Mas afinal houve obsequios de parte a parte, e a noite passou-se sem susto.

Dia 28. Passei por uma aldea de Carajás e pousei em outra situada em uma praia abaixo de um estreito.

Dias 29 e 30. Encontrei uma ubá em que desciam tres Carajás, que foram com dois pilotos pescar em um lago sem pôr n’isso duvida alguma.

Dia 1 de Dezembro de 1847. Continuando a navegar pousei em uma aldea de indios da mesma nação, cujo capitão me fez presente de um delicioso pedaço de peixe.

Dia 2. Pousei em outra aldea, cujo capitão há pouco havia fallecido, mordido de uma cobra.

Dia 3. Descansei meio dia defronte de uma aldea no lugar em que há um pequeno travessão, e fiz pouso acima.

Dia 4. Passei o meio dia defronte de uma aldea, onde se acha um lago notavel pela sua grandeza, e pousei em uma praia do lado direito.

Dia 5. Continuei a navegar junto á margem direita, ficando-me muitas ilhas á esquerda, nas quaes é provavel que existisse alguma aldea. Fiz pouso na ponta de cima de uma grande ilha.

Dia 6. Depois de jantar cheguei a um lugar elevado na margem da direita, onde os Carajás têm um cemiterio. Eu quis ocularmente observar esse lugar e nada achei de notavel. As sepulturas são mui pouco profundas, e sobre ellas vi alguns páos ou varas, que sustentam uma esteira que cobre a terra. Pareceu-me que a terra que lançam na sepultura não é batida(socada). Pousei pouco acima d’esse cemiterio.

Dia 7 de Dezembro de 1847. Ás seis horas da tarde, cheguei á barra do Rio das Mortes(44). Este rio é o maior confluente do rio Araguaya, desde sua confluencia(encontro) com o rio Tocantins até este ponto. Devo porem notar que elle é muito menor que o mesmo Araguaya. N’essa noite avistaram-se fogos dos indios á pequena distancia.

(NOTA EXPLICATIVA(44). O RIO DAS MORTES É O MAIOR AFLUENTE DO ARAGUAIA E DESAGUA NA REGIÃO DE SANTA ISABEL OU MAIS PRECISAMENTE NAS IMEDIAÇÕES DA CIDADE DE SÃO FELIX DO ARAGUAIA, NO PARÁ).

Dia 8. Almocei na aldea, cujo capitão tomou o nome de João Leite de um meu cunhado que elle tinha visto na povoação de Salinas. N’essa aldea entregou-me um indio um bilhete, que me tinha deixado o sargento Azevedo, que havia subido em companhia do cabo Arruda.

Dias 9, 10, 11 e 12. N’estes dias foi copiosissimo o inverno, e o rio encheu consideravelmente, obrigando-se a servir dos ganchos e forquilhas(45) para poder navegar. No dia 12, fiz pouso, avistando a aldea do capitão Antonio.

(NOTA EXPLICATIVA(45). INSTRUMENTOS FEITOS DE PAU QUE, COM PEQUENAS DIFERENÇAS, SERVEM PARA MOVIMENTAR OS BARCOS NAS ÉPOCAS EM QUE OS RIOS ESTÃO CHEIOS).

Dia 13. Passei por essa aldea, a qual me ficou na terra firme do lado direito, onde se avistou a roça. À praia, vieram apenas quatro indios. Ao meio dia chegou-me um soccorro de cinco saccas e meia de farinha, e seguindo viagem ás horas do costume, fiz pouso em uma praia da esquerda por baixo de umas barreiras, que estão d’esse mesmo lado.

O capitão Antonio, que havia acompanhado o cabo Arruda, desceu n’esta occasião a encontrar-se comigo, a fim de receber alguns brindes. A montaria que havia conduzido o soccorro voltou para cima.

Dia 14. N’este dia não pude fazer viagem por se terem perdido dois camaradas no campo.

Dia 15. Deixei gente com a igarité de descarreto para procurarem os camaradas que se haviam perdido. Almocei em uma praia onde se achava o capitão Antonio, que com algumas familias regressava para a sua aldea.

Dias 16, 17 e 18. Naveguei sem que houvess nada de notavel, á excepção de achar o rio muito corrente, e ser-me necessario navegar sempre á gancho e forquilha.

Dia 19. Falhei á tarde por não terem apparecido os camaradas que tinham sahido a caçar.

Dia 20. Não apparecendo aquelles camaradas, e não me restando mais do que uma única sacca de farinha, ordenei que descessem tres camaradas em uma ubá de uns indios que ahi appareceram afim de ver o que era feito dos camaradas que haviam ficado perdidos no campo e subi na igarité a encontrar-me com um dos conductores do soccorro, que segundo me informaram os indios, achava-se na pesca dos pirarucús, perto do encontro dos dois braços da ilha do Bananal(46).

(NOTA EXPLICATIVA(46). COMO RUFINO SUBIA O RIO ARAGUAIA, CONSEGUIU CHEGAR NA PARTE FINAL DA ILHA DO BANANAL OU SEJA, ONDE SE DÁ A BIFURCAÇÃO, NA PARTE SUL DA ILHA. O RIO ARAGUAIA AÍ SE DIVIDE EM DOIS, FORMANDO O JAVAÉS, TAMBÉM CHAMADO BRAÇO MORTO OU BRAÇO FALSO. FURO DO BANANAL LEMBRA PARTE FURADA DA ILHA, ONDE NASCEM RIOS E CÓRREGOS. A ILHA TEM CERCA DE 500 KM DE COMPRIMENTO. TANTO QUE RUFINO GASTOU 30 DIAS PARA SAIR DO NORTE DA ILHA E CHEGAR AO SUL).

Dia 21. Voltei para o lugar em que se achavam os dois braços do rio, e ahi achei os camaradas que tinham apparecido. Mandei tres camaradas buscar soccorro na ubá, descansei no lago grande, e fiz pouso pouco acima.

Dia 22. Descansei defronte da ponta da ilha do Bananal, e pousei na entrada do canal que tem o nome de Braço Falso.

N. B. Tendo encontrado o braço grande(norte da ilha), no dia 22 de novembro, trinta dias se passaram primeiro que eu podesse alcançar a ponta de cima da ilha do Bananal(sul da ilha). Se não fossem as muitas falhas que tive, e a enchente que com tive de lutar, é provavel que esta viagem se podesse fazer em vinte dias.

Devo notar que este braço não é menos abundante de caça e de peixe do que o furo. N’elle se encontram muitos lagos, em que há grande quantidade de pirarucús, e muitos campos, onde pastam muitos rebanhos de veados. O mesmo rio offerece abundante pesca de muitas espécies de peixes grandes e pequenos.

As aldeas dos Carajás por onde passei constam em geral de oito a dez cabanas, contendo de vinte a trinta indios, todos muito miseraveis e preguiçosos. Eu brindei a cada uma d’essas aldeas com uma ou duas peças de ferramenta, e alguns objectos de menor valor. Todos elles me pareceram mui bem dispostos a nosso respeito, e mostram desejar que continue a navegação(47).

(NOTA EXPLICATIVA(47). É CLARO QUE OS INDIOS QUERIAM A NAVEGAÇÃO DOS BARCOS OFICIAIS(DO GOVERNO), PORQUE ESTES, QUANDO PASSAVAM, OFERECIAM PRESENTES AOS INDIOS. MAS OS BARCOS DE COMÉRCIO PARTICULAR NÃO PODERIAM FAZER GENTILEZAS PARA OS INDIOS, SOB PENA DE NÃO TEREM LUCROS).

Julgo dever fazer algumas observações sobre a grande ilha de Santa Anna. Esta ilha, cuja largura o conde de Castelnau avalia de vinte e cinco a trinta leguas, não tem de certo menos de cem leguas de comprimento(48).

(NOTA EXPLICATIVA(48). A ILHA DO BANANAL TEM CERCA DE 500 KM DE COMPRIMENTO E 30 LÉGUAS DE LARGURA OU SEJA 180 KM DE LARGURA. É CONSIDERADA A MAIOR ILHA FLUVIAL DO MUNDO. DENTRO DELA NASCEM VÁRIOS RIOS, ALGUNS COM CERCA DE 300 KM DE EXTENSÃO. MAS, INFELIZMENTE, ESTÁ SENDO DESTRUÍDA POR PASTAGENS PARA CRIAÇÃO DE GADO, SEM QUE NENHUM GOVERNO TOME PROVIDÊNCIAS). O MINISTÉRIO PÚBLICO TODOS OS ANOS AMEAÇA RETIRAR O GADO, MAS NUNCA CONSEGUE FAZÊ-LO).

Ella parece ser em geral baixa, tendo apenas algumas pequenas elevações cobertas de hervas pouco próprias de pastagens, e por essa razão ella é quasi sempre coberta d’um carrasco de mistura com um capim de altas dimensões, formando um denso capinal quasi impenetravel. E em outros lugares, que se assemelham mais a mato do que a campo. O caçador encontra tantos embaraços para penetrar no interior da ilha, que antes quer voltar do que seguir.

Todavia acham-se alli alguns campos, onde bem como na terra firme se encontram muitos veados. O cervo porem é a caça mais commum n’aquella ilha.

Dia 23. Cheguei ao largo do Zeferino, lugar em que haviam estado os indios Chavantes esperando os barcos afim de negociarem, segundo me havia informado um dos conductores do socorro.

Dia 24 de Dezembro de 1847. Posto que até este dia me não tivesse faltado farinha, todavia muitas murmurações iam apparecendo, e trabalhava-se já com pouca cautela e algum risco dos barcos. Por isso não duvidei consentir que fossem ver se encontravam com os indios Chavantes(49), entre os quaes esperavam achar algum recurso de mantimento.

(NOTA EXPLICATIVA(49). EMBORA CONSIDERADOS PERIGOSOS, OS INDIOS XAVANTES GOSTAVAM DE COMERCIALIZAR, DO QUE DÁ PROVA RUFINO SEGURADO, EM SUA VIAGEM DE 1847).

Dia 25. Andei até meio-dia, falhando por falta de farinha.

Dia 26. Ao meio-dia chegaram a tal ponto as murmurações, que minha mulher não querendo estar presente e retirando-se para terra, um camarada que notou este passo de prudencia com incrivel arrogancia disse: - quem não gostar do que estou dizendo metta algodão nos ouvidos.

Então julguei que me não convinha expôr-me por mais tempo a estes e outros semelhantes insultos, e embarquei-me na igarité de descarreto, tendo assentado de esperar os barcos no destacamento do Presídio de Jamimbú. Encontrando o soccorro mandei que seguisse para baixo ao encontro dos barcos, e eu continuei minha derrota para o destacamento, onde cheguei no dia 29 de Dezembro.

Dia 27. Os barcos estiveram amarrados, chegando na tarde d’esse dia o soccorro com o mantimento sufficiente para chegarem a São Joaquim de Jamimbú.

Dias 28, 29, 30 e 31. A navegação d’estes dias foi summamente penosa e arriscada em razão de se achar o rio com grande enchente.

Dia 1º de Janeiro de 1848. Chegaram os barcos ao Presidio de Jamimbú. Achando-me falto de viveres para continuar a viagem, entendi-me com o commandante militar sobre as providencias que se deviam dar a respeito e lisongeei-me de que em oito dias poderia seguir a minha derrota(viagem).

Mas não aconteceu assim. A falta de utensís necessários não permitiu que se me podesse apromptar vinte e tres alqueires(50) de farinha em menos de dezesseis dias. Accrescendo que as diligencias do commandante não obstavam a que grande parte da farinha que os roceiros iam fazendo não fosse distrahida nas vendas, que elles faziam aos camaradas e soldados. Bem extensos me pareciam estes dias em razão da grande quantidade de praga que ahi há!

(NOTA EXPLICATIVA(50). VINTE E TRES ALQUEIRES DE FARINHA CORRESPONDIA A, APROXIMADAMENTE, 1.104 LITROS).

Dias 16, 17 e 18. Naveguei com muito trabalho por causa da cheia do rio, mas este começou a mostrar vasante. Appareceram então fortes ataques de febres intermittentes.

Dias 19 a 26. Posto que o rio tornou-se melhor por ter vasado consideravelmente, todavia a viagem continuou vagarosa em razão de se achar a maior parte da tripolação atacada das febres. No dia 26 pousei defronte da capoeira de Manoel Pinto(51), pouco abaixo da barra do Rio Vermelho.

(NOTA EXPLICATIVA(51). A CAPOEIRA DE MANOEL PINTO, EM 1847, REFERE-SE AO QUE SE CHAMOU DE PRESIDIO DE LEOPOLDINA, DEPOIS PORTO DE LEOPOLDINA, HOJE ARUANÃ, NO ESTADO DE GOIÁS. A PARTIR DAÍ, RUFINO SEGURADO DEIXOU DE SUBIR O RIO ARAGUAIA E PASSOU A SUBIR UM DE SEUS AFLUENTES, O RIO VERMELHO QUE CORTA AO MEIO A CIDADE DE GOIÁS, ANTIGA CAPITAL DO ESTADO).

Dia 27. Ás oito horas da manhã entrei n’aquella barra. O rio ia um tanto cheio, e por isso naveguei sem incommodo, posto que o rio seja muito pequeno.

Dias 28, 29, 30 e 31. A navegação d’estes dias foi trabalhosa, por ser o rio de muita correnteza. No dia 31 ficou-me á direita a bocca do Lago dos Tigres(52).

(NOTA EXPLICATIVA(52). O LAGO DOS TIGRES ESTÁ HOJE LOCALIZADO NA CIDADE DE BRITÂNIA, ESTADO DE GOIÁS).

Dias 1º e 2 de Fevereiro de 1848. Continuaram as correntezas e por isso foi necessario grandes trabalhos para vencel-as.

Dia 3. Foi necessário arrastar os barcos, e o mesmo aconteceu por muitas vezes no dia seguinte.

Dias 4, 5 e 6. Continuou-se a arrastar os barcos, até que finalmete no dia 6 ás oito horas da manhã aportei no porto de Thomaz de Sousa(53).

(NOTA EXPLICATIVA(53). O PORTO DE THOMAZ DE SOUSA ESTÁ LOCALIZADO NA REGIÃO DA HOJE CIDADE DE SÃO JOSÉ, NO RIO VERMELHO, PERTO DA VELHA CAPITAL VILA BOA, HOJE CIDADE DE GOIÁS. NESTE PORTO, RUFINO DEU POR ENCERRADA A SUA VIAGEM NO DIA 06.02.1848, COM A CHEGADA DOS DOIS BARCOS PRINCIPAIS, NATIVIDADE E SANTO ANTONIO. GASTOU, PORTANTO, 10 MESES E 2 DIAS, SAINDO DE PORTO NACIONAL. COMO NA VOLTA SAIU DE BELÉM, NO DIA 19 DE MAIO DE 1847, GASTOU 8 MESES E 6 DIAS. PARA FAZER A MESMA VIAGEM, DE GOIÁS VELHO A BELÉM, EM 1935, DE BARCO MOTORIZADO, NO CHAMADO “EXPRESSO DO ARAGUAYA”, COM MOTOR DE 25 HP QUE DESENVOLVIA 4 LEGUAS(24 KM) POR HORA, O ROTARIANO ENGENHEIRO CIVIL E EX-PREFEITO DE SÃO PAULO ARMANDO DE ARRUDA PEREIRA, GASTOU 21(VINTE E UM) DIAS(29.09.1935 A 20.10.1935), CONFORME SEU LIVRO DIÁRIO DE VIAGEM-DE SÃO PAULO A BELEM-DESCENDO O ARAGUAYA).

Devo notar que eu tinha então farinha sufficiente, e facil me era haver a carne necessaria para continuar a minha viagem até o arraial da Barra, lugar em que eu tencionava findar a minha navegação.

Porem a falta d’agua no Rio Vermelho, o máo estado dos barcos, a grande quantidade de pedras e páos que se encontra n’aquelle rio, forçaram-me a fazer ponto n’aquelle porto, dando-me ainda por muito feliz de ter concluido a minha viagem, se bem que menos feliz do que eu esperava.

Desejando ainda dizer alguma cousa que possa ser util á navegação, eu apresentarei o meu modo de pensar sobre a maneira de fazer chegar á capital de Goyaz os carregamentos que subirem do Pará. O Rio Vermelho é incapaz de navegação de barcos de negocio, salvas algumas occasiões em tempo d’aguas, e por isso assento que deve haver um novo systema de navegação por esse rio.

Os barcos proprios são igarités, que deverão ser de um talho particular, isto é, razas, largas e de um comprimento proporcionado á largura.

Julgo que não me engano dando-lhes trinta e seis palmos de comprimento(7 metros), doze de largura, e dois e meio de fundo.

Estas igarités, cujo numero deverá ser o triplo dos barcos, deverão receber os carregamentos na barra do Rio Vermelho, no porto de Thomaz de Sousa ou na barra do Itapirapuã, conforme a agua que tiver o Rio Vermelho, e descarregar-se no arraial da Barra. Evitando-se d’est’arte as grandes despezas que se deve fazer nas conducções por terra de cada um d’aquelles portos ou de outros para esta cidade.

Recapitulando o que tenho feito ver da minha viagem, é claro que da confluencia do Araguaya ás primeiras aldêas vim em cincoenta e nove dias, d’estas á ponta debaixo da ilha do Bananal em trinta e quatro, e d’esta viagem seguida a São Joaquim de Jamimbú quarenta, e d’ahi ao porto de Thomaz de Sousa vinte e um, não contando a falha.

Sommando cento e cincoenta e quatro. Tantos foram os dias que gastei da barra do Araguaya ao porto de Thomaz de Sousa. Mas isto foi em consequencia de entrar muito tarde n'’ste rio.

Devo pois notar que descendo-se no tempo proprio, o que se deverá ter sempre em vista, da barra á Cachoeira Grande não se gastará mais de oito dias, e n’esta dez. D’esta ao sahir da cachoeira de São Miguel nove. D’esta ás aldeas seis. D’esta á cachoeira de Santa Maria treze. D’ahi á cachoeira de Santa Anna cinco. D’esta cachoeira á ilha do Bananal oito.

Da ponta de baixo da ilha do Bananal á ponta de cima vinte e quatro. D’ahi ao destacamento seis. Chegando a cento e nove os dias gastos dentro do Araguaya e Rio Vermelho. E sendo certo que se pode fazer viagem para o Pará em trinta dias, que se pode aviar o negocio em dezesseis, e gastar-se na volta até a barra sessenta, segue-se que toda a viagem poderá effectuar-se em sete meses e meio, isto é, o mesmo tempo que se gasta nas viagens da villa da Palma para o Pará pelo rio Tocantins em barcos de porte de mil arrobas.

Pela exposição que acabo de fazer é claro que, se por um lado é possivel a navegação pelo rio Araguaya, por outro é evidente que é necessario muito cuidadosamente evitar aquellas circumstancias que podem tornar desgraçada uma viagem por este rio.

Devo pois advertir que a descida deve ser cedo, isto é, no mez de Fevereiro, e no mais tardar por todo o mez de Março. Cada barco de negocio deve ter a sua igarité de descarreto e montaria de caçar. A farinha que ficar reservada para a volta em São João d’Araguaya não deve ser menos de dois alqueires por cada individuo.

Os navegantes devem ter em vista a sua posição entre os indios, e agradal-os o mais possível, evitando qualquer desavença por pequena ou particular que seja.

Resta-me enfim dizer que achando-se para mim reservada em parte a gloria de realisar um pensamento, que há tempo occupava os espiritos dos verdadeiros amigos da prosperidade da nossa provincia, eu me terei por muito feliz se a minha viagem produzir os fructos que d’ella se deve esperar.

Goyaz, 27 de Março de 1848.

Rufino Theotonio Segurado”.

NOTA FINAL:

Terminada a viagem em 06.02.1848(a viagem foi iniciada em 04.04.1847), RUFINO TEOTÔNIO SEGURADO voltou a sua condição de Juiz de Direito. Era Juiz da Comarca de Palma(hoje Paranã), quando faleceu na Fazenda Engenho, de sua propriedade, em Conceição do Norte(Tocantins), sepultado na Igreja Matriz, em 29.08.1868, com 48 anos de idade, na presença do Vigário João de Deus Gusmão que assinou a certidão, com os seguintes termos:

“Aos 29 de agosto de 1868, nesta vila e freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Norte do Bispado de Goyaz, sepultamos nesta Matriz do Arco para sima, com todos os sacramentos, o Doutor Juiz de Direito desta Comarca de Palma, Rofino Theotonio Segurado, pardo, casado com Dona Mariana Francisca de Azevedo e foi encomendado e acompanhado por mim, do que para constar, fiz este termo que assignei. Vigr. João de Deus Gusmão”

*Mário Ribeiro Martins

é Procurador de Justiça e escritor

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Mario Martins
Enviado por Mario Martins em 16/03/2006
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