A Identidade de um Povo

Parnaíba pode orgulhar-se de ter uma das mais ricas e importantes trajetórias de todo o Nordeste. A cidade consolidou-se como um pólo regional de desenvolvimento econômico. E muito há para conquistar. É em seu passado glorioso que a cidade encontra uma das principais fontes de enriquecimento: dona de um abastado Patrimônio Histórico, Cultural e Natural, Parnaíba deverá se consolidar no Turismo Cultural.

Para isso é necessário interromper o processo de abandono e deterioração que muito desse patrimônio – em especial a Memória – tem sofrido com o passar do tempo. Sem o resgate das lendas e mitos, dos fatos e dos personagens, casarões e ruelas não conseguem revelar os tesouros que guardam.

Para envolver a população, que é componente fundamental desse projeto de desenvolvimento, é imprescindível ampliar o conhecimento dos cidadãos acerca desse patrimônio. A identificação do povo com sua cidade é uma das melhores maneiras de garantir, por exemplo, a sua colaboração com a preservação dos bens tombados.

O Dia da Parnaíba é uma das datas mais adequadas para se trabalhar essa mudança de cultura, despertando a sensibilidade dos verdadeiros amigos da terra.

A falta de divulgação da História por meios e linguagens mais acessíveis é um dos maiores obstáculos para as novas gerações, que recebem vícios como herança. É preciso compreender que a cultura a que nos submeteram nos ensinou a acomodar, omitir, concordar, depender. Quanto mais o tempo passar mais difícil será o resgate e o entendimento de nossa identidade.

E as contribuições negativas para essa relação conflituosa vêm de onde menos se espera: os historiadores, em geral autodidatas, e os ditos intelectuais, que possuem meios para virar a mesa dessa realidade, não buscam o entendimento espiritual de seu povo, e se o fazem não compartilham o “Novo Éden” que é onde Parnaíba vai dar a volta por cima.

Uma de nossas expressões de arte, como as atuais poesias são cheias de palavras que ninguém entende e que nunca vão ser entendidas nos cabarés e nem nas igrejas. São feitas por pessoas que evitam escrever coisas que despertem nosso povo, que só se diverti em falar mal da vida dos outros.

Os ditos intelectuais daqui, que deveriam ser perseverantes no resgate do orgulho de nosso povo, contribuem para enterrar o que há de mais precioso e misterioso em nossa terra – a nossa verdadeira identidade. E mesmo assim recebem elogios, e se engrandecem dos milhões de títulos que possuem. Curtem a fama e se gabam dos feitos. Falam mal dos políticos nos bares, culpando-os do atraso da cidade, tudo para parecerem intelectuais, revolucionários e nada mais que isso. É só chegar alguém de fora, que tenha o mínimo de reflexão sobre o mundo ao seu redor, que esses senhores da enciclopédia ficam calados, fazendo voto de silêncio em troca de não serem descobertos.

Não raro vê-se parnaibanos adotando outras paragens como terra natal, enquanto os que por aqui vivem demonstram dificuldades em assumir sua condição de parnaibanos, na maioria das vezes envergonhando-se e deixando florescer um sentimento mais de desgosto que de esperança, e se esquecendo de que são herdeiros de uma gloriosa trajetória marcada por conquistas e inovações.

É como se o povo e cidade não fossem sinônimos, não se identificam mutuamente. A história da cidade não é a história do povo. Nós não conhecemos a cultura popular de Parnaíba, pois ela está trancafiada nos bairros, nos guetos, ficando desconhecida pelo resto da cidade. Em Parnaíba não há homogeneidade. Cada um tem sua história particular.

Poucos sabem, mas a cidade possui duas histórias, uma oficial e uma não oficial. A oficial é aquela cantada em versos, em prosas, poesias, contudo esta parou no tempo, não teve continuidade, está estagnada como a memória de seus fundadores. Por isso ela não é referência. Mas não é apenas por isso que ela não seja referência. Há algo muito mais grave. Os artistas da terra não falam da maioria, limitam-se a tratar de temas e vidas da elite (minoria) prevalecendo a ideologia e a visão dos acontecimentos pela classe dominante. A outra história que a cidade possui, a digamos “não-oficial” é desconhecida, vem sendo construída pelo povo, contudo ignorada pela visão limitada de uns poucos que determinam uma ideologia nociva nascida do imaginário da classe dominante, que não permite o embate e o contraditório de versões. O vencido (negro, índio...) não tem direito à memória.

Mas como dizia o poeta Paulo Leminski “tudo o que respira, conspira”. Se há uma cultura, uma história popular, é possível que se possa resgatá-la através da oralidade. De pai para filho os mitos, os verdadeiros heróis da cidade (os que participaram da saga dos Dias da Silva, talvez?) vêm sendo transmitidos. No escuro, nos becos, nos bares, nas alcovas (já dizia Chico Buarque) é que é cochichada a verdadeira história, que pode ser bela para uns e insignificante para outros. A arte é feita por diferentes visões do artista sobre o mundo ao seu redor. Nasce na veia da inspiração do seu cotidiano, das pessoas com quem ele convive e, principalmente, de suas experiências. A história de sua cidade transmitida por qualquer meio de comunicação é um dos atalhos para preservar a verdadeira identidade, o núcleo de onde provém o DNA de um povo. Mas devemos ir mais longe. Nenhuma cidade pára no tempo, vivendo só do passado, pois se o presente é construído através de cada filho que nasce, ele deve ser levado em conta. Mas por que isso não acontece?

A resposta aparentemente simples é um tanto complexa e requer muito estudo e pesquisa de campo. O povo parnaibano perdeu seu elo com a história oficial porque as pessoas que realmente construíram esse lugar – os negros, os índios, os migrantes – não se reconhecem na história oficial. Poucos são os registros e vestígios deixados pelos senhores brancos. É revoltante pensar em intelectuais como Rui Barbosa que, quando Ministro do Brasil, queimou tudo relativo ao negro no país. Onde está escrita a memória dos que participaram com Simplício do enfrentamento das forças imperais? Onde está escrito o nome dos que enfrentaram os mares atrás de navios para aportar aqui? Onde está anotado o nome dos que descarregavam os navios? Onde está a memória dos que construíram os casarões? Onde está a história dos negros-escravos da época de Simplição? Onde estão os pais de Parnaíba? Os desbravadores dos bairros, os que abriram picadas nas matas construindo suas casas e fazendo com que a cidade crescesse para além da linha de trem? Onde estão registrados os calos das mãos das lavadeiras que se acabavam à beira do cais do Rio Igaraçu para manterem alinhadas as famílias abastadas? Que causos ocorreram durante o crescimento, não do Porto das Barcas, mas do bairro Igaraçu? Quem promoveu o crescimento dessa cidade? As respostas que por ventura surgirem desses questionamentos desvendará um pouco de nossa cultura, e daí nos aclarará a visão sobre o que verdadeiramente nós (parnaibanos) somos. E o que o dia da Parnaíba representa para cada um de nós.

A cultura é o que o povo produz, criando e recriando os usos e costumes. Os poetas da terra que cantam a terra, que sonham a cidade, onde estão? Para quem falam? E o que dizem? Quem escuta? Para que o povo de Parnaíba sinta-se parte da cidade é necessário que se reconheça aquilo que ele construiu.

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 24/10/2008
Reeditado em 24/10/2008
Código do texto: T1245408
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