Parnaíba e um olhar para si mesma

Das águas de um caudaloso rio a cidade roubou seu nome. E a intimidade com o Rio Parnaíba fez com que diferentes povos, a começar pelas nações indígenas pré-coloniais, por essas terras se apaixonassem. Foi assim com os desbravadores vindos d’além mar, que logo foram seduzidos pelo balanço das águas sempre se oferecendo à terra e presenteando-a com recursos e promessas de prosperidade. E os novos habitantes foram abençoados com séculos de riqueza, graças à capacidade do rio de se estender como um tapete até o Oceano Atlântico, permitindo-lhes alcançar às mais longínquas margens.

A partir dessa época, Parnaíba começou a se destacar como um importante centro sócio-econômico brasileiro, construindo uma História digna de ser propagada e reconhecida aquém e além dos limites do seu Estado. Desses anos áureos, herdou um variado patrimônio histórico que reúne desde um rico conjunto arquitetônico até uma expressão folclórica única, ainda viva em seus bairros mais antigos. Também construiu uma extensa lista de ações protagonizadas por parnaibanos, o que traduz a potencialidade dessa gente.

Contrastando com o atraso do restante do país, a altaneira Vila de São João da Parnahyba foi proclamada Metrópole das Províncias do Norte, título recebido de Dom Pedro I, em 1823, por ter sido a primeira localidade do Norte e Nordeste a proclamar a Independência do Brasil. Logo depois, ainda embalada pelo espírito de liberdade, a vila aderiu ao Movimento republicano e separatista da Confederação do Equador, indo de encontro aos interesses do Imperador que, meses antes, solicitara o apoio parnaibano de Simplício Dias oferecendo em troca a transformação de Parnaíba em capital do Piauí. Simplício não aceitou o convite para assumir o cargo de Presidente da Província piauiense, rompendo com o Império e aliando-se aos ideais de Frei Caneca. Recusou o cargo para permanecer fiel aos próprios ideais e Parnaíba continuar como o berço da liberdade da região.

Após o fracasso do movimento republicano e a morte de Simplício, o Coronel Miranda Osório assume o comando de Parnaíba e obtém o ápice das conquistas políticas: a elevação de sua vila à condição de cidade, em 14 de Agosto de 1844. Infelizmente essa promoção, que já era merecida há muito tempo, teve um preço alto: a repressão da rebelião popular maranhense, Balaiada, que teve o apoio de parte da população parnaibana. Miranda aliou-se aos interesses do Império e destruiu os planos dos balaios revoltados contra aquela estrutura sócio-política e econômica, que oprimia a massa pobre formada por índios, negros e mestiços.

Acalmados os ventos revolucionários à custa de baioneta e cadeia, a nova cidade seguiu se desenvolvendo e se afastando cada vez mais da realidade estadual. Nas artes, na política e nas obras, a ousadia era a marca parnaibana. Precursora no Nordeste da navegação comercial de longo curso para a Europa e da industrialização, Parnaíba ganhou a fama de pioneira. Os primeiros barcos a vapor, locomotiva, bicicleta e automóvel do Estado apareceram por aqui. Enquanto as outras vilas piauienses eram ultrapassados feudos, em Parnaíba já imperava um espírito capitalista por ser possível adquirir os últimos modelos do mercado internacional. Mandava-se para o estrangeiro matéria-prima com a ânsia de receber sofisticados produtos. A elite parnaibana ostentava a vaidade de cidade cosmopolita graças aos móveis, roupas, perfumes, alimentos, medicamentos, ferramentas, automóveis e utensílios domésticos de várias partes do mundo que se misturavam aos produtos industrializados na própria terra.

Tudo o que era produzido no estrangeiro existia na Princesinha do Igaraçu e aeroclube, estação radiofônica, televisão, telefone, usina elétrica, hospital, farmácia, banco, agência dos correios, biblioteca e escola pública foram algumas de suas novidades, assim como os dois primeiros times de futebol piauiense, também criados em Parnaíba: o “International Athletic Club” e o “Parnahyba Sport Club”. Por trás dessas conquistas existiam pessoas que, além de poder financeiro, possuíam erudição e visão de futuro. Era o legado cultural daqueles que, tempos atrás, criaram aqui a segunda orquestra sinfônica do Brasil.

Poucos sabem, mas a velha Rua Grande guarda vários estilos arquitetônicos, fenômeno raro na região, o que revela ainda a existência de diferentes ciclos econômicos, pois como é próprio em cada época, a arquitetura reflete a natureza do poder. Uma descrição dessa fortuna construída com pedras, e que simboliza o passado glorioso da cidade, vem de uma estreita relação entre a opulência e a fé. Das inúmeras igrejas e capelas, nenhuma é tão simbólica quanto a Igreja de Nossa Senhora da Graça. Cheia de detalhes, como o revestimento em ouro do altar-mor, a Matriz é rica nos estilos barroco e rococó que, nos séculos XVIII e XIX, caracterizavam as cidades mais desenvolvidas do Nordeste brasileiro.

Mas Parnaíba não foi apenas um centro comercial e industrial, pois atraídas pela possibilidade de riqueza, pessoas de todas as regiões brasileiras e do exterior geraram a mais complexa formação social do Estado: em diferentes épocas, índios, africanos, brasileiros, europeus e árabes miscigenaram-se, originando uma sociedade de identidade cultural aparentemente informe. O sotaque, o modo de vida e o conjunto de prédios diversificados – expressão mais visível dessas culturas que aqui aportaram – refletem essa extraordinária variedade.

O devido reconhecimento dessa formação miscigenada, no entanto, ainda não ocorreu. Desde o início, a mistura racial foi marcada pelo etnocentrismo existente principalmente nos brancos ocidentais que aportaram em Parnaíba. Ante os outros povos, os europeus buscaram impor seu tradicionalismo gerando parnaibanos preocupados com a exaltação de suas origens estrangeiras. Começava assim o apego aos brasões e sobrenomes como forma de se diferenciarem pela genealogia. Era a garantia de pertencer à civilização ariana, a uma linhagem superior, única descendente de Adão, possuidora da “verdadeira fé” (a religião do Papa), da “cor” de Deus e da língua culta. Naturalmente, a postura diante dos descendentes de outras etnias – negros e índios – era de desrespeito. Para os sem tradição restava um tratamento de inferioridade, pois eram vistos como “sub-raças”. Com o sistema escravocrata, a riqueza concentrava-se exclusivamente nas famílias tradicionais, enquanto para o povo sobrava a miséria e uma desumana exploração.

Mesmo em períodos de declínio, as famílias tradicionais mantiveram-se no comando de toda a vida parnaibana. A mudança só veio após o último ciclo de desenvolvimento econômico da cidade. A exportação de cera de carnaúba durante as duas Grandes Guerras, levou Parnaíba a uma de suas maiores participações na economia internacional. Esse quadro se alterou drasticamente com o fim da Segunda Guerra Mundial. A nativa carnaúba parecia vingar, por fim, as excluídas massas parnaibanas que nada aproveitaram dos tempos de glória vividos apenas pela casta dominante. A decadência da cidade, chorada desde então pela elite, refere-se, na verdade, à sua própria derrocada econômica. O tempo em que a tradição genealógica era sinônimo de abastança passava junto com o apogeu da cera de carnaúba.

O golpe foi tão profundo que, pela primeira vez, a riqueza se afastava das margens do rio. Diante disso, a elite não se conformou com o fato de, mesmo detendo os conhecimentos, ter perdido o controle sobre o fluxo financeiro que, gradualmente, mudava de endereço passando a concentrar-se nos arredores da cidade, talvez até nas mãos daqueles que, outrora, não passavam de serviçais em pomposas indústrias e residências. Essa brusca mudança trouxe um desafio histórico para Parnaíba. Como jamais houve em outras épocas, surgiu uma luta diferente: a cidade vê-se desafiada a encontrar sua verdadeira identidade e retomar as rédeas de seu destino, decidindo para onde e de que jeito quer ir, antes de voltar a crescer.

Para que as águas do progresso deságüem de novo no mar, a sociedade parnaibana, formada por pessoas de diversas origens, deve assumir sua miscigenação e reconhecer que sua História foi construída do esforço não apenas de europeus, como reza a elite, mas do suor de indígenas, afro-brasileiros, judeus, árabes, e brasileiros de todos os cantos desse país que fincaram às barrentas margens do Igaraçu seus projetos e sonhos. Só o reconhecimento dessa cultura híbrida pode orientar a construção de um modelo de desenvolvimento que leve Parnaíba a considerar as necessidades de todo seu povo, ao contrário do que ocorreu ao longo do tempo. Qualquer planejamento para o futuro deve nascer de uma ampla discussão dos diferentes setores sociais, onde cada um tenha voz e exercite sua cidadania, sem diferenças de qualquer natureza. Esse deve ser o novo espírito dessa terra, pois os rumos de Parnaíba não podem mais serem decididos apenas por uma camada social que se agarra a preconceitos contra quem não pertence às famílias tradicionais.

A miscigenação não pode mais ser vista como fraqueza, tibieza, perversão e causa de desgraças, como convém à cultura formal, sempre a postos para reproduzir os pontos de vista dos dominadores, agora traumatizados com sua decadência. Junto com esse comportamento entranhado de posições preconceituosas e da supervalorização da cultura estrangeira cresceu o sentimento pessimista e a barreira que impede o associativismo, o reconhecimento do sucesso alheio, o incentivo ao desenvolvimento comunitário e a participação na vida pública. Daí a expressão “Parnaíba, terra do já teve”, que permeia desde poemas e cantigas até os meios de comunicação. Mais grave: dificulta a valorização da História parnaibana, pois mesmo já não mantendo a “pureza” da cor em virtude da mistura que já ocorreu, a elite parnaibana insiste em agir como se os de origem popular ou pobre devessem manter-se em papéis subservientes, não servindo, portanto, para casarem dignamente, exercerem funções de chefia numa empresa ou até mesmo participarem de uma boa conversa na calçada de casa.

Há uma luta de classe, portanto, também cultural, pois é a visão de mundo da elite que tem balizado as manifestações artísticas reconhecidas em Parnaíba: ao retratar seus temas de interesse, a elite reproduz sua visão dos acontecimentos como se essa fosse sagrada e indiscutível. A apropriação da História pela elite se concretiza nas datas cívicas. Tradicionalmente, as confraternizações são marcadas por eventos de cunho intelectual e participativo somente em redutos elitizados, relegando-se aos parnaibanos comuns a concessão de participarem através de números folclóricos, como o bobo da corte. Nos bairros, montam-se circos de apresentações artísticas, como se o povo não tivesse direito ao conhecimento, nem sua opinião fosse digna de ser ouvida.

Para reverter isso, faz-se imprescindível resgatar e incluir na História oficial parnaibana a memória daqueles que até hoje permanecem anônimos - negros, índios e migrantes -, embora tenham sido suas mãos que consolidaram a glória dessa terra. Isso poderá dar fim ao estranhamento entre o povo e a cidade: aquele se sente à parte da História; esta se queixa da rejeição de seus filhos, sem compreender que ela é quem os tem ignorado, não lhes permitindo reconhecer-se como um só povo – genuíno troféu conquistado num secular percurso marcado por paixões e combates. Com a inclusão desses novos personagens e a releitura dos fatos, a extraordinária trajetória histórica de Parnaíba poderá ser enriquecida, ganhando contornos ainda mais valorosos. A reconciliação da cidade com seus desconhecidos heróis deverá começar pela cultura popular, quando essa for cantada em verso e prosa pelos artistas da terra. Ao se reconhecer na arte, o povo sentir-se-á sinônimo de Parnaíba, identificando-se inteiramente com ela, com suas ruas, com seus feitos, sentindo-se sua alma, cúmplice de seus sonhos e desejos, desesperadamente comprometido com seu destino.

Mesmo nos poucos registros deixados pelos senhores brancos, vestígios da memória popular podem ser extraídos. E no espaço físico, ela ainda está trancafiada nos bairros, nos guetos, apartada do centro da cidade. Essas áreas preservam a heterogeneidade cultural parnaibana, com costumes bem distintos entre si. Ao ignorá-los, mantém-se silenciadas as classes populares que, ao longo de sua existência, foram encontrando, especialmente no artesanato, meios de expressarem suas características e visões de mundo: com produtos típicos da região, os artesãos vão retratando nativos, cenas do cotidiano e, assim, modelando a face da cidade, que é reconhecida como o centro artesanal mais criativo do Nordeste. E as lendas dos nossos índios, que jamais tiveram destaque em espaços elitizados, ressurgem em peças teatrais construídas em escolas públicas da periferia. Dos povos indígenas, dizimados do Piauí pela brutal ocupação branca, ficou um legado cultural protegido pelos braços do Delta do Parnaíba. Enquanto nas comunidades deltáicas a presença indígena é perceptível, no Catanduvas, um dos berços de Parnaíba, ainda se conserva costumes africanos que não puderam ser apagados pelos grilhões da escravidão, assim como os belos sonhos que deram à luz ao encantador bumba-meu-boi jamais foram abortados pelo pelourinho.

Sabiamente, José Saramago aconselha: “Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”. Quem são, portanto, os verdadeiros pais de Parnaíba? E quem construiu os casarões? Ou onde estão anotados os nomes dos que abriram picadas nas matas, expandindo a cidade para além da Esplanada da Estação? Que fim levaram os vareiros do Rio Parnaíba quando a navegação decaiu? Que “causos” ocorreram durante o crescimento, não apenas do Porto Salgado, mas das dezenas de bairros que surgiram em menos de um século?

Por tudo isso, Parnaíba precisa olhar para si mesma e reler toda a sua trajetória. É chegada a época de seu amadurecimento histórico, de um reencontro do povo com a cidade e, consequentemente, suas causas. Os desafios atuais são outros, mas o espírito de luta é o mesmo. Parnaíba requer de seus filhos, com ou sem tradição, um empenho em favor de seu crescimento e de sua vocação como pólo regional. Assim como Simplício Dias (e possivelmente outros menos renomados) foi capaz de abrir mão de seus próprios bens em favor das causas parnaibanas, é necessário que cada um assuma seu papel de cidadão, consciente de que qualquer modelo de desenvolvimento precisa passar pelo crivo de toda a sociedade.

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 23/10/2008
Reeditado em 24/10/2008
Código do texto: T1244483
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